sexta-feira, 21 de maio de 2010

O que pode uma mulher?

Maria Rita Kelh.


Depois de te perder, te encontro com certeza / Talvez num tempo da delicadeza
(Chico Buarque)

Os argentinos, quem diria! Os últimos representantes daquela escola para homens que aqui no Brasil já fechou, elegeram uma presidente mulher. Ponto pra eles – não tanto pelo aspecto político da escolha, mas pelo antimachismo. Temos também Michele Bachelet no Chile e Angela Merkel na Alemanha. Benazir Bhuto sacudiu a ditadura no Paquistão. A Somali Ayaan Ali, refugiada na Holanda para escapar da lei islâmica, foi deputada pelo partido conservador de lá. As mulheres estão tomando o poder? O mundo vai virar de cabeça pra baixo?
Não nos precipitemos. Mulheres no poder não constituem uma novidade assim tão espantosa. Pensem na rainha Vitória, em Catarina de Médicis e Isabel de Castela. No século XX tivemos Margareth Tatcher, Indira Ghandi, Golda Meir. O poder é um lugar que tolera excentricidades, desde que não alterem seu funcionamento e os compromissos que o sustentam. Mulheres no poder não garantem, como sonhamos nos anos 1960, políticas mais justas, mais humanitárias. Podem ser tão truculentas e injustas quanto os homens. Condolezza Rice não pratica as políticas dos sonhos dos movimentos feministas. Nem dos movimentos negros. Se o feminismo lutou pelo reconhecimento de que a diferença entre os sexos não implica em diferenças de talento e competência, temos que admitir que também não garante diferenças éticas.
As poucas mulheres que se destacam em altos cargos políticos interessam menos do que a trajetória de milhões de anônimas para as quais o verbo poder importa mais do que o substantivo. Hoje se diz que as mulheres “estão podendo”. O início deste deslocamento empreendido pelas mulheres em direção ao território ocupado pelos homens foi registrado por Virginia Woolf em seu diário: ela escreveu que na Inglaterra da década de 1920 a humanidade estava se transformando, ou pelo menos 50% dela, ou seja, as mulheres.
Ocorre que os 50% de mulheres não se moveram de seus lugares tradicionais sem abalar a suposta identidade da outra metade. Masculino e feminino são campos escorregadios que só se definem por oposição, sempre incompleta, um ao outro. São formações imaginárias que buscam produzir uma diferença radical e complementar onde só existem, de fato, mínimas diferenças. O resto é questão de estilo.
Até pelo menos a segunda metade do século XIX, o divisor de águas era claro: os homens ocupavam o espaço público. As mulheres tratavam da vida privada. Privada de que? De visibilidade, diria Hanna Arendt. De visibilidade pública.
O termo é impreciso, pois nunca faltou visibilidade ao corpo feminino. Nem sob os véus islâmicos. Nem sob o jugo torturante de anquinhas e espartilhos. Do que as mulheres estiveram privadas até o século XX foi de presença pública manifesta não em imagem mas em palavra. A palavra feminina, reservada ao espaço doméstico, não produzia diferença na vida social. Ouvi do filósofo Bento Prado, em 1988, uma brilhante interpretação para a provocação lacaniana que diz “não existe A mulher”. Bento sugeriu que a inexistência de um significante que represente, no inconsciente, o conjunto das mulheres, deve-se ao fato de as mulheres, durante séculos, não terem inscrito sua experiência no campo da cultura. Foram objetos do discurso dos homens, não sujeitos de um discurso próprio.
No último século, o avanço das mulheres sobre todos os espaços da vida pública abalou a sustentação imaginária da diferença, dita “natural”, entre os sexos. Isto produziu nos homens o efeito de uma perda. Ou de uma feminização. A masculinidade, construção discursiva tão cultural como a feminilidade, vem sendo profundamente abalada. A pergunta freudiana, “o que quer uma mulher?” foi substituída, em nossos dias, por: o que é um homem? O que um homem precisa fazer para provar que é realmente um homem?
Se na vida pública os campos já se embaralharam de maneira irreversível, na vida privada a resposta parece banal: um homem “se garante” ao satisfazer sua mulher. Isto torna o poder sexual das mulheres quase intolerável, com efeitos terríveis de aumento da violência doméstica. Se a satisfação da mulher é a prova dos nove da masculinidade do homem, pode-se dizer que esta é hoje uma fortaleza sitiada. Ou uma “identidade” (aspas necessárias) acuada. Os acuados, como se sabe, costumam ficar violentos – mas a brutalidade não pode ser o último avatar da masculinidade.
Desde a popularização dos métodos anticoncepcionais, nada mais obriga uma mulher a permanecer casada, nem fiel, ao homem que não a satisfaz – supondo, como é provável que ela pense, que o problema seja apenas dele. Supondo que, no sexo, alguém possa satisfazer o outro por completo. Outro aforismo provocativo de Lacan, “não existe a relação sexual”, refere-se à impossibilidade de complementeriedade perfeita entre os sexos. Até mesmo o casamento, que na modernidade inspirou-se na idéia de que homem e mulher poderiam formar dois-em-um, já não é o que prometia ser.
Resta a histeria, esta forma de sofrimento neurótico que muitos psicanalistas (homens) consideram como o paradigma da feminilidade. A histérica acredita n’O Homem como detentor do falo – o que a torna irresistível para os que ainda esperam manter os territórios masculino e feminino rigorosamente diferenciados. Só que a demanda histérica é impossível de satisfazer, o que acaba por desmoralizar o poder masculino. A histeria seria uma espécie de “feminismo espontâneo”, na expressão de Emilce-Dio-Bleichmar: uma recusa do lugar estereotipado de castradas aliada à ignorância sobre o caráter simbólico do falo e da castração.
A alternativa seria a invenção de uma nova arte erótica, mais de acordo com as possibilidades de troca que já estão abertas, embora mal aproveitadas, a partir das novas configurações do masculino e do feminino. A relativa feminização dos homens e a recém conquistada “masculinidade” nas mulheres podem contribuir para romper os automatismos sexuais que sempre empobreceram a experiência erótica de uns e de outras. Se a delicadeza não precisa estar toda do lado das mulheres, os homens já não precisam se garantir pela força. Nem pela brutalidade.
Alguns meninos e meninas das novas gerações pós-feminismo sabem disso. Mas é preciso coragem e um pouco de imaginação para ultrapassar a miragem fálica que estereotipa a diferença sexual. As mulheres, que já nasceram “sem nada a perder”, poderiam ensaiar a mestria nas artes eróticas que a imaginação literária há muito lhes havia reservado.

