quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Saudades do cronópio maior

Lélia Almeida.

Foi proposto o desafio: falar de Julio Cortázar. Falar mais especificamente sobre os 20 anos da morte de Cortázar, o cronópio maior, o ícone indiscutível da literatura argentina, amado, idolatrado e popularíssimo junto às figuras de Borges, Maradona ou Evita. Mas, como falar de Cortázar, de seu universo complexo e abrangente? Como fazer uma síntese do autor dos duplos, dos espelhos e dos labirintos? Eis-me aqui, portanto, frente a esse desafio, o de falar desse clássico da literatura contemporânea, estudado pela crítica literária, pela psicanálise, pela filosofia, e de quem dou breves notícias no intuito de realizar uma homenagem saudosa e justa.
O ano de 2004, ano dos 20 anos da morte de Cortázar, ocorrida em 12 de fevereiro de 1984, tem sido e será ainda sublinhado em muitos países como o Ano Internacional de Cortázar. Estão sendo realizadas, em âmbito internacional, palestras, colóquios, simpósios, exposições itinerantes, reedições de sua obra, publicação de esparsos e dispersos, numa tentativa mais do que justificada de manter a chama acesa, de mantê-lo vivo e inesquecível entre nós.
Exímio contista e romancista, misturou o lúdico com o revolucionário e nos brindou com uma obra singular, objeto de paixão e fanatismo por leitores do mundo inteiro. Sendo impossível sintetizar a complexidade de seu trabalho e estilo em poucas linhas, escolho, então, os caminhos traçados muitas vezes pelo próprio autor para se apresentar. E que o situaram na literatura latino-americana como representante inequívoco do que se convencionou chamar de o boom da Literatura Latino-Americana, nas décadas de 60 e 70 do século passado. Os temas do fantástico e do comprometimento político foram marcas certas da literatura desse período, e situaram a realidade cultural do nosso continente no primeiro mundo, apresentando-a como inovadora e sem precedentes.
Gabriel García Márquez ao tentar refletir sobre o chamado fantástico na literatura latino-americana, em seu discurso em Estocolmo, La Soledad de América Latina, em 1982, quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, disse que a literatura produzida no continente tinha características próprias porque a realidade histórica desses países beirava o absurdo, a fantasia, o imponderável. Chamou de realidade descomunal uma realidade em que se produziam patriarcas que se perpetuavam perversamente no poder, regimes totalitários que mandavam prender, exilar e desaparecer multidões de pessoas, que corresponderiam a populações inteiras dos pequenos países europeus.
Uma realidade em que eram possíveis guerras e revoluções que não acabavam nunca, e que provocam verdadeiros saqueios que resultavam no desamparo e abandono do povo latino-americano. Tudo isso numa paisagem devastada por toda sorte de vendavais, terremotos e outros caprichos da natureza. Márquez sugeriu aos intelectuais europeus que não olhassem para a literatura latino-americana somente como produto exótico dos países dos trópicos, mas também com detalhe e atenção para esses países e sua história, uma história trágica e absurda, como é a dos povos colonizados.
Cortázar, concordando com García Márquez e outros autores do boom, foi autor de textos como Carta a Roberto Fernández Retamar (sobre a situação do intelectual latino-americano), de 1967, O Intelectual e a Política na América Hispânica, América Latina: Exílio e Literatura, Realidade e Literatura na América Latina e Novo Elogio da Loucura, sobre as loucas mães da Praça de Maio, que revelaram seu pensamento sobre a situação dos países latino-americanos nos difíceis anos 60 e 70.
Ainda que acusado por muitos, sobre seu inicial exílio voluntário em Paris, longe do front e das difíceis realidades em que vivia o continente, Cortázar afirmou, por meio desses textos, seu engajamento como intelectual e como militante pelos direitos humanos em tribunas internacionais. Para ele, “se alguma vez se pôde ser um grande escritor sem se sentir partícipe do destino histórico imediato do homem, nesse momento não se pode escrever sem essa participação, que é responsabilidade e obrigação, e somente as obras que reflitam, mesmo que sejam de pura imaginação, mesmo que inventem a infinita gama lúdica da qual o poeta e o romancista é capaz, mesmo que jamais indiquem diretamente essa participação, somente elas conterão, de alguma indizível maneira, o tremor, a presença, a atmosfera que as torna reconhecíveis e entranháveis, que desperta no leitor um sentimento de contato e proximidade”.
