sábado, 16 de março de 2013








Quando as mulheres são falsas vítimas:
Lélia Almeida.


Recebo muitos e-mails elogiosos sobre as postagens que faço no Facebook, a das imagens de mulheres ou sobre as mulheres. A brincadeira começou porque sempre entendi que era muito interessante ver como as mulheres eram pintadas, fotografadas e isto me fazia pensar em como, sistematicamente, as mulheres são representadas. O meu álbum hoje tem mais de sete mil imagens e gosto, de maneira especial, da minha coleção de mulheres leitoras e escritoras com as quais eu mais me identifico. Pessoas do mundo inteiro me perguntam de onde tiro estas imagens, e elas estão na rede, roubo-as de quem as rouba de outros num movimento simples de compartilhar o que gosto e que vem de pessoas que fazem a mesma coisa.
Mas hoje recebi um e-mail curioso. De uma mulher que se identifica como uma feminista apaixonada, para quem a causa das mulheres é a coisa mais importante na sua vida, “o movimento de mulheres é a coisa mais importante da minha vida e estar no movimento é o que há de mais profundo no meu ser” ela diz e continua: “O seu trabalho divulgando estas imagens é um verdadeiro desfavor à luta feminista, suas imagens são piegas, apelando para a beleza, delicadeza e fragilidade que sempre fizeram mal a existência das mulheres, encerrando-as num estereótipo e se você, que se diz tão feminista, tivesse um pingo de vergonha na cara, usaria a sua página para divulgar o trabalho que é feito no enfrentamento contra a violência contra as mulheres, denunciando as mortes, estupros e as violências aos quais as mulheres são vítimas. A sua atitude é um desfavor à causa das mulheres e você deveria repensar a sua atitude ou fazer outra coisa melhor pela mulheres” e por aí vai.
Minha senhora: ainda considero que a maior violência que as mulheres sofrem neste mundo é a que as impede de pensar pela própria cabeça e expressar suas próprias ideias. E aviso que também vou continuar a postar as imagens que eu gosto entendendo que elas contêm muito mais do que delicadeza e beleza, se você prestar bem a atenção.
Já fui uma militante feminista, já trabalhei com políticas públicas para as mulheres, já fiz um doutorado sobre narradoras latino-americanas e já dediquei uma grande parte da minha vida para pensar sobre a condição feminina no mundo em que me foi dado viver, e tenho escrito muito sobre tudo isto. Mas há uma questão que realmente tem-se mostrado alvo da minha curiosidade e sobre a qual, embora eu tenha só algumas vagas impressões, sem conclusões definitivas ou bombásticas, vou dividi-la com você.
E que é sobre como esta cultura do denuncismo, do testemunho e do chororô contra a violência termina por continuar a vitimizar as mulheres e do quanto algumas mulheres simplesmente amam tudo isto. Algumas teóricas brilhantes já falaram sobre este tema, Elaine Showalter em seu livro Histórias Histéricas já falou da criação de uma cultura onde estas práticas que denunciam que todas as mulheres são vítimas de tudo o tempo todo, é uma construção cultural contemporânea que faz com que as mulheres não avancem, que permaneçam mergulhadas num caldo de cultura cheio de auto piedade, culpas, vergonhas e que talvez haja um profundo gozo em tudo isto, já que assim elas ficam estagnadas no lugar que lhes foi assignado, de passividade e que isto, quem sabe, corresponda a um desejo masoquista muito familiar às mulheres, que sempre tiveram ganhos reais através da cultura do sacrífico e do sofrimento. É uma hipótese.
Lisa Appignanesi em seu livro Tristes, Loucas e Más - a História Das Mulheres e Seus Médicos Desde 1800 dedica um capítulo a este tema, do quanto a cultura da denúncia da violência e das mulheres vítimas afirma mais ainda para as mulheres esta condição e as faz funcionar sempre num movimento circular, vicioso, dentro de um labirinto sem saída, e o quanto, muitas delas, sequer percebem que poderiam fazê-lo – denunciar, testemunhar, mas, principalmente, reagir a tudo isto de outras maneiras, além de permanecer como vítimas, numa postura mais afirmativa e inusitada. Também é uma hipótese, a de reagir pelo imponderável.
Pouco se fala sobre isto. Na aparência dos fatos, ao refletir com estas teóricas estaríamos repetindo a associação entre feminismo e histeria, já descrita por tantos. Mas acho que, no caso destas senhoras, a reflexão é bem mais sincera e complexa e recomendo a leitura.
