sábado, 31 de outubro de 2009

A única forma de escrever a verdade é supor que o que você colocar no papel jamais será lido. Nem por outra pessoa nem por você mais tarde. Senão você começa a se desculpar. Você tem de ver as palavras emergindo como um longo arabesco de tinta do dedo indicador da sua mão direita; e ver a sua mão esquerda apagando-o. Impossível, é claro. Eu ajusto as contas com o destino, eu ajusto as contas com o destino, este fio negro que vou tecendo ao longo da página.

Margaret Atwood, In: O assassino cego.
(...) Tenho uma sensação constante de que estou vivendo à beira de algo que vai acontecer, e que nunca consigo alcançar. Meus nervos estão preparados para uma espécie de clímax. Sinto-me tensa, em expectativa. É tão aflitivo que começo a desejar uma catástrofe para aliviar a expectativa. Desejo que todas as calamidades, todas as tragédias, aconteçam logo. Quero cenas, brigas, lágrimas, quero ser devorada, quero bater nas pessoas. Sinto-me inquieta. Não consigo ficar muito tempo em lugar nenhum. Não consigo me sentar e não consigo dormir. Tenho sempre essa sensação de que preciso encontrar um alívio para essa espera, um momento estilhaçador, para poder repousar e dormir. O mundo inteiro me excita, sinto amor pelas pessoas nas ruas, a música mexe comigo a toda hora como uma carícia; sinto um desejo violento, e espero.
Sinto a tempestade chegando, sinto a angústia, mas tudo continua igual, lerdo, sem interrupção, sem relâmpago. Alguma coisa em mim quer romper, explodir. Em vez disso, tenho que tirar prazer rompendo a vida dos outros. Estou constantemente seduzindo os outros, encantando-os, capturando-os, ao mesmo tempo em que desejo que fossem capazes de fazê-lo comigo. Quero tanto ser capturada... Todo mundo me obedece, mas eles não encontram a chave de mim. Gosto de sentir seus corações batendo mais depressa, gosto de ver seus olhos flutuando, seus lábios tremendo, gosto de sentir a emoção neles. É como alimento. Fico fascinada com seus sentimentos. Sou como uma caçadora que não quer matar, mas quero sentir o ferimento. O que espero? Ser tomada pelo desejo do outro e nele me banhar. Arder. Quero ser despedaçada. Ao mesmo tempo que quero calor e simplicidade.

