terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

D'As gregas do mangue:

Lélia Almeida.


Javalina

Cenário: Pavilhão Feminino da Penitenciária Francisco D’Oliveira Conde, de Rio Branco, no Acre. Um galpão fechado, com muitas mulheres trabalhando em máquinas de costura, confeccionando camisetas. Algumas têm berços com crianças pequenas ao lado delas, outras amamentam, as demais trabalham. Este cenário pode ser uma fotografia também. Esta foto é um grande pano de fundo. Em cena, no palco, apenas uma mesa, separada por um vidro, onde Javalina conta, em monólogo, para alguém a quem ela chama de Dotôra, a sua história. É um monólogo e, portanto, só há uma atriz em cena. Ela conta a sua história para o público. Cada fragmento pode ser falado por uma atriz diferente, cada uma delas representando uma mesma personagem, mas com jeitos diferentes, para dar um pouco a idéia de dissociação, desintegração da personalidade, do psiquismo. Ela deverá estar mais velha a cada nova aparição.


Parte I

- Pra senhora me compreender, a Dotôra tem que saber de uma coisa que não é todo mundo que sabe: a minha cabeça não é boa. Nunca foi boa. Agora já me explicaram que tenho uma doença, uma moléstia, sabe, uma doença mental, como se diz. Pois é o que eu tenho. Porque ninguém que tenha uma cabeça boa fazia o que eu fiz. Mas eu fiz e sei que metade do motivo é esse, que a minha cabeça não é boa, que ela falha, Dotôra, não sei se a senhora acredita nisso, em cabeça doente e essas coisas, mas se a senhora acreditar, vai ficar mais fácil de me entender. Outra coisa a senhora tem que saber, antes que eu comece a lê contar essa história, que o meu nome não é Javalina, o meu nome de verdade, a minha graça, que é o meu nome de pia também, como se diz, é Jovelina. Agora a senhora já sabe quem sou. Sou JO-VE-LI-NA e não tenho uma cabeça boa.
- Foi a minha avó materna que escolheu o nome, ela é de Porto Velho e escolheu o nome porque lá tinha uma história de cordel que contava A Triste História da Princesa Jovelina. Que era a história de uma princesa que ia se encontrar com o amado dela, que era pobre, era um encontro proibido, num sabe, e no meio do caminho ela era comida por uma onça. E o amado nunca mais ficava sabendo por que ela não tinha aparecido no encontro. E louco de tristeza ele se atirava dum penhasco. Minha avó adorava essa história, achava triste e achava o nome Jovelina muito fino. Minha avó queria ser fina, era mulata ela, e jurava que era branca, contava essas histórias e muitas outras que ouvia na casa dos ricos onde trabalhava de lavadeira. E contava essas histórias pras outras lavadeiras, que achavam ela esquisita também. Pensando bem, hoje, acho que ela devia ser meio ruim da cabeça que nem eu. Mas lembro dela penteando meus cabelos, puxando meus cabelos pra que eu ficasse um pouco branca também, alisava meus cabelos com óleo de mocotó, eu ficava reluzente e fedida, mas não importava porque ela dizia, minha princesa Jovelina e tudo ficava bem quando eu tava perto dela. O meu tormento começava quando eu ia pra escola e começavam a me chamar de javalina. Não sei se a senhora sabe o que é uma javalina. Javalina é a fêmea do javali, aquele porco do mato que tem umas presas enormes e é furioso. Eu odiava que me chamassem assim e o que eu mais queria mesmo era me transformar numa javalina e dar cabo daquela gente que, no fundo, não gostava de mim porque eu era pobre e negona. Mas quando eu pensava na javalina eu pensava era na onça que tinha comido a princesa. Ela tinha comido o coração da princesa e então ela tinha ficado forte e nobre como a princesa. Tinha outra história também, mas nem vou mais lembrar agora, de um prato de louça inglesa que a minha avó guardava, e que contava a história de uma princesa e de um rouxinol. Não sei se a senhora conhece, mas agora eu nem sei mais porque comecei a contar esta história, enfim, já me esqueci. Alguma razão deve ter porque tudo o que a gente pensa tem um motivo, mesmo que a gente não saiba que motivo é esse. Assim como tudo o que acontece com a gente obedece a um plano divino, que Deus sempre sabe o que é bom pra gente. Que Deus é pai, e em alguns casos, Dotôra, Deus é mãe mesmo. O pensamento é coisa difícil de manejá viu, a gente sabe tudo o que está ali na cabeça da gente, entende tudo, de onde veio e pra