http://www.mariaritakehl.psc.br/resultado.php?id=166

quinta-feira, 20 de maio de 2010

(...) O Ministro é um homem belo. Na verdade, um dos mais belos da corte. Por onde ele passa, com seu porte principesco, ressoam suspiros mortais. É um homem de estatura alta e formas perfeitas, dentes exatos e mãos grandes. Beleza, muitas vezes, é simplesmente proporção. Quando ele passa todos nos sentimos assim, com vontade de ser belos. Mas a mim ele nunca enganou. Tem olhos tristes e mão frouxa na hora do cumprimento. E homens assim, com a licença da informalidade, não dão no tranco.
O Ministro jamais olharia com interesse para uma mulher como eu. De carnes fartas e olhar curioso. Mas sua ascendência árabe falou mais alto. Os seus absconsos genes de lúbricos sultões orientais, que se esfregaram em odaliscas de pele alva, olhos delineados e bugigangas douradas, o traíram.
Mas isso ele só descobriu naquele fim de semana em que tivemos que nos encerrar juntos em lugar quedo e não sabido, para terminar a apresentação do Plano Nacional na minha casa, longe de tudo e de todos.
Ali ele se desvelou. E se revelou. Tal qual um príncipe que gostava de brincar de ser um escravo ou um grão-vizir transformado em criado. E eu, a mais leal e subalterna das assessoras, transformada agora numa princesa oriental.
Ele me pediu, então, que para este fim de semana de trabalhos, e para que o tempo rendesse ao máximo, que eu elaborasse um manual de instruções.


