sábado, 19 de maio de 2007

Mulheres em Movimento:

Quando as minhas alunas me perguntam se eu sou uma feminista a pergunta vem cheia de curiosidade, mas uma curiosidade de quem está falando com um animal pré-histórico, uma mamute congelada o clone de uma dinossaura, qualquer coisa assim. Eu digo que sim, e mais, digo que sou das últimas, das últimas feministas da América Latina inteira, já que a outra feminista que eu conheço é justamente a minha companheira de mesa, esta que é uma feminista histórica deste país, a professora Suzana. Enfim, as minhas alunas de todas maneiras não conseguem compreender como uma pessoa simpática como eu e que gosta tanto de literatura, pode gostar de ser uma feminista, e concluem pelo exótico, pelo excêntrico, afinal, eu sou uma escritora, o que justifica muitas excentricidades. E quando falo do Movimento de Mulheres, do Movimento Feminista, a coisa só piora, Movimento de Mulheres, mas quando mesmo foi isto, acho que elas imaginam que foi na minha juventude, um tempo muito longínquo e distante, muito distante da realidade delas, onde as mulheres, loucas e insatisfeitas, queimavam sutiãs em praça pública e espantavam os homens, enraivecidas. Sempre acho graça o Feminismo ser associado a um fato tão absolutamente isolado e pequeno como uma passeata contra o concurso de miss América, quando um grupo de feministas jogou os sutiãs em uma lata de lixo como uma rejeição simbólica da feminilidade artificial. Tudo bem, se o gesto ficou associado ao fato é porque às vezes são necessários gestos irados, furiosos para que alguma coisa aconteça, alguma coisa mude, alguma coisa se quebre. Enfim, sobre o Feminismo os mal-entendidos não são poucos, e isto não é de graça.

A verdade é que não há um Movimento de Mulheres, não há um Feminismo. O Feminismo é múltiplo, tem várias cores, muitos matizes e nem sempre teve este nome, ainda que diversos Movimentos de Mulheres tenham tido uma característica sempre igual: o Feminismo reivindica fundamentalmente a autonomia das mulheres, autonomia em relação às leis e normas ditadas sobre elas pelo patriarcado. E isto que parece ser tão simples e tão pouco, é complexo, é muito complexo. Mas afinal, de qual Movimento Feminista eu vim, dos das mulheres dos anos sessenta, que brigavam pelo controle da sua sexualidade, ou dos anos setenta ou oitenta e sua luta pela inserção no mercado de trabalho, ou dos anos 20 e 30 quando Virginia Woolf escrevia pela primeira vez sobre as mulheres escritoras e defendia que tínhamos que ter um quarto todo nosso para poder escrever, ou dos anos quarenta quando Simone de Beauvoir escreveu sobre o segundo sexo, dando nome e explicações sobre esta subcategoria que as mulheres tínhamos sempre representado na história. Ou dos anos 60, quando as americanas trouxeram o debate do feminismo a público, radicais, e o estenderam numa malha, numa rede cheia de significados, junto aos negros, aos gays, aos pacifistas, etc. Ou talvez do tempo de Mariana do Alcoforado, a célebre freira portuguesa que escrevia cartas de amor desde a clausura, saudosa do seu amante francês (sempre tem um amante francês na vida das mulheres, são musos na verdade, para quem não sabe), ou talvez alguns séculos depois, eu também sou do tempo das três Marias portuguesas, dos revolucionários anos setenta em Portugal, que retomam as cartas da pequena freira e atualizam o sentimento, o ímpeto, o não às convenções que enclausuram o desejo e a escrita feminina a uma cela escura, fria e fechada. Eu sou do tempo de Heloísa, da irmã de Shakespeare, Mary Shelley, Jane Austen, George Sand, Colette, Doris Lessing. Eu sou de um tempo antigo, muito antigo, e é isto que é um pouco difícil de explicar para as minhas alunas e talvez seja esta antigüidade que elas notem em mim quando fazem sistematicamente, todo ano, a fatídica pergunta.

Porque talvez fosse mais correto e acertado, e mesmo mais feliz, falarmos de mulheres em movimento. Mesmo que tenhamos várias referências históricas de Movimentos de Mulheres, sejam eles, como por exemplo, o das mulheres das minas de estanho da Bolívia, onde o nome de Domitila Barrios de Chungara é sempre representativo, ou o das Mães e Avós da Praça de Maio, na Argentina, que até hoje está aí trabalhando, resgatando seus filhos e netos desaparecidos, ou os grandes encontros de Nairobi, México, Pequim, só para citar alguns, dos últimos anos; a verdade é que há muitos mais, muitos outros que nós nem sequer conhecemos ou tomamos conhecimento. E daí pensar que talvez fosse mais correto falar em Mulheres em Movimento.

As mulheres estão em movimento cada vez que elas se juntam e falam, mesmo quando elas se juntam e ficam quietas, o que é raríssimo de se ver, mas que ocasionalmente poderá acontecer. As mulheres estão em movimento quando falam de si, quando indagam das outras e se procuram infinitamente nos gestos e vozes que compõe uma irmandade, uma irmandade muito diversa e ao mesmo tempo, muito parecida. Para a psicanalista Connie Zweig, um dos grandes méritos e responsabilidades do feminismo é que ele "criou a irmandade - um realinhamento de mulheres com mulheres", onde a aprovação masculina já não está mais no centro das condutas e atitudes. Elas estão em movimento quando falam entre si dos seus filhos, seja de forma neurótica ou normal, não importa, nem sempre dá pra diferenciar muito bem, filhos são sempre uma grande preocupação e quase sempre uma imensa alegria, quando se juntam pra falar dos seus homens, aqueles que incomodam, ou os que não incomodam (rarissimos também), ou os das outras, que aqui também ninguém é santa, e que só dar uma olhadinha não faz mal a ninguém, aqueles com os quais a gente sonha e os outros com quem a gente sonha nunca mais encontrar... quando elas falam de seus sonhos, de trabalho, de profissões, simples ou sofisticadas, do sonho de ter um apartamento em Nova York, ou uma casinha de sapê em Gramado Xavier, não importa, uma casinha pra espichar o pé no fim do dia e poder relaxar, antes de começar, é claro, a fazer a janta, dar banho nas crianças, arrumar as camas que ficaram desarrumadas da correria da manhã e mais, e mais, pois como sabemos a biologia feminina é maldita e obra noite e dia sem parar, pro bem e pro mal. E disto falam as mulheres também, quando estão em movimento, porque quase todas prezam um baile, muita risada, uma cervejinha e um bom namoro, apesar das horas de trabalho serem infinitas somando as tantas fora de casa e as outras tantas dentro de casa. As mulheres estão em movimento quando sussurram, cochicham entre elas, porque ainda há temas e assuntos que são segredos de mulheres, quando se contam de forma silenciosa que os seus companheiros, sejam namorados, amantes ou maridos, não querem saber de usar camisinha, suas gravidezes indesejadas e suas doenças, quando se contam de seus abortos, nem tão raros assim, das que apanham, das que vêem suas filhas apanhar e serem molestadas e muitas outras coisas deste universo silencioso que não pode aparecer, que ainda não pode aparecer. As mulheres, eu penso, eu vejo, aqui e agora, estão em constante e permanente movimento, um movimento que não pára, que de qualquer forma e qualquer maneira é um movimento amoroso, que inclui, que soma, que conta mais um, mais uma, venha, a senhora também, venha, o senhor também, a menina, os meninos, podem vir.

Talvez a grande característica do movimento das mulheres é ele não ser institucional, pois não há como institucionalizar o movimento, não há como institucionalizar um movimento, o movimento é um gesto, de fúria, de dança, de graça, de corte, e o gesto é livre, o gesto é o que faz o movimento andar. E é por isso que eu termino por dizer às minhas alunas que eu, particularmente faço parte de todos os movimentos de mulheres, que talvez as feministas sejam umas mulheres loucas e destemidas, mesmo quando quietas e tímidas, mulheres teimosas, quase sempre alegres, rebeldes e inquietas e com imenso sentido de cumplicidade. São aquelas mulheres que - se identifiquem ou não com este rótulo - e que em diferentes momentos da história do mundo, fazem com que o gesto crie o movimento, um movimento que ora diz sim, que ora diz não, que não precisa se chamar de feminismo, mas que é um gesto que não pára, mas que é um movimento a favor da vida, da vida das nossas filhas e filhos, das nossas irmãs, dos nossos homens, do universo dos nossos afetos, de uma vida melhor. A jornalista norte-americana, Natalie Angier, diz que talvez, com o tempo, a filha dela, que hoje é uma menina, nem vai saber porque um dia as mulheres foram feministas e escreve sobre isto para a menina. É com esse texto que eu gostaria de terminar a minha fala, orgulhosa de fazer parte do movimento, de poder criar o gesto e de ser uma das últimas e orgulhosa feminista. Ela diz assim:

(...) Nossa tribo é a tribo das mulheres. É nossa tribo a ser definida, e ainda estamos fazendo isso, e nunca desistiremos. Vivemos em um estado de revolução permanente. Que emoção! Não abandonaremos a tribo, nem a batalha. Não definiremos a tribo como uma zona ausente ou um prêmio de consolação. O desejo de ser homem é uma rendição aos limites e restrições que nunca estabelecemos para nós mesmas. É preguiça. Não faz parte de nossa natureza. (...) Tenho uma filha agora. Ela ainda é nova demais para saber que tem quaisquer limites, que não é a rainha da Via Láctea e que morrerá um dia. Ela sabe que é uma garota mas ainda não dá bola para isso, nem percebe o que isso significa. Talvez não signifique nada. Talvez seja isso que desejo dela: que ela não pensará sobre ser uma garota, ou ser uma mulher, de nenhuma forma categórica. Que isso não a interessará, pois ela estará muito ocupada com uma profissão glamurosa, como calcular as trajetórias dos cometas, tocar cravo ou satisfazer a nostalgia de sua geração por pomposos dinossauros pedófilos e a Internet. Talvez ela dê uma de Björk comigo, fazendo careta e bocejando discretamente sempre que eu mencionar o tribolite político chamado feminismo. (...) Ou talvez ela troque a desgastada canoa de madeira da mãe por um imponente barco de ouro e satisfação, com uma tripulação amotinada de valquírias de cabelos desgrenhados, sereias cindidas ao meio e ninfas impacientes. Minha filha falará rouco enquanto rema firmemente em meio a tempestade e calmarias, ora em sintonia com suas companheiras, ora vociferando com elas. Ela ainda não encontrou a lendária costa livre, mas não importa. No mar, ela sempre se sente em casa.