onde vai e quando vai falar, puf, se desmancha, como nuvem, como bolha de sabão, fica tudo desmanchado e ninguém entende o que a gente quer dizer. Eu sou melhor de pensamento do que de falação. O meu pensamento é límpido que nem água do córrego, aí quando eu falo tudo são pedras, pedregulhos, seixos, uma enxurrada de sujeira e foi-se. Nem sei mais o que queria contar, uma complicação colocar o pensamento nas palavras. Por isso que ninguém me entende, por isso que ninguém entende o que eu fiz, por isso que todos tentam me confundir. Mas eu sei que não é empresa fácil vestir as palavras com a roupa do pensamento, elas ali nuinhas e ele como uma roupa apertada, ou muito frouxa, a senhora não acha? E a medicação embaralha o meu pensamento, desde que comecei a tomar medicação para a loucura que o meu pensamento me falha, não me socorre na hora que mais preciso dele, e então também não consigo mais falar porque as palavras se desmancham. Só se a senhora já teve alguma doença da cabeça alguma vez é que a senhora vai me entender, senão a senhora vai pensar que eu sou só uma doida a mais, como todo mundo. Mas não sou não. Eu ficava tão furiosa quando me incomodava com aqueles meninos na escola que me urinava toda ou então entrava num transe que só depois de me atirarem um balde de água, então eu voltava a si. Minha mãe dizia que eu me finava. Que uma boa surra ia melhorar tanta fúria. Foi uma freira da escola que conversou comigo que nem gente grande e comecei a me acalmar mais e a encarar os meninos sem medo, ela disse, Jovelina, você já é uma moça e não pode ficar tão mobilizada com esses moleques, você tem de se concentrar e sair dessa fúria e mostrar a eles que você não se importa com essa bobagem, quanto mais você se importa, mais eles incomodam. Foram palavras amigas para o meu pensamento. Não foi fácil, não vou dizer que foi, porque não foi, mas comecei a me acalmar e com o tempo eles pararam de me chamar de Javalina e depois eu mudei de escola. E aquilo tudo que me fazia sofrer tanto ficou pra trás e na escola nova eu conheci o Silas, o meu marido, já falei pra senhora do Silas? Não? O Silas foi o meu primeiro marido, o pai da minha filha, que nasceu quando eu tinha quinze anos, a Cícera. O Silas me batia que nem bicho, era ciumento que só ele, mas me adorava, quando não estava me batendo, me adorava. Morreu de meningite o Silas, quando a minha menina tinha dois anos, fiquei sozinha no mundo com ela e fui pra casa da minha avó. Ali começou outra fase da minha vida, fiquei uma mulherona, adorava baile e muita festa, minha avó dizia pra eu sossegar o facho e cuidar da menina, mas eu descobri que eu gostava muito de foder, a senhora me desculpa a palavra, mas era disso mesmo que eu gostava e andava atrás de cada lixo, só pra me divertir um pouco, eu continuava ruim da cabeça e era ruim de embuchar também, porque só tive esta menina que lê contei, a Cícera. Tem dias que não lembro da menina, que só lembro do Silas, outros dias esqueço do Silas e só lembro da minha avó, desde que fiquei doida e tomo medicação me dou conta de que todo o meu pensamento não cabe da minha cabeça e que para eu lembrar de alguma coisa, outra coisa tem que desaparecer, ir embora. A senhora não sente isso também, parece que o pensamento fica embaçado e que a gente não pode ler ele, não pode lembrar? Às vezes eu sinto até que a coisa tá ali, mas não sei o que é, não sei do que se trata, só sei que tá ali. Então eu penso que isso é um mistério. E já me dei conta que é assim com muita gente porque o pensamento, que é tão grande não pode caber todo na cabeça da gente, que é tão pequena. E o que dizer das lembranças então, se não tem lugar pro pensamento, vai ter paras as lembranças? É por isso que às vezes eu troco, quando penso no Silas não lembro da minha avó, quando penso na menina esqueço do Silas, mas eu sei que eles moram todos dentro da minha cabeça e que é tudo uma questão da gente se organizar, não é mesmo?
O quê, a nossa hora já acabou?
Uma pena viu, a gente se vê na semana que vem então, é sempre bom conversar com a senhora, depois que a Cícera foi embora pra Manaus, nunca mais ninguém veio aqui me visitar. Mas qualquer dia ela vai aparecer, eu tenho certeza disso e peço muito pra Santa Edviges também, de quem sou devota.


In: As gregas do mangue, 2009. (Inédito)