segunda-feira, 21 de junho de 2010

Homenagem à Pilar del Río:

Lélia Almeida.

Uma foto de Pilar del Río em algum dos sites da internet, na biblioteca da casa de Lanzarote, os cabelos embranquecidos, ela envolta em flagrante luto e tristeza, me impactou sobremaneira. No caso dela e de Saramago, dada a grande diferença de idade havida entre os dois, era provável que ele partisse primeiro.
Não pude deixar de pensar que a lida dos homens com o tempo é diferente da das mulheres. Os homens lutam contra o tempo, as mulheres, historicamente treinadas às rotinas do mundo doméstico, da maternidade, do espaço privado, vivem o tempo cumprindo inexoráveis rituais de espera e de paciência e aprendem, assim, a usufruir, para o bem e para o mal, de uma outra qualidade de tempo. A questão é que quase sempre os homens partem antes e isso, convenhamos, não é justo, companheiros! E tudo porque as mulheres cuidam mais de sua saúde, cuidam mais de si mesmas e dos outros e terminam por ser, mais resistentes às chuvas e intempéries da existência.
Convivo em diferentes lugares, com mulheres de diversas idades, de diferentes classes sociais e de interesses variados. Há de tudo um pouco: as que querem um homem pra chamar de “mor”, as vorazes predadoras sexuais que sequer percebem que há uma criatura para além do membro, as que já desistiram completamente dos homens, as que vivem bem sem eles, as que não vivem sem eles, as que procuram a alma gêmea. Há de tudo um pouco, sim, nestes tempos de desencontros avassaladores e toda sorte de mal-entendidos, que quase nos fazem esquecer o tanto que pode ser transformador em nossas vidas, um encontro amoroso.
Ainda sou do tipo que se derrete com os pequenos gestos que só os homens conseguem fazer na coreografia das trocas: o jeito como tomam das nossas mãos, tocam os nossos rostos, nos acolhem num abraço. E como sou uma romântica perdida, fiquei desolada ao ver a viuvez de Pilar del Río, gráfica, estampada naquela foto, pranteando em silêncio, a perda do seu companheiro, José Saramago.
A jornalista e tradutora Pilar del Río era uma mulher de 36 anos quando conheceu Saramago e ele era um homem de 63 anos. Ela apaixonou-se por ele através das palavras, apaixonou-se pelo seu pensamento, encantou-se primeiramente pela sua alma. E foi conhecê-lo e agradecer a interlocução – ele como escritor, ela como leitora – que a tinha transformado numa pessoa mais inteligente, mais sensível, mais humana. Souberam os dois, já neste primeiro contato, que havia mais do que uma simples admiração intelectual. E cinco meses depois se reencontraram para o que seria um definitivo encontro de amor que tinha começado através da comunhão das palavras, do amor à literatura, e de uma visão de mundo convergente no que se referia à política e à militância. Saramago em muitas ocasiões disse, publicamente, que a jovem espanhola Pilar del Río tinha-lhe salvado a vida, ou por outra, que tinha-lhe dado uma vida nova. Organizou sua existência, expandiu suas potencialidades, constituindo-se num daqueles modelos de relacionamento em que os dois, no encontro, fazem florescer o melhor de si.
E construíram uma existência plena em Lanzarote, cenário da história de uma convivência madura e serena, onde as conversas, discussões, viagens e traduções feitas a quatro mãos, continuou como tinha começado. Através de uma interlocução lúcida sobre o mundo e o tempo que lhes coube viver. E o ensinamento definitivo de que é preciso paciência e sabedoria para os encontros.
As atenções todas, nestes últimos dias, estão, justificadamente, voltadas ao falecimento de José Saramago, que teve uma vida longa y llena como una uva, como se diz em espanhol, e que nos deixa, através das suas histórias, sua militância, sua conduta e sua literatura, um legado inestimável.
A minha homenagem é para a espanhola Pilar del Río, que vai continuar, na casa cheia de livros de Lanzarote, a cuidar de Saramago, num silêncio repleto de palavras.
A minha homenagem é para ela.