Anaïs Nin, In: A Casa do Incesto e Outras Histórias.
(...) Ela sai de casa apressada, vestida com um casaco pesado demais para a época do ano. Estamos em 1941. Há uma outra guerra em andamento. (...) Caminha decidida em direção ao rio, certa daquilo que fará, mas mesmo assim um tanto distraída, observando as colinas, a igreja e um grupo de carneiros, incandescentes, matizados por um vago tom cor de enxofre, que pastam sob o céu enfarruscado. Pára, vendo os carneiros e o céu, depois retoma o caminho. As vozes murmuram atrás dela; bombardeios zumbem no alto, ainda que procure os aviões e não os veja. (...) Ela (...) fracassou. Não é escritora coisa nenhuma, não de verdade; é apenas uma excêntrica bem-dotada. Pedaços de céu brilham nas poças deixadas pela chuva da noite anterior. Seus sapatos afundam ligeiramente na terra fofa. Ela fracassou, e agora as vozes voltaram, resmungando de modo indistinto bem atrás de seu campo de visão, atrás dela, aqui, não, basta virar que elas somem e vão para um outro canto. As vozes estão de volta e a dor de cabeça se aproxima, tão certa quanto a chuva, a dor de cabeça que vai esmagá-la seja lá o que ela for e tomar o seu lugar. A dor de cabeça aproxima-se e parece que os bombardeiros (está ou não invocando todos eles, ela mesma?) surgiram de novo no céu. Chega à ribanceira, sobe e desce de novo até o rio. Há um pescador mais acima., lá longe, mas ele não vai notá-la, vai? Começa a procurar uma pedra. Trabalha depressa mas com método, como se estivesse seguindo uma receita que tem de ser obedecida escrupulosamente para que dê certo. Escolhe uma, mais ou menos do tamanho e da forma de uma cabeça de porco. No momento em que vai erguê-la do chão e enfiá-la num dos bolsos do casaco (a gola de pêlo faz cócegas em seu pescoço), nota, não pode evitá-lo, a frieza de giz da pedra e sua cor, de um marrom leitoso, com manchas esverdeadas. Pára perto da beira do rio, que lambe a margem, preenchendo as pequenas reentrâncias de lama com uma água muito limpa, que poderia muito bem ser uma outra substância, inteiramente diversa daquela coisa amarelada, parda, sarapintada, de aspecto tão sólido quanto uma rua, que se estende uniforme de uma margem à outra. Ela se adianta. Não tira os sapatos. A água está fria, insuportavelmente fria. Pára, a água fria até os joelhos. (...) Continua desajeitadamente (o fundo é lamacento) até ficar com água pela cintura. Olha de relance para o pescador, que usa um paletó vermelho pescando e um céu nublado refletido em água opaca. Quase involuntariamente (parece involuntário, para ela), avança ou tropeça alguns passos à frente e a pedra a puxa para baixo. Por instantes, ainda, não parece nada; parece um outro fracasso; apenas a água gelada da qual pode sair facilmente, nadando; mas nisso a correnteza a envolve e a leva com uma força tão repentina e vigorosa que a impressão é a de que um homem muito forte surgiu do fundo, agarrou suas pernas e segurou-as de encontro ao peito. Parece algo pessoal. (...) Rápida a corrente a leva. Ela parece estar voando, uma figura fantástica, os cabelos soltos, a aba do casaco enfunada atrás. Flutua, pesada, por entre hastes de luz marrom, granular. Não vai muito longe. Seus pés (os sapatos se foram) batem de vez em quando no fundo e, quando o fazem, convocam uma nuvem indolente de sujeira, povoada por silhuetas negras de esqueletos de folhas que param quase imóveis na água, depois que ela some de vista. Fiapos de mato de um verde quase negro enroscam em seu cabelo e no pêlo do casaco e, por instantes, um chumaço grosso de capim lhe tampa os olhos, depois acaba se soltando e sai flutuando, torcendo-se, destorcendo-se e retorcendo-se. (...) Por fim, acaba parando num dos pilares da ponte de Southease. A correnteza a empurra, ataca, mas ela está presa bem firme na base da coluna quadrada, atarracada, de costas para o rio e de cara para a pedra. Enrodilha-se em volta, um braço dobrado sobre o peito e o outro boiando acima da curva do quadril. Um pouco acima dela está a superfície ondeada, brilhante. O céu se reflete incerto ali, branco e pesado de nuvens, cruzado pelo recorte negro da silhueta das gralhas. Carros e caminhões trovejam sobre a ponte. Um menino pequeno, não mais que três anos de idade, cruza a ponte com a mãe, pára na grade, agacha-se e enfia entre as frestas o pauzinho que vinha carregando, para que caia na água. A mãe o chama, mas ele insiste em ficar um pouco mais, vendo o pauzinho ser levado pela correnteza. (...) Ei-los então, num dia no começo da Segunda Guerra Mundial: o menino e sua mãe sobre a ponte, o pauzinho flutuando pela superfície da água e o corpo no fundo do rio, como se Virgina estivesse sonhando com a superfície, o pauzinho, o menino, a mãe, o céu e as gralhas. Um caminhão verde-oliva cruza a ponte, carregado de soldados fardados, que acenam para o menino que acabou de derrubar o pauzinho. Ele acena de volta. E exige que a mãe o pegue no colo, para que possa ver melhor os soldados; para ficar mais visível. Tudo isso entra na ponte, ressoa através de suas madeiras e entra no corpo de Virginia. Seu rosto, comprimido de lado contra o pilar, absorve tudo: o caminhão e os soldados, a mãe e o filho.

In: As horas, de Michael Cunningham.
(...) O que nela se elevava não era a coragem, ela era substância apenas, menos do que humana, como poderia ser herói e desejar vencer as coisas? Não era mulher, ela existia e o que havia dentro dela eram movimentos erguendo-a sempre em transição. Talvez tivesse alguma vez modificado com sua força selvagem o ar ao seu redor e ninguém nunca o perceberia, talvez tivesse inventado com sua respiração uma nova matéria e não o sabia, apenas sentia o que jamais sua pequena cabeça de mulher poderia compreender. Tropas de quentes pensamentos brotavam e alastravam-se pelo seu corpo assustado e o que neles valia é que encobriam um impulso vital, o que neles valia é que no instante mesmo de seu nascimento havia a substância cega e verdadeira criando-se, erguendo-se, salientando como uma bolha de ar a superfície da água, quase rompendo-a ... Ela notou que ainda não adormecera, pensou que ainda haveria de estalar em fogo aberto. Que terminaria uma vez a longa gestação da infância e de sua dolorosa imaturidade rebentaria seu próprio ser, enfim, enfim livre! Não, não, nenhum Deus, quero estar só. E um dia virá, sim, um dia virá em mim a capacidade tão vermelha e afirmativa quanto clara e suave, um dia o que eu fizer será cegamente seguramente inconscientemente, pisando em mim, na minha verdade, tão integralmente lançada no que fizer que serei incapaz de falar, sobretudo um dia virá em que todo o meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer , que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! O que eu disser soará fatal e inteiro! não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fundido, porque então viverei, só então viverei maior do que na infância, serei brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.

