Casamento arranjado,
por Lélia Almeida.
O fisioterapeuta aplica
a moxa, a Artemísia no meu tornozelo e pergunta como foi que aconteceu tamanho
estrago, não tenho como contar tudo e digo a ele que foi um daqueles momentos
difíceis da vida e ele me chama de gatinha e diz que tem coisas que são inexplicáveis
e que a vida é muito misteriosa. Conta de uma paciente dele cujo namorado
sumiu, na frente dela, no meio do Rio Negro, sumiu, do nada, sucuri, ele diz,
tinha 24 anos o rapaz. Contou a história pra me consolar, pra dizer que coisas
piores sempre podem acontecer. Gatinha. A palavra que me atira no buraco negro
do rio. E estou lá, na casa da infância, num quarto escuro, meu pai, o médico,
faz aplicações de raios ultravioletas por conta dos meus problemas
respiratórios. Minha mãe está no mesmo quarto ao meu lado e segura a minha mão
e eu choro. Não sei se por conta do desconforto da aplicação, se pela febre.
Ele também me chama de gatinha, o meu pai. E ela, pra me acalmar vai imaginando
o dia do meu aniversário de quinze anos. Que vou estar linda, num vestido
amarelo, ela descreve o vestido que sonha pra mim, descreve o baile e que vou
dançar com o meu irmão gêmeo, que vai estar de smoking, muito elegante, e que
vamos dançar a valsa juntos. O buraco. Não sei se choro por conta do
procedimento ou pelo pavor de ficar condenada a este casamento arranjado, um
irmão que certamente também não quer dançar comigo, nem na festa nem jamais. E
minha mãe vai descrevendo o baile, o vestido, a valsa. Naquele ano, quando fiz
quinze anos, meus pais se separaram e a tal festa de aniversário nunca
aconteceu. E por isso eu agradeço todos os dias. O buraco, a valsa
interrompida, as fantasias da minha mãe que não se cumpriram e que desde cedo
me ensinavam que a gente só tem validade neste mundo nos braços de outrem,
todos os dias eu agradeço o meu pé torto, os meus tropeços, indo pra bem longe
dos casamentos mal arranjados, rio afora, redemoinho.