domingo, 1 de novembro de 2009




Tereza

Lélia Almeida.

Os campos da campanha. É assim mesmo que eu sinto: não pode haver suavidade maior, não pode haver grandeza maior naquela vastidão verde e irregular, um sentimento sagrado, aquela paisagem é sacra sim, grandiosa, majestosa, como se estivesse no início dos tempos e sobrasse aquele lugar e um homem e uma mulher muito antigos e onde não coubesse mais nada. Mas é o que eu vejo quando fecho os olhos e vejo o amanhecer naqueles campos perdidos, remotos, antigos. Céu de manhãzinha, o frio sem igual daqueles campos abertos, o vento que zune impiedoso, muito longe no desenho perdido desta tela. Uma carreta de rodas gigantes se aproxima lentamente, no vagar dos bois, de um casebre miserável, perdido na vastidão do campo, entre um açude e uma figueira, perto do Morro do Chapéu. Faz muito frio, dois peões enrolados em palas velhos e surrados conduzem a carreta que leva uma carga frágil e singular. Um dos homens masca um palheiro meio apagado, tem um chapéu enterrado até os olhos semicerrados e se protege do frio encolhendo a cabeça entre os ombros. O outro homem, o que dirige a carreta, é o que volta e meia olha para trás, talvez preocupado com a menina. Procuram o seu Aluízio, tudo cria de Santa Eulália, as terras da família de Gerônimo. A noite ainda é pesada e fria, muito longe o amanhecer se faz notar, como se viesse, lento também, alumiar a carreta de bois, o céu róseo e o minuano impiedoso a moldar o perfil irreparável, exato, poderoso do Morro do Chapéu. A carreta avança e uma menina embrulhada em mantas de lã de ovelha, encolhida no fundo da carreta, tem os olhos abertos, assustados, muito pretos, e aperta com suavidade nos braços uma outra menina, muito pequena, recém-nascida mesmo, que agora dorme e fica muito parecida com a boneca de panos, esta também como que adormecida entre as duas. O sol começa a despontar quando a carreta se aproxima da casa onde moram Dona Luna e seu Aluízio. O homem sai de dentro de casa ao sentir o barulho da carreta se aproximando. Dona Luna toda de preto, enrolada numa manta de lã, sai também para saber quem chega. O encontro é breve muito breve, pois afinal trata-se de cumprir ordens, de entregar uma encomenda incômoda, desfazer-se de um incômodo. "Foi Don Gerônimo quem mandou, é pra se desfazer da criatura, esta aqui, a vadiazinha vai pra Montevidéu pra não envergonhar o patrão", disse o homem que mascava o palheiro. Eva levantou-se da carreta a mando dos homens, com a pequena e a boneca nos braços. Os olhos pretos muito assustados, meio sonolentos e as tranças muito compridas, amassadas, o rostinho vermelho de vergonha e frio, o olhar suplicante para Dona Luna. A voz saiu frágil, sumida: "Por que eu não posso ficar com o bichinho? Ela é tão pequena..." Dona Luna que não entendia bem o que acontecia ficou surpresa de ver um bebê tão pequeno nos braços da menina. "A menina pode entrar" disse a velha, mas os homens seguraram Eva, tiraram a bebê dos seus braços e disseram que tinham pressa, tinham que embarcar a cunhada de Don Gerônimo ainda de manhã, tinha gente em Rivera esperando por ela. O bebê começou a chorar nos braços de Dona Luna que recebera ordens de livrar-se da criatura. Os homens puseram Eva de volta na carreta e se prepararam para partir. A menina sentou na carreta e deixou as pernas pra fora, pendentes, enrolada na manta, o vestido comprido e amassado, as tranças compridas, o olhar perdido, abraçada na boneca de pano. A carreta retoma seu caminho com seus ruídos pesados, metálicos, os animais em movimento e o sol que desponta mais e mais tingindo aquela paisagem infinita de róseos e vermelhos. O vulto de uma menina sentada na carreta é o desenho triste de muita incompreensão, medo, solidão. Dona Luna olhava a cena de Eva partindo, e ela com o bebê nos braços, um bebê que ela ainda nem sabia se era menina ou menino. Era um bebê muito pequeno que chorava de fome, um chorinho de pássaro pequeno, muito agudo e rouco. Dona Luna recebeu do peão de Don Gerônimo uma trouxa pequena onde tinha uns trapos, panos, cueiros muito velhos e que faziam às vezes de roupas para o bebê.

In: ALMEIDA, Lélia. Senhora Sant’Ana. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 1995.