É legítimo afirmar que, sem os acontecimentos históricos como os da Revolução Cubana, da Revolução Sandinista ou a de San Salvador, os rumos da literatura latino-americana, produzida então, talvez tivessem sido outros. A Revolução Cubana, praticamente contemporânea do boom, e as figuras de Fidel e do Che representaram uma verdadeira quimera para muitos dos escritores que, como García Márquez ou o próprio Cortázar, envolveram-se pessoalmente com esses eventos históricos e seus protagonistas.
A reflexão sobre as questões políticas, que criaram uma literatura de testemunho em todos os nossos países, deu-se, concomitantemente, à produção de uma literatura chamada de Realismo Mágico, Literatura Fantástica ou, ainda, de Real Maravilhoso.
Os textos em que Cortázar tentou sintetizar suas percepções sobre esse tipo de literatura ao qual ele se filiou, foram El Sentimiento de lo Fantástico (conferência apresentada na U.C.A.B) e, principalmente, um texto que, apesar do título – O Estado Atual da Narrativa na América Hispânica –, foi seu ensaio mais completo e erudito sobre o maravilhoso e o fantástico. Considerou o fantástico como uma temática e um procedimento recorrentes em autores da zona cultural do Rio da Prata num período que vai de 1920 aos dias atuais. E que se daria por um mecanismo do acaso, o mesmo acaso que, por exemplo, juntou, concentrou, na época da Renascença italiana ou em outros períodos da história, uma explosão criativa com características próprias.
o sentimento do fantástico seria, para Cortázar, um estranhamento originado das coisas banais da vida e do cotidiano. Longe de se tratar de situações fantasmagóricas e sobrenaturais, de lobisomens ou vampiros, o fantástico seria um estranhamento capaz de romper com o binarismo do racional e irracional, e que se instalaria como uma zona intermediária, uma ponte entre vários caminhos. Seria um espaço intersticial, de uma terceira fronteira, de um terceiro olho.
Para Cortázar, o caminho do fantástico poderia nos ensinar que, a partir da nossa percepção diferenciada desse outro, poderíamos ampliar nossos hábitos mentais de percepção da realidade. Lúdico e revolucionário, amado por muitos e criticado por alguns sobre suas posições políticas, defensor do polêmico boom como um momento de expansão para a literatura latino-americana, ao contrário de outros que o viam como um momento de mera especulação editorial, o grande cronópio amou a música e o cinema a quem dedicou ensaios e produções também singulares.
Sobre sua morte sempre falou-se sem muita precisão. Falou-se que ele teria morrido vítima de leucemia ou vítima de um câncer raro. Mas em biografia recente publicada em Barcelona, a autora uruguaia residente há muitos anos na capital catalã, Cristina Peri-Rossi, amiga próxima e musa de Cortázar, especula a possibilidade de o autor ter sucumbido a complicações provocadas pela Aids. No seu livro sobre Cortázar, que faz parte da coleção Vidas Literárias, da Editora Omega, a autora refere-se ao escândalo sobre a falta de controle dos bancos de sangue da França no início dos anos 90, e propõe que esse problema era ainda anterior ao momento em que as denúncias vieram a público. Cortázar teria feito uma transfusão de sangue em 1981, e todos os sintomas de que padecia no fim de sua vida coincidiam com os da Aids, doença ainda desconhecida e de difícil diagnóstico no início dos anos oitenta.


Poema escrito por Cortázar ao cubano Roberto Fernández Retamar , desde Paris, em 29 de outubro de 1967, por ocasião da morte de Che Guevara: “Não sei escrever quando alguma coisa me dói tanto, não sou, não serei nunca o escritor profissional pronto para produzir o que se espera dele, o que pedem ou mesmo o que ele mesmo se pede desesperadamente. A verdade é que a escritura, hoje e perante isso, me parece a mais banal das artes, uma espécie de refúgio, de dissímulo quase, a substituição do insubstituível. O Che morreu e, a mim, não sobra mais que o silêncio, até quem sabe quando.

Che:
Eu tive um irmão./Não nos vimos nunca/ Mas não importava./Eu tive um irmão/ que andava pelas montanhas/enquanto eu dormia./Amei-o à minha maneira,/tomei da sua voz/livre como a água,/caminhei muitas vezes/pela sua sombra./Não nos vimos nunca/mas não importava,/ meu irmão acordado/enquanto eu dormia,/ meu irmão me mostrando/ atrás da noite/sua estrela eleita.”