Lélia Almeida

Nutrir e amar: o que comem as mulheres?

Lélia Almeida.

Ao ser convidada para conversar com as alunas e alunos do curso de nutrição, comecei a divagar sobre o que falar, já que aparentemente os nossos universos – das letras e da saúde, parecem tão distantes. Não podia perder de vista, no entanto, o meu ponto de vista, o meu jeito de olhar o mundo, e o lugar de onde eu olho o mundo. O meu ponto de vista é o de uma escritora e de uma leitora, mas em primeiro lugar, o meu ponto de vista é feminino, feminista e o meu olhar sobre o mundo é um olhar de mulher que observa fundamentalmente o mundo e a vida das mulheres.
É esta a experiência que eu gostaria de compartilhar com vocês esta noite, a de uma mulher que estuda mulheres, que escreve sobre mulheres e que escreve sobre mulheres que também escrevem sobre mulheres. Esta é uma escolha de vida, esta é a escolha de um trabalho, esta é a escolha de um objeto de estudo e de uma teoria.
Também o tema da nutrição, associado ao corpo feminino de forma tão intrínseca, quase indissolúvel, me pareceu um tema que poderia ser abordado desde esta perspectiva, a dos estudos das mulheres e, mais especificamente, do que se convencionou chamar nos últimos anos, de estudos de gênero.
O Movimento Feminista, tal como o conhecemos hoje, ou o Movimento das Mulheres, como queiram chamá-lo, aparece de forma mais objetiva nos anos 60 e 70 do século passado, com o surgimento de outros movimentos sociais importantes, como o movimento negro, o movimento gay, o movimento pelos direitos humanos. Data desta época também, dos explosivos anos 60 e 70, o início de uma sistematização mais eficaz em torno de um conceito que será central nos estudos sobre as mulheres. O conceito de gênero, que será para sempre associado aos estudos feministas, e que quer simplesmente significar que muitas das atribuições relativas ao masculino ou ao feminino, na nossa história, são atribuições culturais e não, como se pensava até então, naturalidades da biologia. Assim, o conceito de gênero pôde nos esclarecer que muitas características que eram tidas como femininas e masculinas até então, passaram a ser consideradas como construções culturais sobre o masculino e feminino, criando-se assim, possibilidades para os questionamentos sobre o imenso caos em que nos encontramos na atualidade, onde os papéis sexuais se encontram em franco questionamento. Ser homem e ser mulher não é mais a mesma coisa que era ser homem e ser mulher há 50 anos atrás ou há 20 anos atrás.
Os estudos de gênero, realizados em diferentes áreas do conhecimento, permitiram que verdades inamomíveis fossem desfeitas. Acreditamos durante séculos que, por exemplo, bastava que nascêssemos mulher para que fôssemos mãe, já que a biologia e nosso aparelho reprodutor assim nos exigiam. E, que se éramos mães, também por essência e natureza, seríamos boas cuidadoras, e que se fôssemos boas cuidadoras, nossos filhos se sairiam bem, e se eles saíssem bem, teríamos cumprido não só nossa missão como mães, mas como mulheres, já que dentro desta lógica, ser uma boa mãe era ser uma mulher de verdade e ser uma boa mãe era ser essencialmente feminina.
Os estudos de gênero, que se sistematizam a partir de práticas dos movimentos de mulheres, não podiam ignorar as demandas e histórias de vida das mulheres da vida real, e que quase sempre estavam longe das representações da norma patriarcal que ditava como as mulheres deveriam ou não ser. O movimento de mulheres junta, então, as vozes das mulheres que não querem mais se deixar aprisionar por falsas imagens cristalizadas, calcificadas e que permanecem até hoje em nosso imaginário e passam, a seguir, a reinvindicar algumas questões.
Uma das discussões mais cruciais, até hoje para o movimento de mulheres, por exemplo, é a discussão sobre o aborto que, seja ela feita de que ponto de vista for, essa discussão sempre está em pauta. E está em pauta também para nos lembrar que talvez a maternidade não seja uma escolha fácil e simples para as mulheres, que algumas mulheres talvez queiram outras coisas de suas vidas além da maternidade e, que talvez ainda muitas mulheres não tenham a menor vocação para a maternidade.
Temas como o amor materno, o aborto, o controle da natalidade, a anti-concepção, os direitos reprodutivos e as novas tecnologias são temas de pauta entre as mulheres há muitos anos, e só agora, muito atualmente, devido à discussão sobre fome ou explosão demográfica, é que passaram a fazer parte da pauta de discussão do mundo dos homens. Que passaram a considerar esta discussão não por amor às mulheres e consideração a seus corpos exaustos, mas porque finalmente se sentem ameaçados com a possibilidade da fome e da superpopulação. Os encontros internacionais de mulheres no México, em Pequim, Estocolmo, etc, dão exemplo desses movimentos e dessas discussões.
Essas discussões, realizadas desde um ponto de vista feminino, foram encaminhadas, num primeiro momento, pelas mulheres, cada vez que elas se reuniram para discutir timidamente sobre os seus duríssimos deveres e seus parquíssimos direitos. Direitos sobre sua sexualidade, sobre sua conjugalidade, maternidade, seus sonhos, seus sonhos mais impossíveis e suas necessidades mais inadiáveis.
Posso dizer a vocês que muitas coisas mudaram na vida das mulheres e posso dizer, da mesma maneira, que muitas coisas estão exatamente iguais a muitos séculos atrás. Quando vemos que algumas questões são tão difíceis de mudar no imaginário do senso comum ou no imaginário científico, nas verdades e mentiras relativas às mulheres, parece que os tempos de serenidade para as mulheres ficam sempre longe, muito longe. Porque os tempos atuais são de muita ansiedade para as mulheres, de uma ansiedade que se revela através de sintomas significativos.
Sim, disso se trata, tenho certeza, de tempos de serenidade, serenidade para se poder ser o que se é, para poder ser o que se pode escolher ser. E estamos, nós as mulheres muito longe destes tempos, desta serenidade desejada como uma quimera. Porque ainda temos que responder a muitas exigências, exigências sociais, familiares, exigências nossas, que nem sempre estão de acordo com os nossos sonhos mais verdadeiros.
Assim, o movimento de mulheres e a criação de um conceito de gênero contribuem na história das idéias como uma nova maneira de pensar, de pensar o mundo e a vida das pessoas, uma maneira de pensar que observa o mundo de um ponto de vista que duvida do que nos foi ensinado como uma naturalidade feminina e masculina e, que leva em consideração a condição de submissão em que viveram as mulheres durante séculos e que faz delas, nesta história, as personagens principais.
Quando penso nessa associação entre maternidade e nutrição, entre mulher e nutrição, não posso deixar de pensar, lembrar, sentir, vislumbrar algumas imagens que talvez sejam comuns à história de todos nós: o aconchego e a quentura do corpo materno.
Não lembro de quando fui amamentada por minha mãe, é claro, embora todos os meus sentidos tenham suas memórias mais misteriosas deste ritual, mas vi minha mãe amamentar a minha irmã menor e o ritual de intimidade entre elas me enchia de ciúmes e de verdadeiro fascínio. E lembro como uma das minhas melhores lembranças de quando amamentei o meu próprio filho, que, longe da experiência que dizem ser paradisíaca para todas as mulheres, foi uma experiência cheia de ansiedade, mas claramente gratificante.
Muitas mulheres sofrem com a amamentação, muitas mulheres a vivem de uma forma fácil e sem problemas e essas facilidades e dificuldades em nada as tornam melhores ou piores mães umas em relação às outras.
Mas esta é a imagem que se impõe quando penso nesta associação entre o corpo materno e a nutrição. Mesmo a mãe que não amamenta, que dá de mamar com uma mamadeira, acolhe este filhote em seus braços e de forma amável, carinhosa, o alimenta, sacia sua fome, sua fome que é real e que é também a fome desse momento, do momento da troca e do afeto. Um ritual de celebração da alegria dos sentidos se estabelece entre estas duas criaturas que estão trilhando o árduo caminho da construção de um vínculo, e, aqui, de um vínculo que será determinante para muitas coisas pelo resto da vida dos dois, não só da criança.
Um corpo aninhado em outro corpo, é o nosso lado bicho que se manifesta então, clamando, pedindo para ser, se deixar ser, numa lógica de dar ao corpo o que é do corpo, e um filhote de gente suga e mama e chupa e lambe e se lambuza na teta materna, onde uma mãe também se lambuza e se nutre com a alegria da cria. Peles e corpos que se encostam, roçam, sentem, corpos quentes e que exalam seus cheiros, o cheiro do leite, o cheiro do peito materno, o cheiro suado do bebê que se esforça e trabalha arduamente neste ritual de prazer e conquista. Os cheiros se misturam, os gostos do corpo materno e do corpo do bebê, a pele da mãe misturada com a pele do filho, como uma extensão da sua.
E o bebê adormece feliz, satisfeito no colo materno e é isto o que buscamos o resto das nossas vidas, nos nossos afetos, esta intimidade, esta nutrição, esta sensualidade, este erotismo.
Muitos foram os escritores que descreveram a sensualidade do ato de comer à sensualidade do ato de fazer amor. Gunter Grass, um dos maiores escritores alemães da atualidade brindou-nos na década de setenta, em 1977, com o magistral romance O Linguado, onde a história das mulheres é revisitada através de nove capítulos que correspondem a diferentes períodos históricos, diferentes mulheres e nove meses de gravidez. O texto de Grass, calcado na lenda dos irmãos Grimm, A mulher e o pescador é uma celebração do sexo e da culinária, da comida e dos afetos. Também a dinamarquesa Karen Blixen (ou Isak Dinenses, se quiserem), escreve seu texto, hoje um clássico do cinema, que é uma celebração erótica às comidas, o inesquecível conto A Festa de Babette, no livro As Anedotas do Destino, de 1958. Ou o recente livro de Isabel Allende Afrodite, onde a autora chilena nos apresenta o prazer da comida como um verdadeiro consolo espiritual para a perda de sua filha Paula.
Erotismo e culinária, no imaginário do senso comum, sempre andaram juntos numa festa de celebração dos sentidos, das sensações e prazeres, e, na sua falta, de desprazeres também.
Para as terapeutas americanas Rosalyn Meadow e Lillie Weiss, que escreveram Las chicas buenas no toman postre, a associação da comida com a sexualidade é fundamental na vida das mulheres, não apenas na vida daquelas que são mães, mas de todas as mulheres. E elas, depois de ouvirem, como terapeutas, milhares de mulheres em seus consultórios, chegaram a algumas conclusões.
O mal que atinge às mulheres no mundo inteiro nos anos noventa do século passado e na atualidade é um conjunto de doenças, sintomas e moléstias chamados de distúrbios alimentares. Nesse livro, onde elas contam seus estudos de casos, não apresentam um manual classificatório de tipos de anorexia ou bulimia, mas propõe uma tese simples. A comida é para as mulheres hoje, o que foi a sexualidade em tempos passados. Ou, por outra, o dilema da comida para as mulheres hoje, é o que foi o dilema da sexualidade para as mulheres em tempos passados.
Sim, porque houve um tempo em que as mulheres não podiam dispor livremente de sua sexualidade, por exemplo, não podiam ficar, não podiam transar, se transassem tinha de ser só depois de casar, como o mesmo namorado de anos, com quem, geralmente, elas também não tinham transado, etc. Estes tempos mudaram: com o advento da pílula anticoncepcional as mulheres, livres do fantasma de se-eu-der-eu-engravido, puderam fazer algumas escolhas, como por exemplo, transar ou não transar, com um, com dois, com três, com cem, engravidar ou não engravidar, casar ou não casar. A passagem, no entanto, de um estágio a outro foi brutal para as mulheres, foi brutal desfazer-se das culpas milenares, morais, religiosas e se transformar numa mulher liberada e responder às exigências de uma sexualidade muitas vezes compulsiva (transar muito é saudável), ousada (quanto mais parceiros melhor), eficiente (orgasmos múltiplos, ponto G, etc.).
Assim, de uma sexualidade reprimida, precária, às mulheres passaram sem muito direito de transição, de forma direta, ao que Marina Colasanti chama da sexualidade fitness, quando transar é um esporte, um esporte caro, sofisticado e que exige demandas insuportáveis para as mulheres. A primeira delas é estar em forma, ter um corpo perfeito, de atleta, para corresponder ao êxito do esporte e ser bem vista pelo público.
Meadow e Weiss atentam para o fato de que cada vez mais e mais mulheres substituem a sexualidade por outras coisas, pelas compras, e, principalmente, pela comida. E, ao longo de uma lista de comparações terminam por concluir que se antes, o controle sobre o corpo feminino exercido pelas normas e regras da sociedade patriarcal, dava-se em relação à sexualidade da mulher, agora mudou e o mesmo controle sobre o corpo feminino se dá através da comida. Para elas, a antiga equação dar ou não dar para o namorado, equivale à equação comer ou não comer, dos dias de hoje. As mesmas fobias que tomavam conta da vida das mulheres que tinham problemas em alcançar o orgasmo, dores na penetração, muitas vezes frígidas, ou de deixar-se simplesmente tocar por um parceiro, de sentir-se à vontade sem roupas na frentes dos outros, são as mesmas fobias que tomam conta da vida das mulheres as mulheres, de forma desesperadoras, nos dias de hoje. Só que agora a antiga ansiedade se revela através de um verdadeiro terror das mulheres em relação ao seu peso e suas medidas.
A insatisfação com suas medidas é permanente, com sua imagem, um profundo sentimento de inadequação se estabelece na vida das mulheres que se vêem sempre impossibilitadas de sentir-se bem com seus corpos e em sua pele, imaginando sempre estar muito longe de um ideal de beleza que nunca será o delas. E passam estas tristes criaturas, a maior parte das horas dos seus dias pensando em dietas, medidas, roupas, cosmética, dietética... E em vista dessas evidências, eu me pergunto: se nos liberássemos destes pensamentos, que nem sempre são verdadeiramente nossos, em que pensaríamos? Não tendo que nos ocupar com pensamentos alheios a nós, como poderíamos aproveitar tanta energia desperdiçada? Não pensando mais em coisas que nos foram muitas vezes impostas, quem sabe não teríamos tempo para fazer leituras, atividades artísticas inusitadas, esportes prazerosos, estudos, trabalhos... Não seríamos, quem sabe, astronautas famosas ou físicas talentosas ou virtuosas violinistas e muito mais coisas, se não perdêssemos tanto tempo lembrando que somos feias, gordas demais ou magras demais, ou que vamos ficar velhas com rugas ou que temos celulites ou peito pequeno ou bunda grande?
Sempre pensei que estamos presas, numa imensa armadilha, e que esta armadilha é, muitas vezes, a nossa própria exigência mental absurda sobre nossos corpos. Tiramos os espartilhos e os cintos de castidade de outros tempos e os trocamos por manequins 38 e por botas italianas de trezentos dólares sem as quais não podemos viver.
E estas mulheres que não comem, comem o que? Comem a fome. A fome dos seus desejos mais secretos, das suas necessidades afetivas mais básicas, de seus sonhos mais recônditos. Mas a fome não mata a fome de ninguém, cria mais fome. E as mulheres que comem demais, também, são iguais as quem comem de menos. Todas negam a fome das suas emoções. As mulheres estão famintas, longe de seus corpos e suas vontades, de seus corpos e suas verdadeiras imagens, de seus corpos e suas únicas e infinitas possibilidades de sentir alegria e prazer. Porque as mulheres que nutrem o mundo de diversas maneiras, afetivas, reais, com suas comidas e afetos, e sua capacidade para a dança, o riso e a farra com seus homens, seus filhos e suas amigas, estão tristes, não se reconhecem mais nos seus corpos, na espontaneidade de seus movimentos. As mulheres desses tempos têm fome e, assim, elas não podem nutrir o mundo. As mulheres desses tempos têm fome de si. As mulheres desses tempos têm uma fome imensa de si mesmas. As mulheres têm fome de tudo aquilo que elas querem poder ser, sentir e realizar.
Vocês que vão ter como ofício um trabalho que é nutrir o mundo não poderão fazê-lo apropriadamente se não pensarem em algumas questões:
- de pensar que, com toda a fome que há no mundo vivemos num mundo onde muitas mulheres deixaram simplesmente de comer, num processo doentio de dissociação de sua auto-imagem onde elas negam seus instintos, sua sexualidade, seu prazer vital de viver. E que isto é sintomático.
- de pensar que, se antes a sexualidade era pecaminosa e proibida às mulheres, agora, quem ocupa o pódio dos pecados primordiais na vida das mulheres é a comida e que, mesmo que sejamos bombardeados, muitas vezes por dia, com imagens de corpos desnudos e liberados, são estas mesmas imagens que denunciam, de forma significativa, outros tipos de aprisionamentos em que se encontram as mulheres. Aprisionamento de um corpo que não é o delas e de uma forma de viver seus apetites, que nem sempre tem a ver com seus desejos e vontades. E que isto também é sintomático.
- que é preciso nutrir as mulheres, que é preciso nutrir quem nos nutre, com imagens positivas e auto-afirmativas delas mesmas, com imagens que não as desqualifiquem e desvalorizem, e que as tornem senhoras e soberanas no seu jeito de amar, no seu jeito de comer, no seu jeito de viver.

