sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Assim estão as pessoas, por Lélia Almeida.


A consulente me conta que estava namorando um rapaz de 30 anos, ela tem 55. Que viveu um verdadeiro tsunami erótico e que foi tudo de bom, mas que cansou. Que não tem mais idade pra sexo gym todas as noites e que adora dormir sozinha. O rapaz não entendeu nada, desapontadíssimo perguntou a ela se não estava contente com o desempenho dele. Ela me explicou que quando a gente tem que dar muita explicação é porque a pessoa não vai ter condições de entender. E disse a ele de forma bem didática: querido, preciso da minha cama e da minha solidão pra trepar quando eu quiser e pra poder peidar em paz, pode ser?
A consulente me conta como foi difícil a separação do filho, um rapaz adulto que foi morar sozinho. Às vezes a gente tem de fazer rupturas definitivas para poder se encontrar de outra maneira, ela me diz. E conta que agora eles passeiam de ônibus pela cidade, cada um coloca um fone no ouvido e escolhem músicas no celular, olham-se cúmplices e risonhos ouvindo "I follow rivers", o cordão umbilical leve, finalmente.


(Lélia Almeida)

Perdi um gato.
Perdi um dente.
Perdi uma camisola azul.
Perdi um amor
um pé de limão siciliano
e outro de limão taiti.
Perdi o chão.
E achei o meu caminho de volta pra casa.


(Lélia Almeida)



Doralice, meu amor, por Lélia Almeida.

Fui a Caxias do Sul participar da Feira do Livro de Caxias e me hospedei na casa da minha amiga de toda a vida, a Lolô Heloisa Mezzalira.
No dia que cheguei a Caxias minha amiga viajou para Porto Alegre e deixou as instruções para que eu cuidasse da Doralice, uma cocker de 14 anos, que não deixasse de alimentá-la e que a levasse para fazer xixi, lembrando que ela é velhinha, que precisa ser mimada, etc. etc.
Apaixonei-me imediatamente pela Doralice.
Estava tão preocupada com os cuidados com ela que sonhei que a Dora fazia xixi na minha cama. Às 6:45 da manhã estava a postos para cumprir a minha missão. Ela acordou às 7:15 e descemos os dois andares. Doralice desceu as escadas em desabalada carreira e me arrastou, ignorando o meu tornozelo avariado e tive dificuldades imensas em acompanha-la. Quando chegou à porta do edifício, antes que eu pudesse abri-la, Dora relaxou e fez um xixi imenso no corredor. Abri a porta e fizemos um passeio pela rua com direito a cocozão e mais xixi. Depois de deixa-la em casa desci com balde e vassoura para limpar o corredor, me sentindo uma incompetente na minha missão.
Voltei pro sofá perto da cama da Doralice que dormia como uma anja. Os movimentos da rua começavam na manhã fria da cidade. Fechei os olhos e ouvi a respiração da Dora. Os barulhos da rua ficaram lá longe. Fiquei concentrada na respiração dela e tudo ficou calmo novamente. Uma respiração tranquila e rouquinha que me devolveu a paz que eu precisava depois de me sentir um fracasso cuidando de uma cã idosa. Reconciliada com este e tantos outros fracassos fechei os olhos e comecei a respirar no ritmo da Dora. Inspira-expira e uma paz luminosa invadiu a sala e a minha vida. Ficamos velhas, eu e Dora. Não desço mais as escadas velozmente, tenho de levar mais tempo para fazer determinadas coisas, sob pena de fazer um xixi no lugar errado. Eu sou a Doralice. E fui tomada de uma alegria mansa, sabendo que o meu tempo é outro agora, sem pressa e sem ter que dar certo ou ser vitoriosa. Adormeci no ritmo da Doralice, aliviada, velha, feliz e grata pelos ensinamentos da minha nova amiga.


Travessia, por Lélia Almeida.


Ele me levou para conhecer a praia. Uma praia tranquila e cheia de gaivotas. Entrei imediatamente no mar, ignorando a água fria e a resistência dele com o mar. Depois de uns dias ensolarados e de mar calmo ele decidiu entrar comigo. Expliquei que depois da arrebentação as águas sempre são plácidas e tranquilas, que não tivesse medo, que confiasse em mim, eu que amo nadar em mar aberto e ficar muitas horas dentro d’água. Ele conseguiu me acompanhar, mas não conseguiu passar da arrebentação das ondas e ali ficou lutando e se defendendo sem conseguir ir além. Bastava um mergulho e passar para o outro lugar aquele. Ele ficou lutando contra as ondas que rebentavam sobre ele. E nunca mais saiu dali. Então nadei, nadei para muito longe, dias e noites, atravessei os oceanos, noites estreladas, dias chuvosos e outros ensolarados, guiada pelo vento, por golfinhos e cardumes de peixes fosforescentes. Atravessei o mundo e quando cheguei novamente à terra firme sacudi a cabeleira de algas numinosas e caminhei certa e leve sabendo que as peixas, as ondinas e as sereias nunca se perdem e jamais morrem na praia.

