sexta-feira, 6 de março de 2009

Discurso pronunciado por ocasião da 9ª Anistia Cultural, no Salão Negro do Palácio da Justiça em Brasília, em 06 de março de 2009 por ocasião ao evento comemorativo do Dia Internacional da Mulher de 2009, promovido pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça/MJ e com parceria do PRONASCI.
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Brasília, 6 de março de 2009.

Senhoras e Senhores,

Muito bom dia. É com imensa alegria que venho celebrar com vocês este Dia 8 de março.
Quero, inicialmente, agradecer a Comissão de Anistia pelo convite de participar desta cerimônia e dizer que, a partir deste momento, o Projeto Mulheres da Paz, uma das ações mais importantes do Programa Nacional de Segurança com Cidadania, começa uma interlocução importante com os trabalhos da Comissão de Anistia e que isto é, para nós, motivo de verdadeira satisfação.
Quero cumprimentar a mesa na pessoa do Dr. Paulo Abrão, presidente da Comissão e dizer algumas palavras antes de apresentar as nossas convidadas.
Para tanto, vou buscar em outros tempos do Movimento Feminista, nas décadas de 60 e 70 do século passado, alguns conceitos dos quais vou me valer para abrir estes trabalhos.
Particularmente prefiro sempre voltar às raízes, às raízes das palavras, dos conceitos, as raízes constituem-se sempre num lugar seguro, consistente, sem o qual não é possível o movimento inovador das ramificações e dos desdobramentos mais surpreendentes.
Vou me referir aos grupos de mulheres, principalmente na Itália, na França e depois na Espanha, companheiras de ativistas e militantes de esquerda que não se contentaram em ocupar um papel subalterno junto aos seus maridos. Perceberam que, de uma maneira geral, tanto no espaço doméstico como no espaço da militância, eram simples secretárias e meras coadjuvantes dos seus companheiros, enquanto eles sim, construíam e organizavam o que veio a se configurar, imediatamente, como partidos e importantes organizações de esquerda.
Na raiz da história do feminismo, que começa muito antes destas décadas estão palavras importantes como autonomia e cumplicidade e que foram traduzidas de muitas maneiras como irmandade, sororidade, sisterhood, etc.
Aquelas mulheres, insatisfeitas, decidiram sair de um papel de coadjuvantes e fundaram seus próprios grupos de mulheres para iniciarem suas reflexões. Reuniram-se em escolas e igrejas, com as companheiras de operários e cidadãos comuns e elegeram alguns temas para começar a conversar. Optaram pelo texto literário, entenderam que a literatura e, principalmente a literatura de autoria feminina daria, através do imaginário, as respostas que elas buscavam. O resultado foi o mais frustrante possível. Toda a literatura européia do século XIX apresentava um sem número de heroínas órfãs, fugindo da casa paterna autoritária e castradora e jogando-as num mundo inóspito onde elas morreriam loucas, doentes, prostituídas, abandonadas e desamparadas.
Muitos anos depois, Liliana Hecker, uma ficcionista argentina, escreveu um texto que se chamava Las hermanas de Shakespeare, onde ela conta a história possível de uma tal Judith Shakespeare, imaginando o que aconteceria se William tivesse uma irmã, talentosa como ele e o que aconteceria com ela se ela quisesse escrever. Ela fugiria de casa para poder escrever e depois, perdida em Londres, se apaixonaria, engravidaria de um cafajeste e morreria de aborto e penúria e não escreveria.
Frustradas com personagens femininas tão precárias aquelas européias começaram a se perguntar, naquelas veladas literárias e de tomada de consciência feminista, onde estavam as mães daquelas protagonistas e porque aquelas heroínas, abandonadas, estavam fadadas a destinos tão cruéis. As mães que cuidam de suas filhas mulheres estavam banidas do imaginário literário, e do imaginário iconográfico das artes plásticas também. Porque não havia, ao contrário da literatura de autoria masculina sobre os homens, uma história de alianças e cumplicidades entre as mulheres.
Sempre me pergunto, numa espécie de exercício de imaginação ativa, que se no colo da Virgem Maria estivesse uma menina, como teria sido a história do mundo e das mulheres? Como seria esta história se tivéssemos sido amparadas pelo amor de nossas mães, que por sua vez teriam sido amparadas e valorizadas pelo amor de outras, numa espiral mágica a um passado insólito.
Virginia Woolf, na década de 20, num outro momento histórico importante para o feminismo, em busca de respostas para perguntas parecidas, entrou na biblioteca de uma importante universidade inglesa e percebeu que só havia autores homens nas prateleiras. E que a história que eles contavam, portanto, tinha de excluir as mulheres como protagonistas e mantê-las como projeções. Ana Karenina, Ema Bovary, Antígona e tantas outras são apenas projeções do imaginário masculino que cria grandes personagens femininas e que sempre, ao final da história, as enlouquece, adoece ou suicida, como castigo e punição as suas transgressões.