Silicones, travestis, mulheres e 08 de março, de novo:

Uma das cenas mais comoventes do filme Tudo sobre minha mãe do espanhol Pedro Almodóvar é quando Agrado , a magnífica travesti do filme, sobe no palco, conta a história de sua vida e da transformação do corpo, pra dizer no final da apresentação, sob o aplauso de uma diversificada platéia que o importante nessa vida é ser autêntica, como ela, e que só se é autêntica quanto mais uma pessoa se parece com aquilo que ela sonhou. A cena é belíssima, Agrado é uma personagem encantadora que nos faz refletir do princípio ao final do filme sobre o feminino, suas representações, simulacros, nestes tempos finisseculares onde tudo o que sabíamos sobre masculino e feminino foi literalmente pro espaço. O filme trata sobre isto, sobre as mães, sobre as atrizes que interpretaram mães, sobre as mulheres, sobre as mães e seus filhos, sobre o feminino em seus diferentes matizes. Um filme absolutamente contemporâneo, misturando todos os temas que nos fascinam e amedrontam depois de tantas conquistas e desbravamentos sexuais, amorosos, sensuais, virtuais. Podemos tudo, ou pelo menos quase tudo. Agrado opta por ser travesti, fala do tempo em que colocou suas tetas, do tempo em que foi camioneiro, da raiva que sente quando tem de se misturar com as falsas drags. Ela é um travesti, um personagem autêntico, diz a que veio, e porquê.

Um domingo destes antes do carnaval um programa do Faustão apresentava a tal miss que fez dezenove plásticas para poder competir para ser miss nacional, uma outra, na verdade um mulherão, que ia sair no carnaval, esta moça, nua e com uma pintura mínima, tinha um sorriso petrificado, ao lado do seu marido, um cirurgião plástico que tinha feito todas as intervenções e que media qualquer coisa como a metade de sua obra e que aparecia de maneira tímida, frank e sua obra, meio escondido. Foi quando o Faustão chamou para juntar-se ao grupo uma antropóloga para explicar o fenômeno de tanto silicone, operações, etc., tudo acontecia num ritmo meio frenético, como é o ritmo da televisão, a tal antropóloga que fazia às vezes de uma criatura humana e normal, meio baixinha, gordinha, com os sinais vitais da idade, mal e mal pôde balbuciar que as mulheres deviam ter cuidado com a loucura das medidas, com a neurose do corpo perfeito, porque muitas vezes podiam estar cumprindo com expectativas masculinas de um corpo perfeito, longe das medidas possíveis delas, longe de si mesmas. O Faustão chamou os aplausos e enquanto aquela enorme mulher sorria seu sorriso petrificado e exibia seus cortes e matérias, terminava o programa.