Ao longo dos muitos anos que trabalho de maneiras diferentes com as mulheres já vivi situações e manifestações em que me vi no meio de verdadeiras representações das histéricas charcotianas, por quem, aliás, tenho profundo apreço. E continuo a percebê-las ainda hoje, muito presentes, expressão genuína de uma cultura do espetáculo do choro, da queixa e do pobrezinha-de-nós. Mas nós não somos só pobrezinhas. Já ouvi muitas mulheres que repetem a narrativa da história dos abusos, das moléstias, dos desrespeitos e que são, muitas vezes, as mesmas que emendam, na continuação da mesma narrativa, e em outro tom, quase sempre impetuoso, irônico ou divertido, sobre verdadeiras atrocidades e desrespeitos cometidos contra os filhos, contra os maridos e amantes, e mesmo contra outras mulheres com quem trabalham, todas amplamente justificadas com um discurso a quem tudo é permitido e devido, já que foram ou se sentiram vitimizadas de alguma maneira irreversível.
Todas conhecem o manual de instrução sobre os horrores cometidos mundo afora contra as mulheres, muitas desconhecem o tanto que gostam de lidar com esta desgraceira e algumas nem imaginam o tanto que reproduzem práticas desrespeitosas e violentas em suas próprias condutas.
De algumas mulheres já ouvi frases que me deixaram perplexa: “O meu negócio é violência!” (referindo-se de que é com isto que eu trabalho, e isto é o mais importante da minha vida) e com um brilho assustador em seus olhos, longe da compaixão ou da solidariedade e muito próximo do prazer e do fanatismo. “Este projeto é o sentido da minha vida!”, “Este projeto é o que dá valor à minha vida!” e por aí afora, e quase com um ímpeto, uma convicção e uma alegria difícil de desvendar e compreender, já que estes projetos lidam com realidades tristíssimas e dramáticas, de mulheres assassinadas, brutalmente violadas e desrespeitadas.
Não gosto da cultura da vitimização das mulheres, ela serve a interesses que não são exatamente os das mulheres, porque vitimizadas elas permanecem como cidadãs de segunda classe, passivas, defeituosas, erradas. Não gosto do tanto que algumas mulheres se lambuzam de prazer nesta condição de tristeza sem saída, fazendo coro junto às que santificam e supervalorizam a maternidade e às que decretaram que todos os homens do mundo são ou uns agressores natos ou uns frouxos sem saída. Não gosto da ladainha repetida à exaustão, numa sociedade onde os adultos, incestuosos de muitas maneiras, sempre passaram a mão em suas crianças, seja de forma explícita ou através de outros expedientes invasivos e simbióticos que são, muitas vezes, muito mais comprometedores do que os sexuais. Não me emociono mais com alguns gritos de guerra e repudio veementemente as práticas femininas autoritárias e manipuladoras onde as mulheres vitimizadas se arrogam,  ad infinitum, direitos de reproduzi-las com os demais.
Eu prefiro a Lisbet Salander, por exemplo, que não abre mão de ser quem é, longe do ideário das moças politicamente corretas, que gozam pouco e gritam muito, que só desqualificam os homens e que me confessam num mar de lágrimas e muito mimimi que no fundo, o que mais desejam, é ter um homem, filhos e uma casinha amarela. E que não sabem por que isto não dá certo com elas!
Eu prefiro as mulheres que pensam, as vozes dissonantes, as que se rebelam, as que transgridem e as que vivem suas vidas responsáveis pelas suas contradições e precariedades, prefiro as que apostam no riso e no humor às que chafurdam em auto piedade envoltas em demandas absurdas feitas aos homens, aos pais e aos seus filhos homens. E prefiro as que realmente são solidárias com as outras mulheres como propõem outras premissas feministas tão importantes como a do enfrentamento à violência, como as da irmandade ou sororidade, por exemplo. 
Por estas e por outras, minha senhora, vou continuar a postar o que bem entender na minha página e a pensar o que quiser com a minha própria cabeça doida e a expressá-lo sentindo-me desobrigada a obedecê-la. E a senhora sinta-se muito livre para me excluir do seu grupo de amigos, porque no meu grupo de amigos serão sempre bem vindos os que polemizam, os que discordam, e até os que não gostam do que faço, mas não serão bem vindos os que se dão o direito de me dizer o que tenho ou não tenho que fazer. Porque as minhas escolhas e decisões tem sido feitas ao longo de um caminho nada florido, nada simpático, nada submisso como é o caminho de quem não precisa mais da aprovação alheia para poder ser quem bem entender.