Virginia Woolf percebeu que para que as mulheres pudessem escrever, elas precisavam de um quarto próprio e algumas libras por ano. E que a independência financeira era fundamental para que elas se tornassem intelectuais e artistas já que as nossas mães e as nossas avós não nos tinham deixado um legado espiritual e nem um legado material.
Aquelas mulheres européias dos anos 60 e 70, insatisfeitas com o que encontraram no texto literário levantaram uma questão fundamental: era fundamental que as mulheres estabelecessem um outro tipo de relação entre elas, que elas legitimassem as suas práticas e condutas, que elas se apoiassem e se reconhecessem, que elas fossem uma espécie de fiadoras da demandas e necessidades da vida das outras.
E criaram, assim, um dos conceitos que mais me encanta na história do feminismo que é o conceito de affidamento, que além da solidariedade pura e simples propõe que a experiência de outras mulheres é fundamental, estruturante, modelar para todas nós, e nascia ali, deste conceito e desta descoberta o que algumas filósofas feministas de muitos países chamaram de genealogias femininas.
As mulheres que estão presentes nesta mesa, nesta manhã, e muitas das que serão anistiadas na audiência de hoje são, historicamente, as mulheres com que escolhi me parecer. Os meus modelos, as minhas musas, as minhas companheiras de caminhos.
Numa cena do filme sobre a vida da Leila Diniz ela ganha dois kimonos com dizeres em japonês, num estava escrito felicidade, no outro estava escrito coragem, ela, como sabemos, escolheu o da coragem. Estas mulheres que estão presentes aqui, hoje, sempre souberam que a felicidade é um luxo para poucos e que a vida é feita, na verdade, de outros valores e de muitos poucos luxos. E pautaram seus caminhos de vida no exemplo de outras mulheres também, numa prática genealógica, estabelecendo outras relações de affidamento e ensinando a outras mulheres sobre um lugar de dignidade, coragem e de muita fúria.
Nesta sala estão juntas algumas das mulheres mais corajosas e bravas deste país, no auditório ao lado estão sendo homenageadas as mulheres da Força Nacional, não podemos dizer que o Ministério da Justiça, com sua Sala de Retratos tão parecida com a biblioteca inglesa da Virginia Woolf, será o mesmo depois deste 8 de março.
Estas mulheres contam a história do país desde uma outra perspectiva e o trabalho político, pedagógico e cultural da Comissão de Anistia, na recuperação destas histórias e na escuta destas narrativas é um dos mais emocionantes deste governo.
Moema Viezzer ao ouvir a história de Domitila Barrios de Chungara, criou, juntamente com Elizabeth Debray e Elena Poniatowska um novo gênero literário na América Latina que resultou no que hoje se denomina literatura de testemunho. Margarida Genevois foi membro da Comissão de Justiça e Paz da Diocese de São Paulo por 25 anos e fundadora da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos, Jessie Jane Vieira de Souza é historiadora, ex-perseguida política e foi uma das fundadoras da Associação pela Reforma Prisional.
Mas isto é pouco dizer sobre a história destas mulheres que a partir de uma circunstância história, a de terem nascido e vivido num determinado momento da história deste país, construíram biografias e trajetórias exemplares para todas as mulheres brasileiras. Elas contarão, ao se apresentarem, um pouco destas histórias, e vocês entenderão então porque elas são as nossas homenageadas.
Quero terminar a minha fala dizendo que as demandas das Mulheres da Paz que iniciaram há dois anos atrás este projeto aqui no Ministério da Justiça, era uma demanda simples: seus filhos e filhas, homens e maridos tinham sido abatidos nas regiões metropolitanas mais violentas do país, pelo tráfico ou pela polícia e elas queriam justiça.
No ano passado perdemos Vera Lúcia Flores, Mãe de Acari, que morreu esperando por uma resposta do Estado brasileiro sobre o que aconteceu há 19 anos com 11 adolescentes mortos e desaparecidos em Magé, no Rio de Janeiro. E há uma semana exatamente, morreu Euristéia Azevedo, a Téia, uma das fundadoras do Movimento das Mães do Rio, aos 66 anos, de infarto. Dentro de um mês, depois de 11 anos o caso da morte do filho dela na chacina do Maracanã vai a júri popular. O coração da Téia não agüentou, ela não quis ver mais injustiça e adiamentos. Ela partiu.
Ela sempre dizia: Dra. Lélia, nós estamos ficando velhas, e nós somos os arquivos vivos destas histórias, daqui a pouco ninguém mais vai poder contar o que realmente aconteceu.
As mulheres das minhas genealogias femininas, com as quais eu estabeleço relações de affidamento, com as quais eu me identifico e com quem eu quero seguir os meus caminhos de sonhos, trabalhos e reflexões, são mulheres simples como a minha mãe, a minha avó, como as que estão aqui hoje, e como as Mulheres da Paz.
Muito obrigada, bem vindas e um feliz 8 de março para todas nós.