Lembrei da personagem da Agrado e fiquei pensando no que será que as mulheres estão querendo se travestir, cada vez que pagam verdadeiras fortunas por silicones, cirurgias arriscadas, ou as que vivem só e apenas em função disto? A cosmética, a dietética, a moda, ditam a cada mês, a cada estação a cura de todos os males, o elixir definitivo da juventude e da felicidade, e o preço de toda esta parnafernália não é barato, custa sem exagero, o dobro, o triplo das horas preciosas de trabalho conquistadas a tanto custo na existência e biografia de uma mulher. Muito bem, mulheres, vocês querem trabalhar, competir com os homens no mercado de trabalho, pois bem venham, mas venham jovens, belas e bem-vestidas, venham com aquelas botas italianas, aquelas que custam 1000 dólares! Se é que você me entende. As meninas, filhas das senhoras da minha geração, começam a fumar entre os onze e treze anos para não sentir fome e poderem assim ficar magras e sofrem sistematicamente de distúrbios alimentares, afetivos, sexuais.

Erica Jong, a famosa feminista americana nos esclarece que ser feminista é ter autonomia de pensamento e ação, uma explicação pra mim, suficiente, inteligente e esclarecedora. Autonomia de ser e pensar, de fazer escolhas próprias, de poder duvidar que nem sempre o que nos vendem como solução e salvação é o que desejamos ou vai de fato funcionar. A propósito, lembrei de uma lenda grega, de um rei que esculpe uma estátua de mármore branco, tão perfeita e tão maravilhosa, tão na medida de seus próprios desejos, só faltava ela falar, então ela fala, atendendo o pedido do rei a Afrodite, ela fala uma fala previsível, ela fala uma fala que copia, era quase como se o rei tivesse casado consigo mesmo, era quase como se o rei estivesse casado com uma imitação... Eu quero mais do que silicones impecáveis, eu sou do tempo antigo, eu quero mais do que cicatrizes que mal se vêem, nada contra as midiáticas e fabulosas poposudas, eu sou do outro lado da rua, eu quero algo mais pra quando os meus silicones não servirem pra mais nada.

De novo, dia 08 de março, a cada ano há uma espécie de esperança no ar, parece que agora sim, houve uma mudança, há uma mudança no ar. As conquistas têm sido enormes, não tenho a menor dúvida. Difícil é mantê-las, difícil é que elas não se transformem, não apareçam travestidas em outras coisas: há tempos atrás o feminismo era considerado agressivo, pouco feminino, coisa de mulher louca que queimava sutiã em praça pública : vejam só, olhem só o que foi feito dos nossos pobres sutiãns!!

Pra todas nós, um feliz 08 de março. Uma vez mais.

Lélia Almeida

Um jeito mexicano de ser:
O México está na moda. O lançamento da versão hollywoodiana de Frida Khalo no cinema, vivida pela atriz Salma Hayek, a participação de Caetano Veloso no filme cantando Burn it Blue ou com Lila Downs dão um pouco a medida desta moda.
Há um mês atrás a TV Cultura de São Paulo exibiu uma semana de programas sobre o México, incluídas pérolas e documentários sobre Octavio Paz, sobre pintura mexicana e culturas mayas. No fim de semana passado, no sábado de Páscoa, a TV Cultura exibiu no programa Perfiles de Nuestra América, uma entrevista com Chavela Vargas. E People & Arts exibiu, também no sábado, um depois do outro, documentários sobre Frida Khalo e Chavela Vargas. Também já foi anunciada para a próxima Bienal de Porto Alegre a vinda da obra do muralista José Clemente Orozco. Assim que, para quem quer conhecer as boas manifestações culturais do México, são tempos fartos.
Mas chama a atenção que os nomes mais importantes da cultura mexicana do século XX não sejam mexicanos nativos, nascidos no México. O escritor Carlos Fuentes é panamenho, a cantora -última das divas - Chavela Vargas, é da Costa Rica, a fotógrafa Tina Modotti é italiana e a premiadíssima Elena Poniatowska é francesa. Poniatowska já declarou em entrevista que sua forma de agradecer tudo o que o povo e a cultura mexicana lhe deram seria escrever sobre o povo mexicano, e quem conhece sabe, tanto a personagem de Jesusa Palancares em Hasta no verte Jesús Mío, uma soldadera da Revolução Mexicana, como seus relatos sobre o massacre na Plaza de Tlatelolco, em 1968 dão testemunho do cumprimento desta promessa. Chavela Vargas diz que o México lhe deu tudo, foi seu pai e sua mãe, lhe ensinou a cantar e a ter um ofício, uma carreira.
O fascínio exercido pelas promessas da Revolução Mexicana, promessas de um mundo melhor, mais justo, capitalizaram a vinda de milhares de imigrantes europeus que fugiam da guerra e aportavam no México em busca de uma vida melhor.
Mas, além das circunstâncias históricas, e olhando para os personagens em questão, os expoentes da cultura mexicana que não são mexicanos, não posso deixar de pensar que, antes de mais nada o México nos possibilita um jeito mexicano de ser. Ou, dito de outra maneira, os que teriam um jeito mexicano de ser, filiam-se imediatamente a esta cultura e suas possibilidades de expressão. E que jeito seria este? Ainda que Octavio Paz em seu clássico texto Máscaras Mexicanas atribua uma certa timidez e recato ao mexicano, não podemos deixar de pensar em sua intensidade, seu exagero, sua dramaticidade. Quem vê Chavela Vargas cantando e conhece sua biografia, a de uma mulher que andou muitos anos armada e que canta como que realiza um verdadeiro ritual, sabe do que se trata.
Atílio Borón, o conhecido cientista político argentino, já dizia que se o México não estivesse entre os Estados Unidos e a América Latina, nós já teríamos sido esmagados culturalmente, muito mais do que já fomos, que a solidez da cultura mexicana serviu de anteparo, escudo, proteção entre os norte-americanos e os latino-americanos.
Mas, muito além dos estereótipos, a consistência e a multiplicidade da cultura mexicana parecem fornecer formas expressivas ricas e inesgotáveis ao longo dos tempos. Tudo é grande, exagerado e colorido no México, musical, dramático, trágico e bem humorado.
Chavela Vargas filiou-se à cultura mexicana , Carlos Fuentes, Elena Poniatowska também, Caetano Veloso, que cantou desde sempre boleros e canções mexicanas, e Pedro Almodóvar, que aparece como um expoente importante no diálogo entre Espanha e o México.
Os que temos um jeito mexicano de ser, exagerado, sentimental, cheio de cores, intenso e alegre, trágico e bem humorado, dramático e tristíssimo, temos o México como território a ser explorado, conhecido, reconhecido. A moda mexicana vem para nos enriquecer, uma bênção, para lembrar do sonho esquecido de que somos latino-americanos e que alguns de nossos sonhos ainda se parecem muito e nos irmanam.
Lélia Almeida

Uma segunda chance é um luxo:

Tem duas datas que me enchem de alegria e esperança todos os anos. Da mesma maneira. O ano novo e o meu aniversário.

Não sou das que não gosta de Natal, mas desde que virei mamãe-noel, o natal tem demandas que me ocupam de forma pragmática, como por exemplo, fazer caber os sonhos de consumo do meu rico filho no orçamento familiar e coisas do tipo. Mas gosto também do natal, gosto de como ele gosta, do jeito e da alegria dele, eu gosto.

Mas o ano novo não, sou fanática, roupa de festa, calcinha amarela, aqueles fogos de artifício que me emocionam sobremaneira e eu sinto uma esperança enorme com o novo ciclo que vai começar.

Tenho vontade de ser boa, fazer tudo direitinho, meu coração fica cheio das melhores intenções e aquela vontade enorme de fazer dar certo as coisas todas que eu sonho meio parecidas a cada começo e final de ciclo, este ano eu vou fazer ginástica, manter minha correspondência em dia, enfim, todas as bobagens que decidimos ser inadiáveis e que ficam sempre pra trás.

Meu coração palpita da mesma maneira como quando eu era menina, e gostava de pensar que é maravilhoso que a cada ano a gente tenha uma oportunidade de recomeçar, uma segunda chance, de tentar fazer melhor, maior, de um jeito diferente.

E o dia do meu aniversário, que eu espero com a mesma emoção infantil. Gosto de esperar por tudo, o carinho dos amigos, as comilanças, os presentes, serve qualquer lembrancinha, mas me sinto muito especial, a homenageada, e um sentimento de que os amigos nos acompanham na jornada e que tá dando certo, a vida, caminhando, tá tudo certo.

Fiz quarenta e um anos a semana passada e me sinto como a personagem do Tomates verdes fritos, vivido magistralmente pela deliciosa Kathy Bates quando ela diz, em plena crise de meia-idade, que ela se sente muito velha pra ser moça e muito moça pra ser velha.

Acho que é esse o grande encanto dos quarenta, que se para alguns é uma benção, para outros é um dilema. Não pra mim, que aprendi por dolorosas vias que a vida é preciosa demais, e que é hoje que tem que ser bom, bom como nunca mais. Mas nem sempre dá certo esta disposição pra bem viver, confesso, quase sempre dá errado, o cansaço, o trabalho, nossos sonhos perdidos, tudo parece conspirar contra, porque a vida sabe ser dura, meu deus, se sabe.

Mas no dia do meu aniversário eu penso que tá tudo bem, mais um ano, um ano da minha vida. E posso relativizar tudo, e sei, que na totalidade do que é a minha existência, alguns momentos são isso e nada mais, os bons e os difíceis, são bons e difíceis e não tem choro.

No dia do meu aniversário parece que tenho uma compreensão profunda da história dos meus dias, que é a história simples da minha vida, da minha biografia. Cheia de erros e atrapalhações, de sonhos que eu não vou mais realizar, de sonhos que eu não vou mais sonhar, a história do meu corpo que não é mais jovem e dos amores que não tive, das viagens que não farei e dos amigos perdidos que ficaram pra trás, alguns pra sempre.

Olho pra mim de forma breve, atenta, como num estranho espelho interior e tenho uma visão lúcida e clara de mim mesma. É um olhar quase sereno. É uma visão rápida, como um flash, e depois volto a ser aquela que pensa que ainda pode, que ainda deve, que ainda quem sabe, que pena que não foi daquele jeito, etc., cumprindo com a ansiedade de atravessar os dias e as noites e de querer realizar os projetos de vida que nem sempre correspondem aos sonhos que tivemos um dia.