In: Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector, (1944)

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

D’O Livro dos Sonhos:

Lélia Almeida.

I
Tive um sonho naquela noite. Dormimos lado a lado. Cada um enrolado num edredon o que não deixava que os corpos se tocassem, tomei da sua mão e toquei seus pés para aquecer os meus, mas ele já não estava mais ali, já tinha partido para uma espécie de profundeza, sua respiração denunciava que ele já não estava ali. Meu corpo ansiava pelo calor do corpo dele, adormeci profundamente também e sonhei. Sonhei que estávamos nus e tentávamos nos amar, mas era muito difícil, ele tinha uma expressão facial de muita tristeza e dor, os corpos se desencontravam, o pau dele, que na ponta tinha uma espécie de cone oriental todo adornado e desenhado, me procurava e tentava entrar em muitas partes do meu corpo, com dificuldades, até que as partes se encaixaram e tudo fluiu com muita desenvoltura e prazer. E havia um animal aquático muito grande na beira de uma praia, que podia ser uma baleia, o animal gozava e de dentro dele saía um líquido espesso, meio gelatinoso que formava uma espécie de membrana viscosa e espessa, branca também, sobre a superfície da areia brilhante da beira do mar, uma membrana que podia ser a vela de um barco, uma tela de linho branco, frágil, transparente e muito resistente, e nela dormíamos da mesma maneira que estávamos na cama, juntos, mas separados, lado a lado, e o mar começava a levar a membrana-barco-vela-tela sobre as suas ondas, e nós sobre ela, adormecidos e entregues.

II
No sonho estávamos sentados numa mesa de bar. Muito próximos. E eu dizia que estava vivendo um momento muito rico, que muitas coisas incríveis estavam acontecendo como se houvesse uma conexão entre os acontecimentos. Ele pegava as minhas duas mãos, muito carinhoso, lembrei da cena do encantamento dos primeiros gestos. E fiquei encantada de estarmos nos tocando, como se isso fosse impossível de acontecer, eu beijava com muita timidez a mão dele e então nos beijávamos na boca e eu dizia. O Mago! E ele fazia uma espécie de bênção sobre as nossas mãos, abençoando, selando o nosso encontro, a nossa aliança. Depois ele me contava dos pais, das férias, que ele talvez visse os pais logo, já que estava perto do aniversário dele, em setembro, e eu pensava que ele tinha uma vida normal. Depois ele saía do bar e eu não sabia se ele voltaria porque tinha deixado todas as coisas dele no bar. E quando ele voltava estava fumando, o que era muito atípico. E eu olhava para o rosto dele que tinha aquela sombra de quem tem uma barba muito cerrada, e estávamos em pé indo para um jardim e eu olhava para o rosto dele, transformado agora, a boca estava pintada de alactaka, um corante, do kama sutra, com contornos pretos e ele era um djin, um gênio, um árabe.

III
Sonhei contigo. Tinhas vindo me visitar e eu estava muito feliz, parecíamos duas meninas brincando, muito íntimas, e estávamos as duas felizes. Eu abria as gavetas do meu quarto e te mostrava os meus cadernos de escrever, de capas de cetim, forrados com tecidos coloridos e sofisticados, os cadernos onde vou anotando o que depois escrevo. Mostrava um a um e adorávamos o ritual. Noutras gavetas havia jóias, anéis com pedras grandes, exageradas, outras mais delicadas, lenços, perfumes. E tu me dizias como era bom poder ver as minhas coisas femininas. Então pedias para que eu posasse para ti. Já tinhas pedido para a tua colega que era muito loira, e ela não tinha querido. Eu fiquei muito envergonhada e muito envaidecida, relutei em aceitar porque havia familiares meus por perto, mas eu queria sim. Então eu disse que, mesmo não sendo bela e nem proporcional, já tinha posado para um escultor uma vez. E me explicaste: não vou te desenhar, vou desenhar as tuas partes. Vais sentar nua numa superfície de vidro e eu vou estar embaixo vendo o desenho que forma as tuas partes repousadas no vidro. Isto é a lagarta. Prensada no meio das páginas.

