quinta-feira, 5 de agosto de 2010




Escombros:

Lélia Almeida.

Há um oco dentro de mim. Um vão. Um buraco. E agora estou, finalmente, dentro do buraco que me habita. Este oco é a minha mãe, a que não teve pai. O lugar é como um centro. Um núcleo de titânio, metálico, me ocorre. Minha mãe é um deserto. O buraco é seco. Não verte água e nenhum tipo de secreção. Nem sangue. Nem lágrimas. Lembra a secura de uma caverna escura onde o ar é escasso. Aí está guardada a minha tristeza sem fim. E a minha raiva também. Toco o meu corpo agora e o estrago parece ser de proporções irreversíveis. Toco este corpo que ela me ensinou a odiar e a deformar. E a tristeza é seca e gelada também e me assalta em momentos improváveis. Dói o coração, sinto as pernas cansadas, palpitações. Tenho medo de não agüentar agora que habito o buraco de mim onde esteve guardada, durante tanto tempo, a minha tristeza. Eu pedinte, eu quebrada, o sentimento tão familiar de desamparo. E ela soberana, exigente, implacável. Consegui roubar-lhe a menina que não deixei nascer, a minha primogênita e, tento, muitas vezes, em vão, proteger o meu filho da sua insatisfação sem fim. Minha mãe buraco. Minha mãe oco. Minha mãe cratera. Busco-a no meio da cidade devastada, nos escombros de um tempo que já passou. Não havia angústia no meu grito, no sonho que tive com ela, quando eu chamava por ela. É um amor obrigado, como o dos casamentos arranjados, teríamos inclusive sido amigas, quem sabe, se não fosse a obrigatoriedade deste (des) arranjo. Busco-a sem ânimo, cansada já, sem o peso da preocupação que encheu o meu coração de responsabilidades insuportáveis quando eu era uma menina e ela me contava sobre a morte da mãe, o abandono do pai, o hospital, a tristeza, a perda. Foi ali que comecei a cuidar dela, arrastando esta obrigação como um fardo, vida afora. E agora cansei. Como cansei do amor inútil de cuidar de quem não me ama. E dos desdobramentos patéticos deste amor inútil que reverberaram sobre os meus dias. Minha mãe oca. Onipresente e ausente. Vou embora agora. É impossível reencontrá-la nos escombros da cidade devastada. A cidade é ela, a cidade é o corpo dela. Estendido imenso sobre a minha vida, num espaço que quase me impede de respirar. Antes de partir vou juntar as pedras de alguns muros das casas que me foram caras, marcos de janelas, cacos de telhas, azulejos partidos. Alguns objetos sem significado. Vou guardá-los, como se guardam pequenos cadáveres secos de lagartixas prensados entre as páginas de livros grossos. Só para não esquecer de que um dia estive ali na cidade devastada que é o corpo da minha mãe e que tem uma cratera no lugar do coração, e que às vezes lembra uma boca escancarada, com dentes comprometidos, a me pedir voraz o que ela mesma nunca me pôde dar. Não posso mais ficar, mãe. Levo pedaços dos escombros para não esquecer desta arqueologia sinistra que me forjou, cimentada no desamparo. E na tua ausência que cobriu os meus dias de palavras, de palavras, de palavras. Vou partir agora, minha mãe, minha mãe cratera, e encher este buraco onde habito morta de frio com a minha tristeza, com outras coisas, com literatura, quem sabe, esta que terminou sendo a única ponte possível entre nós. E começar a aprender a sentir. Simplesmente sentir. E poder conhecer quem eu sou longe do teu desamor.

In: Anovaela. (Fragmento, texto inédito, 2008).