Instrução no. 1

Meu caro Ministro, vamos nos encontrar e cumprir com as regras da civilidade, não se preocupe. Iremos até a minha casa e arranjaremos algo para comer, vou me permitir um tratamento menos formal para estes dias de trabalho, o que facilitará também o resto. Você abrirá o vinho e eu providenciarei o jantar. Neste momento, ainda no início dos preparativos, você deverá deixar a cozinha para arranjar-se, eu irei até o meu quarto passando pelo corredor interno, você estará se aprontando no seu aposento e não nos encontraremos. Deixe tudo como está, o vinho aberto e a comida por fazer. As portas do meu quarto estarão fechadas, também as janelas, a escuridão será intensa. Haverá, na maçaneta da porta, uma máscara, destas que se usam nos aviões para dormir. Vista-a, nós não poderemos nos ver até que eu ordene. Trate de estar devidamente pronto, ou seja, com uma ereção completa. Você vai adivinhar o local da cama, onde estarei a sua espera. Não tire a roupa, eu também estarei vestida, será muito rápido, pois teremos o jantar a meio andar. Dispa-se o mínimo possível, o suficiente para o que deve realizar. Vou estar de costas, não nos veremos, vou estar, na verdade, de quatro, as carnes muito brancas reluzindo na escuridão da peça, apenas descobertas. Não haverá beijos, nem olhares, nem carícias, nem promessas, importantíssimo, nada de preliminares, nada de preparação. Você entrará no quarto, adivinhará meu corpo sobre a cama e simplesmente me penetrará, por trás, com força. Me penetrará com firmeza, até gozar. Não se preocupe com nada, vou conduzi-lo com rigor, estarei pronta, a espera, e você, simplesmente, cumpra com as instruções. Só isso, me penetre com força até gozar. Só você deverá gozar, este é o acordo, que você goze, e sem tardança. E que depois se retire então, de volta para a cozinha onde nos encontraremos para continuar a preparação do jantar. A brancura da minha pele imersa na meia luz o guiará. Estarei pronta também, encharcada na espera, o anel expectante, as pregas úmidas, este é o chamado inexorável, o cheiro de nozes almiscaradas que sai das minhas entradas, você será atraído pelo cheiro, e tocará levemente com a ponta do fuste os meus lábios humectantes, muito leve, só este contato que lhe arrancará um rugido do peito ofegante, calma, logo você poderá me enfiar, pense nas nossas línguas que porventura se tocariam, a ponta de uma procurando a outra numa simbiose perfeita, e antes disso, a respiração apenas, o hálito das nossas bocas procurando na escuridão um alento, minha serpe aflita enredada na sua, pense nas nossas línguas duras e espere, eu me alojarei agora, o rabo branco a movimentar-se em movimentos orbiculares indo ao encontro de si, assim, este é o nosso único ponto de contato, você pode sentir como as partes de buscam e se conhecem, e também que não é preciso ver para poder sentir, como cães e gatos e porcos seremos, o fuste indo para a casa, uma choupana pobre e aconchegante no meio de uma floresta, e a casa em chamas, a idéia é essa, encontrar o mapa da caverna e entrar. Os movimentos em círculo, os meus lábios escancarados babando à espera da vara, assim, entre, agora, a dança redonda essa que facilita a entrada, um anel a ajustar-se, através do movimento, ao volume e ao cumprimento, parabéns, Excelência, o tamanho é perfeito e a ereção severa, movimentos ascendentes, coordenação, cuide da respiração, e fique imóvel, eu conduzo os movimentos, o rabão nacarado em movimentos circulares a penetrar-lhe o cacete, um círculo e para dentro, outro círculo e avante, assim, assim, isso, Excelência, esse é o ritmo, agora você está inteiro dentro de mim, em harmonioso encaixe, e sinto a sua surpresa, seus gemidos a denunciam, uma mulher de rabo tão largo e carnes tão fartas com a quirica apertadinha e justa como a de uma infanta. E você desfruta desta surpresa, geme óhs e ais significativos e vou ajustando a melada cada vez mais profundamente na sua haste aflita. Assim, agora você está seguro, e agarra os gomos com força e entra frenético, o cheiro adocicado é quase insuportável, está perfeito assim, esse é o ritmo, os movimentos circulares permitem que, ora sim ora também, a castanha roce a base da vara e intensifique a velocidade da dança, e o saco tal qual um pêndulo premendo as minhas coxas, socando, eu sei que você vai gozar, Excelência, posso sentir a sua urgência. Contenho as contrações, essas que pressionam como uma boca de criança o fuste cego e o chamam, mais e mais, para dentro, assim, meu Soberano, assim, o jorro quente derramado, um leite ácido que sabe a nozes agora e que me inunda. Relaxo os joelhos e você desaba sobre o meu corpo, cobre-o com sua superfície grande e deixa-se ficar assim, ofegante, sentindo o cheiro dos meus cabelos suados. Não tire a máscara, descanse, seus braços fortes agarrados aos meus, enquanto você volta, Excelência, náufrago.


