A
peixa e a sereia, por Lélia Almeida.
Minha mãe, que é gaúcha, foi morar no
Rio de Janeiro, menina ainda, com a família, e voltou aos 18 anos para o sul.
Foi com ela que aprendi a nadar e a respeitar o mar. Nos veraneios nas praias
do Uruguai quando eu era pequena tínhamos um ritual secreto, depois que todos
dormiam na casa, em noites de lua clara íamos nadar juntas. Ela recomendava que
não fossemos muito longe porque eu não imaginava os bichos que podiam vir à
beira-mar de noite, mas mesmo assim íamos. Eu fascinada com a brincadeira e com
os tais perigos insondáveis e sempre sabendo que se ela estivesse por perto
tudo ia ficar bem.
Ontem fiz o ritual sozinha, numa noite
nublada e de muito vento, conduzida pelo triângulo de águas desenhado no meu
mapa de nascimento. O mar estava calmo e a água morna. Antes de molhar os pés
fiquei olhando encantada a força e a velocidade do vento sobre a areia que
parecia mostrar, graficamente, como acontece nos filmes que indicam que na
velocidade das imagens, uma radical mudança do tempo. A virada de um tempo interno
e misterioso. Uma mudança inexorável, inadiável e soube assim que o pior já
havia passado. Molhei os pés e ali mesmo, na solidão da noite, tirei a roupa e
deixei os óculos e as sandálias juntos segurando o vestido.
A praia estava vazia e entrei no mar
nua, lembrando aqueles tempos, firme e segura, sem a minha sereia por perto.
Era uma noite esplendorosa e mergulhei sem medo nas águas agradecendo aquela
pequena bênção nestes tempos de tantas dores e de tantas mortes. E pude ouvir
as nossas risadas de outros tempos ressoando fortes com o barulho das ondas.
Agradeci imensamente às águas pela capacidade de improviso nos tempos tristes,
de maleabilidade e acolhimento, sua força perseverante e irredutível. Olhei
para o céu imenso e abri os braços em gratidão profunda, sem conseguir parar de
sorrir. E fiquei muito tempo dentro d’água numa espécie de batismo primordial,
renascida. Um ponto de mutação.
Quando voltei à praia só encontrei as
sandálias e o vestido, e os meus óculos não estavam mais. Não pude deixar de
pensar com graça e ironia que às vezes é preciso aprender a ver as coisas de
outra maneira ou, simplesmente, livrar-se dos óculos das ilusões perigosas,
estas mesmas que nos espreitam como tubarões, arraias e outros na beira da
vida.
No dia seguinte pela manhã parti da
praia mágica cheia de gaivotas. Não olhei pra trás e estava pronta para nadar
em outras águas. Fortalecida, dona e senhora de mim, as dores e as lágrimas
vencidas diluídas agora no vasto mar, segura pela mão firme de uma mãe primeva
que agora me habita finalmente.