Assim estão as pessoas, por Lélia Almeida.


A consulente me conta que pega o São Manoel todos os dias para voltar do trabalho às 18hs e que sempre pega o mesmo cobrador, um senhor simpático de óculos, que na hora dela descer do ônibus diz: - Descendo, ainda descendo, baixando, ainda baixando, para orientar o motorista, muito cuidadoso o senhor. Na semana passada depois de um rompimento amoroso, ela não suportou o mantra do cobrador e caiu no maior choro, chorava de ranho e dizia pra ele: não, não e não, mais pra baixo, não! Ele não entendeu nada, me contou ela chorando e rindo loucamente. E concluiu que é por isto que as mulheres são maravilhosas, mesmo no chão, mesmo depois da queda, elas nunca se levam muito a sério.

Poderosa Delami, por Lélia Almeida.

Delami abre as cartas comigo tem oito anos já. Atravessamos juntas a sua década dos cinquenta e posso dizer que ela o fez com graça e sabedoria. Uma mulher daquelas que a gente quer ser quando crescer. Por conta da menopausa Delami foi fazer terapia e questionou profundamente a sua vida.
Ontem me telefonou para marcar a consulta e me disse muito contente, "tive alta da terapia", eu disse que estava doida pra saber da novidade. Por conta de um casamento nefasto com um homem infantil, Delami sempre viveu pela metade, a espera que o marido voltasse dos seus inúmeros casos. Percorreu os terreiros, as casas espíritas, as igrejas todas até enveredar pelas terapias alternativas e hoje podemos dizer que foi o Reiki que salvou a vida de Delami.
Na entrada principal do Conjunto Nacional um homem entregou-lhe o cartão do atendimento de Reiki e ela, em sua busca frenética para conhecer-se melhor e assim transformar-se numa mulher perfeita para o marido fujão, marcou uma sessão com o cara para o dia seguinte. Era uma sala pequena na Asa Norte, uma sala meio precária a bem da verdade, que aquele homem jovem preenchia soberanamente. Ele explicou sobre os benefícios do Reiki, fez com que ela deitasse numa maca, acendeu incenso e colocou um cd com mantras indianos e começou a falar muito mansamente. Pediu que Delami pegasse o bombom que ele oferecia e que o colocasse no coração dizendo que via uma menina muito magoada e ressentida e que naquele momento ela devia perdoar ao pai, a mãe, ao marido e dissesse “da doçura do meu coração, eu te perdoo”, que repetisse algumas vezes, o que deixou Delami nervosa porque sentia que o bombom ficava quente e podia derreter.
Depois de muito repetir o mantra ele passou-a para outra sala e pediu que ela deitasse de barriga pra baixo numa maca quase na altura do chão e que tirasse a roupa. As mãos daquele homem eram firmes e massageavam as costas de Delami. O homem então deitou em cima do seu corpo pequeno, massageou seus braços e sussurrou: “não se preocupe, nada de ruim vai acontecer”. Delami confiou naquela voz e na sabedoria do seu corpo que abria as pernas, a boca e os braços sem titubear. A sessão de Reiki durou três luxuriosas horas onde Delami descobriu-se uma mulher jamais imaginada e por quem se apaixonou imediatamente.
Viu-se escabelada e cheia de cores no espelho do elevador, os lábios inchados, era outra. “Mandei uma mensagem para o meu terapeuta e disse a ele que não ia mais, fui eu mesma quem me deu alta”, ela disse. Eu perguntei o que tinha este homem de tão especial para que provocasse tamanha transformação. “Nada de especial”, ela me disse, ”Aliás, o que mudou a minha vida não foi o que aconteceu naquela cama, mas o que aconteceu depois. Depois quando me vesti e ele estava de jaleco outra vez me esperando pra abrir a porta. Foi quanto perguntei quanto era a sessão. Oitenta real, ele respondeu”. Delami estendeu as notas ao homem, ela era muitas agora, era amiga de todas as mulheres do marido, ela era poderosa. E o prazer que ela sentiu ao estender as notas não chegava nem perto de qualquer outro experimentado momentos antes.

A Delami que abre os arcanos hoje parece uma menina, alegre e risadeira, e pensa na possibilidade de fazer, à brevidade, um curso de Reiki.
Assim estão as pessoas, por Lélia Almeida.