É assim este dia pra mim, um por ano, quando penso que tá tudo certo, que a vida é uma bobagem de tão simples e que eu quero ser como a minha tia Magdala que tem 95 anos e outro dia me disse muito surpresa, quase incrédula, "e não é que estou ficando velha!".

É o que eu mais gosto do meu aniversário, de pensar que tem uma segunda chance, de novo, uma vez mais, e que esta segunda chance não é pra todos, que poder nascer de novo a cada ano não é pra qualquer um.

Uma segunda chance a cada ano, ao longo de uma vida, é um luxo.

E eu agradeço.

Lélia Almeida

O corpo dilacerado de Isolina Canuti:

Dacia Maraini, a famosa escritora e feminista italiana resolve contar a história de Isolina, uma moça pobre e desconhecida, uma italiana anônima. Entre elas, transcorre um período de tempo de quase um século. Um século que faz alguma diferença na vida das mulheres, não toda a diferença que se deseja, mas alguma, sim.

Este testemunho de algumas mulheres, que resgatam a história de vida de outras mulheres, é uma das tendências mais marcantes e singulares da literatura de autoria feminina no mundo inteiro. Onde parece haver um movimento contínuo que estabelece um diálogo ininterrupto entre mulheres de diferentes gerações, diferentes etnias ou mesmo de diferentes classes sociais. Exemplos desta tendência são textos como Se me deixam falar..., onde a antropóloga Moema Viezzer relata a história de Domitila Barrios de Chungara, a trabalhadora da minas de estanho da Bolívia; ou Hasta no verte Jesús Mío, onde , a partir do depoimento de Josefina Bórquez, Elena Poniatowska dá vida à personagem popularissima de Jesusa Palancares, uma soldadera da revolução mexicana; ou quando Elizabeth Burgos-Debray dá voz ao relato de Rigoberta Menchú, em Me llamo Rigoberta Menchú y así me nació la conciencia.

Se os textos citados acima podem nos dar uma idéia do que hoje se chama, dentro da literatura latino-americana, de literatura de testemunho, também é correto considerar que todos eles tratam da história das mulheres. E da história mais comum que perpassa biografias e transcende geografias, unindo as mulheres no reconhecimento de uma experiência comum: a da violência sobre o corpo feminino. Em todos estes textos podemos evidenciar de forma mais ou menos central uma violência ancestral, quase atávica sobre o corpo feminino. Toda sorte e toda espécie de violência: doméstica, social, sexual, psíquica, etc.

E quando Dacia Maraini, em 1992, resolve contar a história de Isolina, está também dando o seu testemunho, mesmo sem a presença da protagonista, e contar esta história é uma maneira de negar o silêncio, negar a morte, negar a violência.

O livro publicado na Itália em 1992, Isolina, é traduzido ao espanhol em 1998 pela Editora Lumen de Barcelona como Isolina, la mujer descuatizada, ainda sem tradução no Brasil.

No alvorecer do século XX, em 16 de fevereiro de 1900, os restos do corpo de uma moça pobre e anônima, Isolina Canuti, são encontrados boiando nas águas revoltas do rio Adigio, em Verona. Os restos, enrolados em sacos e pedaços de roupas vão aparecendo aos poucos rio abaixo: primeiro aparecem 13 kgs de Isolina, depois outros pedaços, um ano mais tarde a cabeça, de onde pende uma trança desarrumada. Os restos são encontrados por outras mulheres, lavadeiras que labutam numa manhã fria na beira do rio.

Ao resgatar os pedaços do corpo de Isolina Canuti, Dacia Maraini vai resgatando - não sem dificuldades - os pedaços de sua breve existência e de sua morte trágica e prematura. A história é quase trivial : os Canuti, o pai e os irmãos, decidem alugar um quarto na casa da família, para um tenente por quem a moça se encanta. Aquece suas noites na fria Verona e, desta troca precária, escondida, Isolina engravida. Este o seu pecado capital, sua culpa, pela qual ela deverá ser severamente punida. O Tenente providencia a realização do aborto para proteger sua honra militar, zelar pelo seu nome, afinal, a moça era pobre, desqualificada, e não servia para ele.

O procedimento cirúrgico é um desastre do começo ao fim, atrocidades são cometidas numa improvisada mesa de cozinha onde o sangue de Isolina brota como de um manancial e seca, o corpo banhado em seu próprio sangue, em sua própria morte.

E a solução é rápida e urgente, desfazer-se do corpo, deste corpo incômodo, imenso, que ocupa lugares, sentidos, espaços desmesurados. A solução é rápida e urgente: cortar o corpo de Isolina em pedaços, enrolar os pedaços em roupas e sacos, atirá-los ao rio, indo pelo Adigio, pelo Pó até o mar.

Os poderes públicos de Verona criam um muro de silêncio ao redor do fato, do caso, do processo, sem, no entanto, conseguir escondê-lo. A indestrutível confraria masculina cria uma teia de informações que invisibiliza a história, a história do Tenente, de Isolina Canuti e de sua morte. O Tenente, é claro, está protegido.

Quase 80 anos depois, Dacia Maraini volta a Verona e tenta juntar as partes de um corpo de mulher que foi destruído, esquartejado, negado, esquecido. Retoma as páginas dos processos e da imprensa, da lembrança de alguns, dos eloqüentes silêncios de outros.

A sentença condena a uns poucos meses o Tenente e esclarece que quanto à gravidez de Isolina, não há como provar que fosse dele. E o subtexto é o de sempre: ela, certamente, provocou toda esta situação. A vítima, uma vez mais, é a culpada.

O corpo de Isolina esquartejado, morto, assassinado, sem direito à vida, à sexualidade, ao amor, à maternidade, a uma morte decente, a uma existência digna.

Mas quando Dacia Maraini conta a história de Isolina Canuti, resgata a sua vida e dignifica a sua morte. Quando Dacia Maraini junta os pedaços do corpo da pobre e anônima moça italiana, organiza o relato e dá sentido à sua dramática existência.

E quando nós, homens e mulheres de boa vontade, denunciamos a violência contra o corpo, a vida, a alma de outras mulheres, estamos dizendo que o silêncio é a morte , que a morte é o esquecimento e que nós não queremos parar de lembrar.

E que nas nossas vozes, estas mulheres permanecem vivas.

Lelia Almeida.

Homens não são prêmios:

Ganhei de Natal do meu namorado, um perfume com um cartão. Um cartão que dizia coisas adoráveis como só os namorados sabem dizer. Minha mãe leu o cartão e disse, eu com um cartão desses nem precisava do presente. Pois eu não, eu quero os dois: o presente e o cartão. E mais: mimos, tapete vermelho, amor-e-carinho, champanhe gelada e da boa, do mais simples ao mais chique, eu quero tudo, cafuné, brincos indianos, uma viagenzinha, café preto de mãos dadas, cinema com pipoca, banho juntos, colo na TPM, eu quero tudo. Tudo e mais um pouco. Porque homem com mulher é assim, tem de ser pra crescer, se amar, tem de ser pra prosperar. Tem de ser pra valer.
A psicóloga yunguiana Clarissa Pínkola Estés no seu canônico Mulheres que correm com os lobos, diz que para a mulher a energia masculina é como um banquete, um farto banquete de chocolate, daí a necessidade que as mulheres tem, volta e meia, de se encontrar com outras mulheres, rir como loucas, falar desavergonhadamente dos homens, rir mais ainda e depois voltar para eles. Ela diz que este encontro entre as mulheres é como tomar um caldo frio e se reciclar depois de se lambuzar com o banquete de chocolate. Que é a parte que a gente mais gosta. Mas que só é bom e só funciona se for para completar. Complementar. Compartilhar.
Algumas mulheres da geração da minha mãe, e muitas da minha própria geração pensam que os homens são prêmios e se esquecem que as histórias de amor só funcionam se forem encontro e troca. Porque os homens não são prêmios, são companheiros, são os pais dos nossos filhos, com quem a gente esquenta o pé nas noites frias de inverno e se emociona até às lágrimas ouvindo músicas ridículas por motivos insuspeitados. Dividem a vida e os parcos salários, o sonho de ter uma casinha amarelinha, um carro usado, aquela viagem. São aqueles com quem a gente briga só pra ter o gosto de fazer as pazes e que vai construindo uma teia, uma teia que é uma vida, uma vida que é a nossa vida.
Não tem prêmio, parece uma gincana, cada passo, cada obstáculo, mas não tem prêmio no final. Tem um homem e uma mulher, mãos dadas, palavras-luzes que emergem de vez em quando: pacto, vínculo, elo, comprometimento, amor imenso.
Os homens não são prêmios. Quando os escolhemos e escolhemos seguir com eles de mãos dadas, eles são o nosso amor, melhor amigo, meu eterno namorado.
Foi isso que eu disse pra minha mãe e digo para as mulheres que como ela pensam que os homens são prêmios e que, portanto, acontecem só para algumas eleitas. Cuidado: os homens não são prêmios, são homens e nada mais.
Não se iludam queridas: prêmios não roncam.

