No Natal vai nascer uma menina, por Lélia Almeida.
Numa
tardinha quente de fevereiro, minha mãe, grávida de sete meses, subiu os três
andares do edifício onde morava, carregando uma melancia. O trabalho de parto
começou naquela noite. E ninguém sabia que era um casal de gêmeos. Meu irmão
nasceu um menino muito pequeno e quando minha mãe fez força para expulsar a
placenta o médico anunciou que era uma menina, menor que ele ainda. Durante
muito tempo o meu apelido familiar foi o resto. Meu irmão ganhou peso e pôde ir
para casa e eu fiquei ainda um tempo na incubadora do hospital. Fiquei para
ganhar peso através de uma sonda de soro e gotas de leite materno pingadas num
chumaço de algodão pelas mãos de freiras fervorosas que me batizaram como Lélia
Maria, em homenagem à Virgem, para que eu sobrevivesse. Sinto que todas as
decisões da minha vida não foram, inteiramente, tomadas por mim. Mas pelo
espírito valente daquela menina que se mantinha a sopros e determinação, dia a
pós dia, decidindo ficar.
Sempre
que vivi provas que me pareceram impossíveis de suportar agradeci a travessia.
Mas hoje eu sei que a decisão de suportar ou desistir não me cabia. Aquela
menina diminuta já tinha decidido por mim, lá, no início de tudo. E hoje,
quando me desespero entro em sintonia com o espírito dela, o corpo enrolado em
fios e panos, numa incubadora que talvez lembrasse a precariedade da manjedoura
como a daquela história de tanto amor. Ela respira e não desiste. Eu reverencio
aquela menina a cada noite escura que meu coração pede trégua. Então eu fico,
eu digo, depois de orar, e agradeço a sua força.
Eu
fico. E quero a minha jornada por inteiro.
Com
tudo o que me cabe.
Amém!
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