Chego muito cedo para a consulta de acupuntura e decido tomar uma água no boteco da esquina para fazer tempo. Somos cinco pessoas no boteco, duas mulheres jovens envolvidas com um bebê, aquecem a mamadeira e cuidam do menino. Um homem bastante embriagado que fica mais tempo na porta do lugar fumando do que sentado ao lado da cerveja quente. E o dono do bar no caixa. Na tv, na sessão da tarde, passa aquele filme com o Richard Gere, "Sempre ao seu lado" que conta a história do cão akita que fica esperando o dono voltar mesmo depois da sua morte. Tento manter a racionalidade, a frieza, mesmo sabendo que não posso nem ouvir falar neste filme para chorar como uma bezerra desmamada. Uma angústia absurda vai tomando conta de mim, não consigo conter as lágrimas. Choramos todos dentro do bar. Somos todos cães leais aos nossos afetos mais sagrados. E somos todos irremediavelmente saudosos.


Mandei uma mensagem de amor amarrada na garra de um falcão para um moço que está longe. O falcão não encontrou o endereço. Bendito seja o destino!


(Lélia Almeida)
Assim estão as pessoas, por Lélia Almeida.


Subimos várias mulheres e três homens jovens no elevador do Edifício Coliseu. A conversa dos homens variou entre o jogo do Inter e o Sartori. Uma delas olhava atenta para os braços peludos e morenos de um dos homens, e disse lá pelo 17º andar, posso dar uma tocadinha? O cara muito surpreso disse que ela ficasse à vontade e ela explicou, não leve a mal, mas o meu marido tá muito deprimido por causa do Inter e do Sartori e nem comparece mais! Todas demos uma tocadinha e saímos gargalhando do elevador, que em tempos de crise, só o humor na causa!

Tem dois programas do GNT que me dão sinceras ânsias de vômito, um é “Socorro, meu filho come mal”, onde a Gabriela Kapim ensina crianças mimadas e mal educadas, filhas de pais retardados a se alimentar de maneira mais saudável e o outro que é o “Fazendo a festa” onde a Fernanda Rodrigues organiza festas infantis debilóides, temáticas, junto com outras mulheres especialistas no assunto. Estas são as crianças da classe média, tirânicas, o centro do mundo das famílias, muitas vezes famílias classe c que criam filhos classe a e que os impedem de saber que existe frustração e limites num mundo onde eles cada vez menos saberão viver e sobreviver, enfim, muitos já falaram com maior propriedade sobre o assunto, como a Eliane Brum num texto exemplar que se chama “Meu filho você não merece nada” , entre outros. Programas como estes são um desfavor a uma reflexão séria sobre a infância e sobre como estamos educando os nossos filhos e sobre o que queremos realmente para as nossas crianças num mundo em convulsão onde muito menos de 1/3 delas come decentemente e bebe água potável todos os dias. Tá muito vagabundo este GNT. Porque a história da maioria das crianças do mundo, neste momento, é de desamparo, negligência, abandono e vulnerabilidade. É o que nos revela Werner Herzog “Ballad Of The Little Soldier”, de 1984, num documentário sobre as crianças nicaraguenses e seu olhar absolutamente lúcido, delicado e poético sobre realidades tão dramáticas.

(Lélia Almeida)


Assim estão as pessoas, por Lélia Almeida.

Sentou do meu lado no ônibus uma mulher descabelada e pálida, encolhida de frio. Me olhou e disse, "estou tão fodida da minha vida que hoje esqueci de escovar o cabelo. Uma tristeza que me fez fumar que nem puta triste toda a noite. Saco, viu." Caí na risada e fiz o resto do trajeto até o centro da cidade de mãos dadas com a minha nova amiga. E repeti baixinho o meu mantra do dia: "Benditas as mulheres tristes, benditas as mulheres escabeladas, benditas as mulheres furiosas, benditas as mulheres vivas, benditas as mulheres de verdade. Benditas as mulheres que sempre têm outras mulheres por perto e sabem que só isto já vale a dureza das manhãs frias!

Amém!


Tá, vou explicar de novo. Desde que me conheço por gente que cada vez que digo que sou do signo de Peixes que me olham com uma cara de decepção ou compaixão. Por esta simples razão homenageio as peixas todas as noites, para lembrar que além de doidaças, descompensadas, loucas e outros adjetivos tão injustos, elas são criativas, artistas, poetas, o colo do mundo, divertidas, originais, compassivas, belas, magas e grandes amigas.
Tá bom assim?

Boa-noite, Peixas.









Durante muitos anos frequentei a mágica casa dos Verissimo quando fazia a minha tese de mestrado sobre as personagens femininas de O tempo e o Vento do Erico Verissimo, a Dona Mafalda me chamava de Maria Valéria, o acervo estava na casa, com as fichas catalogadas e guardadas em caixas de sapatos. A minha amizade com a querida Marica Ivana de Lima e Silva data de longo tempo. Aqui um momento-tiete total! 

