Amora:
Lélia Almeida.
Não subestimem
uma mulher que está na menopausa. Ela está atravessando um portal. Uma louca e
uma sacerdotisa pelejam dentro dela, ambas serão incorporadas. A mulher na
menopausa devora o coração das duas com os dentes gastos e a fúria de uma
sobrevivente faminta. Falta-lhe, a cada dia, a visão, a cada estação ela
aumenta o grau das lentes que enxergam o mundo de fora. Medida providencial
para quem tem de ajustar a visão de dentro. Olhar pra fora distrai, ela vê
agora, o essencial. As rugas se acumulam ao redor dos olhos, há uma estranha
suavidade no semblante e olhos incandescentes. Nascem pelos no queixo e podemos
vê-la, ocasionalmente, roçando os pelos, olhar perdido, despudorada. Um gesto
comum este entre as valquírias que se preparam para o grande embate. Porque esta
é a última oportunidade de deixar as ilusões pelo caminho. Os pelos
caem ondem deveriam permanecer, nascem em lugares insólitos. Tudo se traduz
numa grande inconveniência. Ela está se transformando num animal definitivo. Os
olhos congestionados ao redor da pele empapuçada veem o que ninguém mais vê. O
corpo exibe as marcas do tempo, não é mais belo, não é mais jovem e esta é uma
grande libertação. A cabeleira perde a força, os fios de prata são ásperos. Não há reposição hormonal que dê conta da convulsão da
sua alma. Ela está se transformando num bicho, num animal cujo nome desconhece.
Deixa pelo caminho o manual das boas maneiras, fica de péssimo humor, se irrita
com os filhos, com os homens, com as amigas. Ela está furiosa, ela chora, a
alma em alvoroço. Todas as noites ela chora, não sabe para onde ir, nem quando,
nem como. Ela duvida de tudo e se vê num grande deserto que tem
de atravessar sozinha agora. Ela chora em momentos improváveis, ri
desavisadamente, não tem mais paciência com bobagens e sua capacidade de
alegria se expande. Os outros a veem frágil, vacilante, mas ela tem agora uma
força e uma perseverança jamais experimentadas. O fogo a toma por segundos, ela
está em combustão, depois drena os excessos de água. Ela está conectada com
a fonte e com o fogo. Fica exausta, dorme mal, acorda cedo. Há dias que comeria
um animal sacrificado no meio da savana e outros de parco jejum. O mesmo
acontece com o sexo. Um sexo agora sem culpa e nem performance, um sexo sem
pressa, fome da carne, fome urgente, fome boa. Ela toma chá de amora. Seu sangue é como a tintura
da amora, de uma cor diferente e que lhe confere outras propriedades
para que ela possa, enfim, criar a si mesma. A mulher caminha concentrada,
lembra de si quando era uma menina, uma adolescente, caminha cada vez mais em
direção à casa materna, ela sabe agora o que só as mulheres velhas conhecem.
Ela não perde tempo, ela avança. Deixa pelo caminho tudo o que não serve mais.
É uma marcha constante, infernal, movida pela força do fogo e da água. Deixem-na
ir, ela não pode parar, atravessa as noites insone, atravessa o medo, pensa
obsessivamente na morte, transborda de vida e não perde tempo. Prossegue. Não subestimem uma mulher
que está na menopausa. Ela é uma tartaruga velha, uma gazela, uma
mulher-macaca. Ela caminha cada vez mais rápida, desgrenhada e incandescente.
Ela vai atravessar o portal. Ela vai encontrar, definitivamente, consigo mesma.
Brasília, 14 de março de 2012.
3 comentários:
Gostei muito desse seu post e tomei a liberdade de o publicitar no neu blog.
Abraço, Adília
OI, LÉLIA
Continuas escrevendo belamente, usando a linguagem que é tua característica à flor da pele.....
parabéns
Nossa, Lélia...
Quanto mais a leio, mais quero ler!!
Adorei!!
Pensava tantas coisas a respeito de mim...mas não as entendia por vezes.
E vc as traduziu de forma simples, à flor da pele.
Parabéns!!
Beijos no seu coração.
Lily Ann
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