Lelia Almeida

50 ML DE CABOCHARD

(ou da invisibilidade do trabalho feminino)

Enquanto penso no que escrever sobre o trabalho feminino, a campainha toca e invade eufórica o meu apartamento uma amiga. Esfuziante me conta que comprou, depois de muita dúvida, um frasco de 50 ml de Cabochard, o preço, o prazer secreto, condições de pagamento, etc. "Comprei, comprei sim, com este perfume eu esqueço o cheiro do ajax, da kiboa, do talco Johnson, da galinha frita, do pinho sol, me transformo noutra mulher, numa mulher de verdade, bela, livre, feliz..." Rimos muito as duas, o cheiro do perfume no ar 50 ml de Cabochard.
Não posso deixar de pensar na complicada relação que as mulheres estabelecem, no mais das vezes, com o trabalho e com a remunereção deste trabalho. Os pobres tostões dados às mulheres, aqueles que eram, histórica e tradicionalmente para os "alfinetes". Alijadas das trocas reais e importantes do mercado de trabalho, das verdadeiras e poderosas trocas do mundo da oficialidade, o manuseio do dinheiro pelas mulheres criou mitos e estereótipos. Ou somos gastadeiras contumazes ou somos desorganizadas. A administração do dinheiro, como do resto todo, só será exitosa através das mãos masculinas. Mãos mais do que habituadas com trocas e valores, com a produção. Poderíamos pensar no clichê usual, corriqueiro, de que nem sempre as mulheres trabalharam , de que trabalhar era coisa de homem. Sempre me pergunto, ao ouvir esta máxima, que tempo foi este quando as mulheres não trabalhavam? Onde estavam as mulheres, o que faziam? Eu que venho de uma família de mulheres que sempre trabalhou, e "fora" de casa, ainda não sei que tempo é este. Inúmeras mulheres não trabalham fora de casa ainda hoje, assim como um contingente enorme de mulheres sempre trabalhou, desde sempre, mundo afora. O trabalho parece ser inerente a este corpo, a esta biologia maldita que nos faz obrar sem descanso noite e dia, vida inteira e que ainda nos faz ouvir que estamos em casa, sem fazer nada, atiradas, relaxadas, com as crianças.
Busco então dentro de mim mesma sensações, memórias, ecos, vozes e recordações das histórias das mulheres e sua relação com o trabalho. Penso na minha avó materna que trabalhava numa repartição pública o dia todo e passava as noites bordando para sustentar a casa, um casal de filhos e minha bisavó, que ficava com as crianças para que ela pudesse trabalhar. A noite era o momento de arrumar a casa, organizar as roupas e refeições para o dia seguinte. Penso também na minha avó paterna, jovem viúva de cinco filhos homens, pequenos, costurando e cozinhando para fora num dia onde se somavam muito mais de 24 horas de trabalho ininterrupto e outras horas de solidão e cansaço. Penso também em minha mãe, professora, costureira, cozinheira, hábil em mil e uma utilidades e afazeres que constroem a existência mais comum e mais vital das pessoas num trabalho que magicamente não aparece e que, por isso, não existe.
E, mesmo antes de pensar na divisão deste espaço - o dentro e o fora de casa - e o trabalho, fico sentindo nesta viagem das lembranças, o cheiro do corpo e do calor destas mulheres, o cheiro das linhas e fazendas, dos doces de frutas da época, das roupas engomadas, as lãs, as comidas, e o bater contínuo da máquina de costura ou da máquina de escrever de minha mãe, a professora, alternadamente durante as noites. Foram todas mulheres sós na maior parte de suas vidas, os maridos ausentes, e a casa se transformava, assim, em seus reinos absolutos.
Essas algumas das impressões da menina que eu era. A impressão forte de que aquelas mulheres e suas tarefas ininterruptas, constantes, permanentes, eram o que garantia a minha vida, a alegria e a sobrevivência. É a impressão de que o trabalho doméstico, ou o trabalho realizado dentro de casa (bordar ou preparar aulas, por exemplo), é um trabalho inseparável do corpo feminino. Se a casa é o espaço da gestação, do nascimento, da amamentação, do crescimento e socialização das crianças, e se quem assegura a existência deste mundo é uma mulher, é natural que o cheiro de casa nos evoque sempre um cheiro materno das mães e de todas as mulheres que nos cuidaram e nos atenderam. No entanto, se este "trabalho" feito em casa, no ambiente doméstico, parece fazer parte "intrinsecamente" da vida das mulheres: amar os filhos, cuidá-los, alimentá-los, vesti-los, tal trabalho é comumente desconsiderado como tal e passa a ser visto como obrigatoriedade, dever e naturalidade de um modo-feminino-de-ser idealizado. Em nome do amor materno e sua "corporalidade" doméstica, a mulher faz algumas tarefas que, historicamente, a consagram como a rainha do lar. Onilza Braga, dona-de-casa, lista com maestria algumas destas tarefas: acordar nos horários convenientes a cada um, ajudar a calçar, vestir e pentear os menores, preparar merendas e arrumar merendeiras, conferir o material escolar de todos, conferir as contas a pagar, forrar a cama de todos, separar as roupas sujas, juntar o lixo, colocar as roupas de molho no sabão, arrumar a casa, recolher e repor os objetos nos lugares certos, limpar cinzeiros, varrer a casa, passar pano úmido, aspirador, enceradeira, tirar o pó dos móveis, retirar a mesa do desjejum, lavar, guardar tudo, levar as crianças à escola, comparecer às reuniões escolares, buscar as crianças, lavar as roupas que estavam de molho, sair para fazer compras, preparar o almoço, preparar sobremesas, lavar e encher o filtro, encher as garrafas de água, dar banho nas crianças, recolher as toalhas de banho e pôr no varal, colocar papel higiênico no banheiro, recolher as roupas que secaram, pôr a mesa para o almoço, guardar as mochilas e uniformes das crianças, entregar a todos as roupas que usarão à tarde, servir o almoço, tirar a mesa, decidir o que fazer com as sobras, lavar tudo, enxugar, guardar, repor a toalha da mesa e os enfeites, passar a roupa, guardar tudo nos armários de todos, consertar roupas, pregar botões, remendar meias, sair para fazer pagamentos bancários, lavar os tênis, levar as crianças à praça ou ao clube e aulas particulares, cortar as unhas de todos, ajudar nas pesquisas e tarefas escolares, organizar a roupa para o dia seguinte, lavar o banheiro, enxugar o banheiro cada vez que alguém molha de novo, cuidar dos animais domésticos, fazer e servir o lanche da tarde, tirar a mesa, lavar, enxugar, guardar tudo de novo, iniciar o jantar, fazer o bolo e biscoitos, fazer a lista de compras, ir ao mercado, cuidar ininterruptamente do bebê, lavar e passar umas quarenta fraldas por dia, preparar mamadeiras e chás diversas vezes, dar os remédios na hora certa, preparar dietas especiais para os que estiverem doentes, entregar toalhas e roupas de quem vai ao banho, lavar vidraças, lavar lustres, lavar tapetes e cortinas, atender à campainha, acompanhar todos à porta, preparar os temperos, cuidar dos machucados, fazer curativos, manter o clima e o bom-humor familiar, cortar a grama e manter o jardim limpo, cuidar das plantas, lavar as escadas, varrer a calçada, lavar a geladeira, armários, fogão, tirar as teias de aranha, polir as panelas, dar faxina semanal, aproveitar a roupa dos maiores para os menores, costurar para a família, atender a todos a qualquer momento, passar o pano úmido no chão da cozinha, preparar o jantar e servir, preparar as mamadeiras da noite, fazer tira-gostos se ele for ver algum filme na TV, conferir se tudo, de todos, está pronto para o dia seguinte, tomar seu banho se tiver chance, ninar os menores, contar histórias, esperar dormir, arrumar a cama de todos à noite, ligar inseticidas nos quartos, fechar janelas e portões, acordar vária vezes de madrugada para atender ou cobrir as crianças, dar plantões noturnos, sempre que necessário, estar a serviço 24 horas por dia, satisfazer sexualmente o marido, com muita garra, embora o que você mais deseja seja desmaiar de cansaço. (Braga, 1992).
É a isso que se chama ficar sem fazer nada.
O trabalho doméstico tem seu curso na vida familiar e é por isto que ele é desconsiderado e destituído de valor. Cuidar da casa, dos filhos, da distribuição das comidas e afetos é obrigação e dever das mulheres. Trabalhar incansável e ininterruptamente na manutenção da casa não é considerado um trabalho, mas um dom, uma vocação, um modo-feminino-de-ser. Criar filhos, cuidá-los, vesti-los, alimentá-los não são produtos de um trabalho porque estas tarefas não são mensuráveis e, portanto, estão destituídas de valor. Um filho não é o produto de um trabalho: ele vai embora, cresce, é impossível medir, mensurar em resultados o seu valor. E vem daí a idéia de que cumprir por 50 anos tais tarefas, entre outras, é não estar fazendo nada e ser apenas uma mulher do lar.
Imbuídas dessa mentalidade, de que sua força de trabalho, de produção, não vale nada, não tem valor, a mulher sai de casa para trabalhar e tem aí inúmeras dificuldades que vão desde conseguir um emprego a definir questões salariais, o seu preço. A mulher que usualmente cumpre mais horas de trabalho que os homens e que ganha invariavelmente menos que eles (e que é a mesma que depois do trabalho vai cumprir com as tais tarefas de rainha do lar) não sabe dizer o quanto vale o seu trabalho. Porque a história das mulheres com dinheiro, ou com a falta dele, o que é mais comum, passa por uma pergunta muito angustiante e muito complicada: a de quanto vale uma mulher.
E socialmente valemos pouco, muito pouco; somos enaltecidas como mães e donas de casa e é paradoxalmente por ser feito por mulheres que este trabalho tem sido absolutamente desvalorizado, diminuído.
Mas sair às ruas, produzir um trabalho mensurável e passível de ser avaliado e valorizado, tem-nos colocado em contato e troca com inúmeras mulheres e suas vozes. Vozes que contam de seus sonhos e seus desejos. Esses, que estão muito além da simples rotina doméstica e de um trabalho extenuante. Sonhos e desejos que nos despertam sensações, possibilidades novas e que falam em identidade, realização, auto-estima, prazer, alegria, respeito, coletividade, cidadania. Talvez a minha amiga, a dos 50 ml de Cabochard, pense em identidade, autonomia, liberdade, de ir e vir com seus tostões e sua vida mesma. O que eu valho e o quanto vale o meu perfume. Nossos sonhos, enfim.
O trabalho realizado fora do âmbito doméstico nos torna mais conscientes e esclarecidas da importância do trabalho que invariavelmente realizamos no mundo da nossa casa (Porque, afinal, alguém tem que tomar conta destas crianças!). Sua importância vital, que é o trabalho dos cuidados essenciais. Trabalho que tem nos tornado um contingente de mão-de-obra especializada, eficientíssimo e caro, extremamente caro aos corações.
As mulheres competentes que foram minhas avós, minha mãe, todas nós trabalhadoras, sabemos desta competência que não tem preço e que ainda não tem uma história.