Ladra sem vergonha, por Lélia Almeida.


Estive numa palestra onde as autoras se diziam decentes e éticas em relação ao seu trabalho (duas delas eram jornalistas), que respeitavam as fontes, os testemunhos e que não misturavam o ofício de escritora com o de jornalistas bla bla bla. Me senti péssima naquele universo tão ético e perfeito. Eu que roubo como uma mendiga avarenta e voraz as histórias de todo mundo, uso frases que ouço das pessoas, transformo-as nas falas dos personagens, faço dos meus amigos personagens, me senti o ó da coisa horrorosa. Eu que minto e nem sempre sou ética e que sou capaz de tudo em troca das boas histórias, me senti a última das criaturas na frente daquele panteão de gente legal e decente. Quem escreve mente, trapaceia, brinca, engana, estende armadilhas, vai num churrasco e ouve uma conversa banal e alguém fala Lia, e agradeço a interlocutora, porque a minha próxima personagem vai se chamar Lilia, mas só decido ali, naquele momento em que aparentemente escuto aquela desinteressante história de amor e separação, mas estou com o pé, um pedaço da alma, lá, no outro mundo, de onde nunca saio totalmente, no laboratório, desamparada, desolada, escrevendo, inventando. Sem pensar se sou suficientemente boa ou certa ou decente, pois a literatura é feita de uma matéria prima outra, e vem de um lugar onde a preocupação em agradar ou ser legal não tem muita cabida.


Rapunzel, por Lélia Almeida.

Rapunzel publicou um anúncio no Face procurando um namorado, um cara legal, boa gente, dedicado, companheiro e divertido. Choveram mensagens e ela foi fazendo o descarte pelas fotos, sobraram poucos e ela decidiu recebe-los na porta da torre, deixando as tranças douradas firmemente atadas nas grades da janela. Um deles, um príncipe vindo de terras distantes ajoelhou-se aos seus pés e com voz maviosa disse que lhe seria eternamente fiel e apaixonado, que casaria com ela, que a faria feliz e lhe daria muitos filhos e que ela seria o grande amor de sua vida. Que ela esperasse por ele, tinha ainda muito que resolver, que voltaria, que ela o esperasse, que não se arrependeria pela paciência e perseverança. O mancebo falava de olhos fechados e parecia hipnotizado pela própria voz sem parecer vê-la, nem mesmo ouvi-la ou perguntar o que ela queria. Entendeu que o narciso-em-flor era daqueles que ignoram as demandas das mulheres e que ela mesma nunca ia ter espaço para expressá-las. “Deus-me-livre”, ela pensou escalando silenciosamente de volta pra torre e enquanto ele seguia embalado por suas promessas em mantra sedutor. Quando abriu os olhos a moça já estava lá em cima, e pode ouvir a voz de Rapunzel pela primeira vez, definitiva e firme:

- PRÓXIMO!


Penúria e artimanha na casa amarela, por Lélia Almeida.


Depois que saí da casa em Londres e voltei pro Brasil levei muito tempo sonhando que voltava lá para reencontrar o meu amor, com o tempo o sonho foi se modificando, eu demorava a encontrar a rua da casa, depois a casa não era mais na mesma rua, a paisagem ficava enevoada até que não encontrava mais a casa e nem a rua. A vida tinha andado e nunca mais sonhei nem com a casa e nem com a rua. Agora vivi algo parecido, depois que saí da casa amarela, com a sua varanda ampla de janelas grandes e com o jardim selvagem. No meu sonho estavam as duas labradoras pretas e as caixas de papelão na porta da casa onde elas dormiam nas noites de inverno. Sonhava que voltava lá todas as noites e dormia enrodilhada nelas, tomada de uma tristeza sem fim esperando que ele abrisse a porta e me acolhesse nos seus braços e no seu amor. A porta nunca se abriu. Sempre levantava e partia quando ainda era noite e ia embora para a minha vida sozinha. No meu sonho as cadelas se chamavam Penúria e Artimanha. Acordava com o coração dilacerado e a alma quebrada e custava a levantar da cama e continuar vivendo. Esta semana sonhei que havia dormido além da conta e ao acordar já despontava o amanhecer com a neblina sobre o campo. Parti resoluta e firme, eu, Perséfone, eu, Psiquê. E sem olhar para trás e nem me despedir das cadelas fechei com leveza o portão e atravessei o campo me despedindo dos bois pretos e das garças rosas. Um dia a tristeza começa a ir embora e não voltamos mais para o cenário do abandono e do desamparo, já não precisamos mais de quem não precisa de nós. E estamos prontas para a vida nova.