Lélia Almeida.
In: A escrivã da corte, 2007. (Fragmento, Texto inédito).

quarta-feira, 19 de maio de 2010

A vida se espande ou se encolhe de acordo com a nossa coragem.

Anaïs Nin.
...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ...
(Sá de Miranda)

terça-feira, 18 de maio de 2010


Volver

Lélia Almeida.

Voltei para a casa materna depois de muitos anos de ausência. A última vez que estive lá, minha mãe me segurava firme entre as suas pernas jovens e penteava, enérgica, os meus cabelos. Trançava os meus cabelos. E enquanto trançava, desenhava o meu destino. Minha mãe nunca soube muito bem o que fazer comigo, a casa das mulheres também estava vazia quando ela chegou, depois da partida prematura da minha avó, a pintora. Vou contar sempre esta história, repeti-la, para que ninguém esqueça de lembrar o preço que se paga quando as coisas ficam fora do lugar. A casa se encheu do desamparo das meninas sós e dos espelhos escondidos sob a gaze branca da névoa do tempo. Voltei para a casa materna, depois de errar, por muito tempo, perdida. Os espectros da minha avó, o da minha mãe, rondam a casa, agora. Tudo sabe a desolação, um travo de amargura, objetos e sentimentos que não servem mais, se misturam. Antes de abrir a janela retiro os lençóis que vedam a superfície dos espelhos. Acendo uma vela e os objetos podem, finalmente, relaxar, na sua imperfeição. A jarra de porcelana para o leite, o açucareiro trincado. As achas de lenha que pareciam esperar por mim, ao lado da lareira. Acendo o fogo. E invoco Héstia, a mais caseira das deusas virgens. Deponho as armas de Artemisa sob a soleira da porta e deixo-a ir. É preciso esgotar os arquétipos para que eles nos liberem também. Invoco Héstia. O fogo é firme e suave. Vou orar antes de dormir. Só abrirei as janelas ao amanhecer. Ave Maria, cheia de graça. Depois da noite fria e escura abrirei a janela. Bendita sois vós, entre as mulheres. As brasas adormecidas sob as cinzas. Bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Muitas cinzas, o lume durou até tarde. E sempre me perguntei sobre como teria sido a história do mundo se no colo da Virgem tivesse uma menina. Santa Maria, mãe de Deus. Sonhei com Ana, a mãe da Virgem, esta noite. Ela me dava de beber em suas mãos. Rogai por nós, pecadores. Ela me dava de beber em suas mãos um leite morno e alvo. Agora e na hora da nossa morte. Abro as janelas, reavivo as brasas, o fogo reacende. Amém. Amém para todas as transformações. Para uma casa velha que pode voltar a ser um lar. Para as almas das mulheres sábias. Começo a limpeza, é uma faxina, na verdade. Meu corpo velho adquire a agilidade de movimentos de uma menina. Sacudo os lençóis brancos e empoeirados. Limpo os espelhos com a manga do suéter velho. Lá estou eu, no fundo do espelho. Cabelos brancos, olheiras. Há muito que fazer. Espantar os medos, aquecer a casa e cuidar das meninas da família. E assim, acolher as meninas do mundo. Vinde a mim as meninas. Eu voltei, depois de muito vagar por territórios inóspitos, ao calor da casa materna. Estou pronta para ocupar o meu lugar e, como os objetos que apenas esperavam ser descobertos, poder, finalmente, ser eu mesma. A mãe de mim.

In: Anovaela, texto inédito, 2008-2010.