Lélia Almeida


Criadas para subalternas:

Lélia Almeida

Uma das obra-primas da minha prendada mãe, foi a idealização, concepção e realização, por suas habilidosas mãos, do projeto do meu quarto de menina. Uma cama laqueada com um acabamento floral na cabeceira, colcha, babados e almofadas de cetim em suaves tons rosa-chá combinando com as cortinas e o tapete. E, o objeto predileto de seu projeto, uma penteadeira com um espelho tríptico de folhas ovaladas. A parte principal da penteadeira era uma mesa pequena, vestida com saias de tule e tecidos vaporosos em elegante caimento. Na verdade, uma mesa vestida como uma menina, o espelho soberano e os objetos de uma penteadeira de meninas.
Repeti seu sonho com fidelidade e sem nenhuma originalidade. Criei para mim mesma, uma penteadeira, na minha vida de mulher adulta. Uma penteadeira sem tules ou róseos e românticos tons, mas com objetos parecidos aos de então, e que, parecem ter de perpetuar, desta maneira, algumas ilusões ou alguns sonhos absurdos que constituem uma curiosa bagagem feminina, herdada em linhagem certa, pela longa estirpe da qual eu e minha mãe damos testemunho.
Os lenços de seda da minha mãe, que se estendiam no seu recôndito quarto de vestir, e que era um país à parte na minha infância.
Seus sapatos altos que me elevavam pra perto dela, na parecença, na semelhança, na vontade de ser igual e também de ser diferente, mais parecida comigo mesma, talvez. Os lenços de seda, ora transformados em sarongues, em xales, ora em trajes orientais de distantes e glamurosas Cleópatras, distantes rainhas perdidas no inóspito deserto. Tendas ciganas montadas com lençóis de coloridos padrões, perfumes, brincos e colares, o corpo semi-vestido as vezes, seminu outras vezes, os cabelos soltos, despenteados em tiaras e colares que serviam de adereços múltiplos, lenços que faziam às vezes de turbantes e chapéus, tecidos vaporosos e a promessa de desvelo de uma feminilidade prometida. O véu e o espelho, a brincadeira feminina de mostrar e esconder, de deixar-se entrever, de jamais mostrar-se.
As meninas que brincam de descobrir o que é ser uma mulher. Brincam de descobrir a herança trazida nas também sonhadoras mãos das mães e irmãs mais velhas, avós, tias, mulheres outras, tradutoras de um mundo de rituais e etiquetas para as meninas em flor.
A penteadeira da minha mãe. O cheiro de seus perfumes misturados com seus batons, suas pinturas, seus esmaltes, seus lenços bordados, lingeries, adereços, cremes, talcos. E aquela gaveta mágica que se abria sempre no mesmo horário do meu dia, pela manhã, quando minha mãe recém saída dos vapores do seu banho, com uma toalha enrolada nos cabelos, ainda fresca, abria a imensa gaveta de sua penteadeira, esfregando suas mãos em óleo de amêndoas, enrolada em sua saída de cama, termo este também dela, e que se misturava aos seus objetos pessoais. Ela me olhava, sua ansiosa e infalível espectadora e, como quem inicia um rito, anunciava: “vou fazer a minha cara”.
Como uma legítima atriz na frente do seu espelho iluminado, construindo sua máscara para compor sua persona, todos os dias de uma vida, durante anos, vendo seu rosto, por detrás da máscara, passar pelos anos e pelo tempo, minha mãe sentou-se na frente do espelho. Incansável protagonista de um espetáculo que repetia no mesmo teatro, por anos, o cumprimento de uma rotina doméstica e familiar em que cuidar dos outros, da sobrevivência dos outros era o argumento central da peça e da história. O ritual repetido mil vezes, cristalizando o significado do espetáculo, da trama, da história, o de envelhecer bela, o de não envelhecer, se possível, o de envelhecer o mínimo possível, o de não aceitar a morte, o de negar a morte, que é um pouco como negar a vida. O de estar sempre a postos, jovem, bela e forte, pra cuidar do próximo.
Os passos do ritual encenados como numa liturgia: abrir a gaveta, retirar e ordenar os cremes faciais, a base, antes experimentada em mistura no dorso da mão, as sombras, os batons, todas as cores, do lilases aos bordôs, dos bordôs aos vermelhos, os terras e os marrons, os glosses, os brilhantes, os transparentes. Os pincéis de lábios, os do delineador, do preto, do verde, do marinho. Rímel, cortador de cutícula, lixa, pinça, tesoura e tesourinhas de vários tamanhos para cabelos-pêlos, pontas mal-criadas e brancos inconvenientes. Delineadores líquidos, lápises de diferentes cores, as sombras, as brilhantes e as opacas, o pó facial. O secador de cabelos, as escovas e os pentes.
Os cremes e os adstringentes. Os cremes para dormir, para acordar, para nutrir a pele velha, a alma enrugada, alimentar de ilusões o desejo de uma idade e frescor que não voltam mais. Cremes e loções que se complementam, tratamentos inteiros em que todos os inúmeros e diversos itens são absolutamente imprescindíveis para o êxito e para a melhora das imperfeições femininas.
Os cremes nutritivos, o fixador, o gel, o laquê, o creme das mãos, os cremes para os trinta, para os quarenta, para os cinqüenta, cada vez mais complexos, sofisticados, caros, compostos, em diferentes fases e cores, desafiando Cronos, o senhor dos tempos, que tenta desfazer, impiedoso, a máscara, comprometê-la, descobrir-lhe os truques, mostrar-lhe a face oculta.
No espelho da penteadeira da minha mãe, que depois de pronta, mascarada e vestida, acionava a máquina do dia e das nossas vidas, restava minha imagem diminuta e ainda sonolenta, cheia de preguiça. O reino dos seus batons e perfumes era agora, um pouco meu. Olho-me no seu espelho. Espelho, espelho meu, o que eu quero ser quando eu crescer?
Com os óculos de grau da minha mãe, serei uma eficiente secretária, para cuidar do chefe, importante empresário que não pode sobreviver sem minha prontidão e cuidados. Ou serei uma professora, para poder cuidar, como uma segunda mãe, das crianças de outras mães e perpetuar assim, uma ética do cuidado e do sacrifício, muito feminina também, de cuidar de outrem, sempre e para sempre, quase sem ter tempo ou espaço pra cuidar de mim mesma. Com seus enormes óculos de sombra serei uma atriz, neurótica com minha aparência, e terei de ser sempre jovem e esguia, de dentes perfeitos e peitos duros, e numa performance perfeita terei de perpetuar uma imagem sempre igual, de juventude e saúde impecáveis. Com os inúmeros adereços e perfumes da cosmética da sedução e do amor, garantirei o amor de todos os homens, ou de qualquer um, que seja, contanto que me amem, me desejem e não me deixem. Que não me deixem jamais, por favor, que em tempo algum me deixem a sós a escutar os ruídos da minha fome de mim, da minha fome do meu amor por mim.

Nada dos adereços dispostos na penteadeira da minha mãe me incitam ou convidam a brincar de ser uma mulher inteligente, de querer brincar de ser astronauta ou de ser a dona da empresa em que só me posso ver como secretária. Nada me convida a sonhar em ser uma qualificada física nuclear, a não desejar ter filhos ou marido, ou tê-los a mão cheia, nada me convida a poder fazer escolhas descabidas, insólitas. Ou simplesmente a ser feliz comigo, a gostar da imagem de mim mesma no espelho, a gostar da minha vida que passa como um rio, um mar, um córrego e que me leva para um caminho que tem um fim, um fim natural e certo como o das águas imperturbáveis.
A minha penteadeira se parece a da minha mãe. Reflete no seu espelho os sintomas que falam das imperfeições do corpo feminino. A imprecisão dos hormônios, por exemplo: tratamentos para impedir ou retardar a maternidade, a hora de ser mãe é sempre inadequada, é a mesma hora de render ao máximo profissionalmente, aprimorar-se, produzir, crescer, investir, crescer. O relógio biológico é absurdo, contraditório, trabalha, quase sempre, contra as mulheres: a hora biológica de ter filhos é também a hora social das promoções profissionais, dos estudos, dos melhores empregos, dos mestrados ou doutorados.
Mais hormônios: para recuperar as células-mães, recuperar o tempo perdido (perdido de quem? Perdido por quê? Perdido para quem?). Recuperar a hora e a vez de um tempo para procriar, reverter este tempo, rapidamente – mais remédios e hormônios para as imperfeições do corpo feminino, da frágil casa das pobres mulheres.
Na minha penteadeira, além da herança materna e de uma cosmética cada vez mais aprimorada, há mais e mais: anti-depressivos, ansiolíticos, soníferos, reguladores do humor ou do apetite, toda sorte de psicofármacos, representantes únicos de uma cultura do mal-estar feminino, do mal-estar das mulheres. O corpo feminino parece ser sempre imperfeito: envelhece quando deveria permanecer para sempre jovem e saltitante, quer se aprimorar profissionalmente na hora de parir, quer parir quando seus óvulos querem descansar. O corpo feminino parece ser cheio de imperfeições, imperfeições que nos tiram a alegria, nos impedem a espontaneidade de ser o que somos, com nossas vontades e fomes, como nossas mortes e perdas, com nosso direito de sermos cidadãs de primeira classe.
No espelho da penteadeira que herdei da penteadeira da minha mãe, olho minha própria imagem e vejo uma figura confusa, uma imagem embaçada. Fomos criadas para ser cidadãs subalternas, me ocorre, exiladas da nossa própria casa, em corpos cheios de defeitos, com almas atrapalhadas, somos mulheres que se impõem exigências absurdas de serem cumpridas. Exigências que nos levam para longe de nós mesmas, das nossas mães e filhas, das nossas amigas, das nossas iguais, num movimento que repete, de forma circular, rituais permanentes de eternas frustrações.
Somos mulheres que não admiramos, verdadeiramente, a imagem do espelho. A imagem primeira que olhamos no espelho é fundamental para a construção da nossa identidade, nossa subjetividade, nossa vontade de ser. E, diferentemente das nossas seguras e imbatíveis mães, que cresceram num mundo de muito menos exigências para com as mulheres, não sabemos qual a máscara que devemos compor para as personas que devemos interpretar.
Nós somos as que fomos criadas para ser cidadãs subalternas, subalternas ao olhar soberano de um outro, de um outro que quase sempre nos olha de cima, nunca do lado ou de frente, que nos olha de um lugar distante e, que nos convoca a sermos o que se espera de nós e que é, quase sempre, muito diferente do que, secretamente somos e desejamos ser.
Como medusas implacáveis, nós, as criadas para cidadãs subalternas, olhamos no espelho uma imagem cristalizada que tem mostrado muito mais da nossa tristeza do que da nossa esperança.