IV
Cordélia, me ocorreu, a caçadora. Uma amiga do tempo da faculdade, a quem eu não via a muito tempo me apresentou a menina e disse, seu nome é Cordélia, como a da floresta. Um sonho iniciático, depois eu estava no meio de mulheres árabes, todas muito ricas trajadas com peças e brocados de ouro e muitas jóias e eu adorava o toque daqueles tecidos e as cores, adorava ser rica, e um homem alemão muito belo, com um carro potente e grande, me cortejava, ele tinha as pernas muito feridas. Depois todos tinham crescido, os filhos tinham se multiplicado, e eu e as mulheres tínhamos envelhecido. E éramos mulheres mais velhas com espírito de meninas. Eu ia de carro com a minha mãe ou com alguém como ela para um lugar no interior e passávamos por uma construção de pedras amarelas muito antigas no meio da floresta com esculturas de bronze e basalto, pombos, alguém disse, o colar dos pombos, o calor dos pombos, das pombas, eu disse, eu adorava vir a este lugar quando eu era pequena. E eu era conduzida a um lugar onde estavam outras mulheres que eram mães, como mães que iam me iniciar, como a mulher árabe aquela, a ricamente vestida. Atravesso uma passarela submersa em águas verdes e aparentemente pouco limpas. Há homens de muitas tribos ouvindo músicas estridentes, são homens rudes, fortes, viris. Há um homem deitado numa banheira, com calção de banho, ele geme, ele se confunde com o alemão doente, mas ele geme de dor no peito, no braço esquerdo, no coração, é um gemido de prazer, sexual quase, embora ele pareça velho e doente. Quando passamos pelo prédio de pedras amarelas eu lembrei do antigo hospital de tuberculosos, um edifício belo e imenso, de terracota, perdido no meio da paisagem da Catalunha, com os ferros dos portões que pareciam rendas. Tinha uma aura ao redor do prédio, quase uma bruma e depois eu ouvia vozes, choros muito fracos de meninos abandonados de peitos presos e corpos febris em pijamas listrados, desbotados, de cores neutras. E há um o caminho de folhas secas, avançamos num carro pequeno e não entendo porque visto roupas que ora me fazem sentir ridícula, ora muito confortável. E os véus transparentes, uma mulher diz, você precisa da licença da sacerdotisa para escrever. Avançamos, o hospital parece estar suspenso na planície, lá longe, mas perto o suficiente para que eu ouça os gemidos, os suspiros. E há, no fim de um caminho de terra vermelha, que não está pavimentado, um portal. Um umbral, um semicírculo de flores, jasmim, lágrimas-de-Cristo, brincos-de-princesa, sapatinho-de-judia, tudo misturado, lírios em algum lugar. Um cavalo branco passa, faz frio neste lugar e folhas secas em abundância, douradas, revoam, una hojarasca. Há uma inscrição muito antiga no frontispício do portal, ao lado do antiqüíssimo relógio de sol. Diz: as Belas Artes. E eu sou uma sacerdotisa. Mas no sonho não há só ruínas. Tudo reluz agora. O corpo, as roupas, a textura da seda. Sento no banco de pedra na frente do portal, dispo as roupas desconfortáveis e visto o véu branco e transparente. Meu corpo é velho e forte, solto os cabelos, acomodo as pernas na pedra fria, baixo a cabeça, o queixo quase encosta no peito, olho meus seios caídos, há muito deixei de ser uma menina, sou uma mulher muito antiga e carrego nas minhas carnes brancas os mistérios do tempo. Respiro fundo. Opalinas. Volto ao leite, a um leite impossível, improvável como o portal das Belas Artes e suas flores. E descanso finalmente numa espécie de paz há muito desejada. Fecho os olhos e oro. Oro em paz. O silêncio é o meu elemento agora, sob o véu. O silêncio infinito. O silêncio sem fim. O silêncio onde são gestadas as palavras.


In: O Livro dos Sonhos, 2008. (Fragmentos inéditos).