“Santo Afonso Henriques! Fazei de mim uma escritora. Nada de festivais, de júris em concursos (de beleza ou literários), de cargos em repartições chamadas culturais, de capelas, de frases de espírito. Livrai-me dos fascínio que tantos de nossos autores hoje, têm pelo convívio com os ricos, pela adoção obrigatória de livros seus na área estudantil, pelas viagens com passagem e hotel pagos. Fazei-me orgulhosa de minha condição de paria e severa no meu obscuro trabalho de escrever”.


(Dos papéis de J.M.E. in : A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins).

A história de Piu Tchi e Tchi Piu

Os ruídos ensurdecedores das hordas maoístas se aproximavam cada vez mais dos santuários tibetanos. Os nobres monges, criados entre a elevação espiritual e a ingenuidade das crianças felizes, estavam amendrontados. Não sabiam o que sentiam, eles, acostumados com os nobres sentimentos e o riso solto, misturado à disciplina e bem-aventurança. O medo instalara-se nos santuários que pregavam a paz, a verdade e o infinito amor por tudo o que vive e morre.

Os bárbaros chegaram pisoteando, com seus passos firmes e devastadores, as belas mandalas de pétalas de flores construídas pelos monges, herança de uma sabedoria própria e milenar.

Dois monges, recém entrados nos mistérios e inquietudes da adolescência, Piu Tchi e Tchi Piu fugiram em desabalada carreira pelas implacáveis montanhas, para poderem assim, preservar os ensinamentos da casa de Buda e salvar a própria pele e espíritos, é claro. Um vestia um manto cinza, outro um manto preto, eram iguais, formando duas metades de uma unidade, irmãos, companheiros inseparáveis. Trouxeram pulgas ao longo dos caminhos, inevitavelmente.

Transformaram-se, na poética lógica budista, da transmutação dos corpos em outros corpos e dos espíritos em muitos mais, em dois gatos siameses misturados com temperado gene vira-lata. Aprendizes e mestres da mais sofisticada tradição zen, espalham-se, hoje, em confortáveis tapetes e coloridos edredons, comem frugalmente e brincam como dois meninos contentes. Brigam, eventualmente, sem descartar de um todo suas origens felinas, esquecidas pelo conforto de um pequeno apartamento cheio de livros e poucas plantas.

Mudaram seus nomes, ocidentalizaram-se por precaução, depois de salvos do perigo dos fanáticos predadores. Piu Tchi chama-se hoje, Yoda, codinome Yoyogrey, Príncipe das cinzas, Iago, Gisele Bünchen, Bênção peluda ou Devoto de Santa Lélia. Tchi Piu chama-se Ulisses, codinome Uliboy, Príncipe das trevas, Otelo, Naomi Campbell, Pedacinho de Deus com pêlos, Desbravador dos sete mares, Neguinho da beija-flor ou Bolinha de ébano.

Vivem em paz num pacato lar do ocidente, numa cidade pequena e cheia de flores, alimentando os espíritos mais sábios, aconchegados e esparramados com a elegância e preguiça que só os que meditam e ronronam sabem, dignamente, ter.

Lélia Almeida (2002)


Oração do fundo do poço:

Todo mundo tem medo do fundo do poço, ninguém quer ir ao fundo do poço e quando alguém tenta nos contar da experiência que o levou ao fundo do poço, não consegue ser absoluto, se engasga, fraqueja, percebe que a reprodução da experiência, a expressão da experiência, é praticamente impossível. O fundo do poço é uma experiência, é um sentimento que faz parte do terreno do indizível. Porque são raros os momentos da nossa vida que vamos realmente ao fundo do poço, em geral só temos valor, coragem para ir até a metade, e no lugar do que seria a outra metade, arranjamos expedientes como doenças, vícios, péssimos hábitos, brigas injustas, amores mentirosos, enganos. Ir ao fundo do poço não é para qualquer um, é coisa para iniciados, para bravos, para fortes e, que em geral estão travestidos de frágeis e fracassados. É o fundo do poço quem nos escolhe. O fundo do poço é um luxo. Uma travessia. Umbral. O fundo do poço é o lugar onde se está só. Lugar da solidão e domicílio da escuridão, onde não há mais nada além do ritmo silencioso da nossa alma machucada e retirada, onde nos enovelamos ao redor do próprio corpo ferido e pedimos trégua, trégua para Deus, para os amigos e os inimigos, para os filhos e os vizinhos, para o mundo, porque as nossas forças estão concentradas nisto e nada mais: ir até o fundo do poço, e ficar ali. E ficar ali. E aprender a ficar, e aprender a ficar cada vez que a vontade é sair, e gritar, mas Meu Deus, quando é que passa se parece que não passa nunca, que nunca mais vai passar. O fundo do poço nos faz exagerar, a gente diz, não vai passar nunca, porque o fundo é muito fundo e não há forças para voltar, para sair. O fundo do poço é o lugar do silêncio, onde se ouve só o que conta: aquela voz mágica da nossa intuição, do coração, da nossa sabedoria mais profunda e primitiva, do nosso instinto sagrado. E é preciso concentração, silêncio, sobretudo muita calma e tranqüilidade para ouvir esta voz mansa e firme, que é a voz que cuida da gente. É preciso silêncio e escuta fina para ouvir a voz da própria alma, dos próprios e sinceros sentimentos. O fundo do poço é um espelho, de superfície embaçada às vezes, mas que quase sempre reflete imagens nítidas, mesmo que os nossos olhos nem sempre estejam prontos para poder ver. Para poder ver a nossa imagem triste, ouvir o nosso choro e a nossa fúria, a nossa vaidade ferida, o nosso amor partido, as nossas esperanças roubadas, somos feios na imagem deste espelho que é o fundo do poço, queremos ser outros, somos feios e tristes e não vai passar nunca. Mas o fundo do poço é um espelho, é o lugar da nossa humanidade, da nossa nudez, da nossa ignorância e da nossa intensidade emocional, é o lugar onde temos de aprender a pedir perdão, perdão para nós mesmos, porque erramos e nos enganamos, perdão porque éramos pequenos e egoístas, perdão porque somos altivos e pensamos que o amor existe para nos servir e suprir, o fundo do poço é um altar, onde temos de aprender a reverenciar o amor, nas suas formas mais simples, secretas, singelas e misteriosas. Estar no fundo do poço é aprender amar. Amar. Calmamente, silenciosamente, sem contar para ninguém, sem anunciar no rádio, sem ter de mandar mensagens insuficientes pelo telefone, internet , celular, um amor que exige silêncio, entrega e mistério. Mistério de não compreender, mistério de não entender, mistério de não poder contar. O fundo do poço é uma fonte de águas limpas e cristalinas, onde devemos aprender a beber aos poucos, sem sofreguidão, porque a sede da alma de quando se está no fundo do poço parece ser inesgotável, mas não é, inesgotável é a fonte, uma fonte pequena de água clara que brota em ritmo regular e que não seca nunca, aí temos de ir e aprender a beber novamente, da alma, do silêncio, do que se é e ainda não se sabe. O fundo do poço é o lugar do sonho, do desejo, e nem todos podemos entrar em contato com os nossos mais secretos desejos, é preciso treinamento para poder compreendê-los, selecioná-los e saber como vamos reconhecê-los em nós, como vamos nos tornar eles. Por isso é preciso tempo para ir ao fundo do poço, por isso é preciso um tempo sem fim para estar no fundo do poço. O fundo do poço é um lugar úmido, daquela umidade necessária e suja de onde brotam as delicadas e verdes avencas, é escuro, como a terra mais secreta e dura de onde brotam as sementes mais difíceis, de onde explodem as mais improváveis, o fundo do poço é frio e distante, daí este movimento de abraçar o corpo, acarinhar a alma em busca de calor novamente, de calor, o fundo do poço é uma estufa ao contrário, é um avesso, só aquece o que está por dentro, concentra a energia, o fundo do poço é uma terra de ninguém, longe de qualquer lugar, zona limítrofe, de fronteira entre o que jamais voltarei a ser e o que eu nem sonhava que poderia ser, aí estamos nós, sós e perdidos, sem pai, sem mãe, sem nada. O fundo do poço é Deus, o Deus que se quiser. O fundo do poço é um coração, um rato, uma barata, uma prenda de roupa antiga, uma carta de despedida, aquela noite de amor, os filhos que se foram, os amigos mortos, os amores que não vieram, o fundo do poço é a nossa medida, a história das nossas perdas, a história dos nossos sonhos, das nossas ilusões.

O fundo do poço é um buraco negro no universo, quando chegamos ao fundo do poço não temos forças para olhar para o céu, olhamos para dentro, olhamos para dentro e, um dia, dentro é como o céu que se vê do fundo do poço, e aí somos projetados para o universo, com força e desajeitamento, para um universo brilhante e luminoso, daqueles de doer nos olhos, somos projetados para as estrelas, para o incomensurável e também indizível brilho das estrelas. O fundo do poço é o céu. O fundo do poço é iluminado, o fundo do poço é o lugar da nossa dor que é o mesmo lugar da nossa alegria. Da nossa desesperança e do adeus. O fundo do poço é um berço, úmido, escuro, quente por dentro, é uma urna fechada, o fundo do poço é uma matriz, um ovo, uma casca, uma casa. O fundo do poço é quando a gente está em Deus, o fundo do poço é quando a gente volta para casa, o fundo do poço é quando a gente chega em casa, e pode estar, descansar, ficar e ser. Respirar a brisa das noites suaves de antes do verão, manhãs frias, tardes chuvosas de outono, brilho das estrelas, cheiro de mar, o entardecer tranqüilo, noites sem dormir, o fundo do poço é onde aprendemos a olhar o mundo, o beco, ruas perdidas e tortuosas, velhas e pequenas igrejas abandonadas, a natureza, o outro. O fundo do poço é um luxo. O fundo do poço não é para qualquer um. O céu também não.

Lélia Almeida (2002)