segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012


Eu, aos cinquenta:
por Lélia Almeida.

Dia 20 de fevereiro faço 50 anos. Meu aniversário coincide com uma mudança de casa, vou para um apartamento menor, eu, três gatos e muitos livros. Hoje comecei a empacotar os livros e fui tomada por um turbilhão de estados emocionais e alterações de humor que só quem passa por isso sabe do que se trata. Porque na hora de encaixotar os livros, muitos, inevitavelmente, vão ficar pelo caminho.
Já fiz mais de 20 mudanças para lugares, cidades, endereços e países diferentes e já deixei muitos livros pra trás. E como choro na hora da escolha do que levar e do que deixar. Uma escolha é também uma renúncia. Uma escolha reafirma quem ainda somos e os livros que não vão conosco parecem gestar um cadáver daquilo que não somos mais e que vai embora agora, um pedaço de nós, embalado numa mortalha feita de caixas de supermercado, jazer na Biblioteca Demonstrativa de Brasília.
Chorei de ranho ao pé da Antologia General de la Literatura Española (verso, prosa, teatro), de Angel Del Rio de Columbia University y Amelia Del Rio de Barnard College, da Revista de Occidente de Madrid, de 1954, três portentosos volumes em couro legítimo que somam juntos mais de 3.000 páginas. E da Historia General de las Literaturas Hispánicas de Guillermo Díaz-Plaja da Editorial Barna, de Barcelona comprada na maravilhosa livraria García Santos libros em Mendoza na Argentina, dois volumes de mais de mil páginas cada um, capa de couro clarinho. E dos quatro volumes da Historia Comparada de las literaturas americanas de Lui Alberto Sánchez, editado pela Losada e comprada na Librería Y... do Jorge, em Mendoza.
A Líbrería Y... era do Jorge, o último riponga autêntico da cidade e ficava no centro de Mendoza, na Argentina. Era, na verdade, um galpão imenso, cheio de livros maravilhosos, pé direito altíssimo e muitos gatos que ele criava ali, misturado com os livros. Apaixonado por Cortázar, Jorge teve várias livrarias na cidade e cada uma tinha uma parte do nome do livro Historias de cronopios y de famas. Todas faliram, só tinha sobrado a Y... onde permanecia o acervo fabuloso de todas as outras. Nas tardes de domingo eu e o meu filho, que tinha sete anos então, passávamos a tarde garimpando livros, brincando com os gatos e tomando mate com o Jorge e a Marta que nos apresentavam editoras e autores imprescindíveis. Nosso primeiro gato veio dali, o Preto, o nosso gato mendocino. Trouxe verdadeiras relíquias daquele lugar que não existe mais. Voltamos a Mendoza dez anos depois para visitar os amigos e o lugar vendia geladeiras, fogões e eletrodomésticos.
Tudo isto lembro agora secando as lágrimas com os dedos cheios de pó, espirrando na hora da escolha. Não consegui me desfazer das feministas clássicas, que domaram o meu espírito rebelde, prossigo então com a Alexandra Kollontai, Rosa Luxemburgo, Simone de Beauvoir e outras que não interessam a mais ninguém, e as brasileiras, Carmen da Silva, Heliete Saffioti, Heloneida Studart, Danda Prado, e outras tão caras a minha geração. Minha vida de menina, da Helena Morley também vai. Tudo o que veio da fronteira comigo, permanece, os latino-americanos da Editora Losada comprados na Casa América, Lorca e Miguel Hernández que me iluminam sempre.
Olho para os que permanecem e vejo que alguma coisa em mim não muda e se perpetua a cada vez que os mesmos livros são embalados outra vez. Não só as feministas clássicas, as contemporâneas, que me ensinaram a pensar e a olhar o mundo sob outro ponto de vista, o das mulheres. Não posso prosseguir sem elas, as espanholas, as italianas, as mexicanas, as francesas, as americanas, as inglesas, Marcela Lagarde, Michelle Perrot, Elaine Showalter, Luisa Pousada, Helene Cisoux, Adrienne Rich Sandra Gubar, e tantas outras. Ironicamente encontro Medo aos cinquenta da irreverente e maravilhosa Erica Jong que antes me salvou das minhas ilusões aos 20 anos com Medo de voar. Não, não vou sem elas a lugar algum. E nem sem a Lísia Pessin e a Virginia Wolf, Adélia Prado, Alfonsina Storni, Rosario Castellanos, Clarice Lispector, Lila Ripoll ou a Cecilia Meireles.
Se um cavalheiro me pedisse, gentilmente em casamento hoje, e fossemos tratar do dote eu não teria como enganá-lo e lhe mostraria os meus tesouros: a obra completa da karen Blixen, a obra completa da Peri-Rossi, a obra completa da Carmen Martín Gaite, os diários da Anaïs Nin que sempre modulam com delicadeza a minha alma assombrada. Cassandra Rios, Adelaide Carraro, Alicia Steimberg e Elfriede Jelinek.
É o que temos, senhor, eu diria, a obra completa destas damas, três gatos. E era isto. Ele desistiria, estou certa, diante de um dote tão miserável, e ficaríamos amigos, quem sabe.
Deixei as gramáticas de língua espanhola para trás, as de língua portuguesa também, e muitos dicionários, há muito que não sou mais professora de línguas e literaturas e esta parte foi triste, confesso.
Outros temas se incorporaram nos últimos anos, temas sobre direitos humanos e mulheres, mulheres que lutam pela paz no mundo, sobre conflitos e sobre feminismo pacifista. Os livros da infância e da adolescência do meu filho também vão ficar, e os de um doutorado em literatura comparada nunca concluído também não me acompanham mais.
Mas nem morta eu me desfaço do Sergio Faraco, do Simões Lopes Neto, do Erico Verissimo, do Julián Murguía, do Acevedo Díaz, do Mario Arregui, do Felisberto Hernández, Borges, da Juana de Ibarbourou, da Delmira Agustini que desenharam a alma da paisagem da fronteira que é o meu lugar no mundo.
Chorei toda a tarde embalando os livros, as latino-americanas que eu amo, minhas mestras, Elena Poniatowska, Griselda Gambaro, Diamela Eltit, Alejandra Pizarnik. Os das cartas de amor, os gregos, as cartas de amigos, os mitos, os livros dos arcanos e os tarôs, os dos planetas, os de receitas, os atlas, a Dona Benta ainda vai comigo, mas desta vez consegui liberar o Dr. De Lamare.
Cinquenta anos e não sou uma mulher só. Aos cinquenta anos sou uma mulher simples, que vai morar num loft pequeno cheio de livros e três gatos. Levo, La enciclopedia de las cosas que nunca existieron do Michael Page y Robert e do Ingpen Lee, que amo tanto.
Aos cinquenta anos sou, pois, uma mulher de palavras, das que leio e das que escrevo. E continuo perseguindo as palavras com a mesma obsessão e curiosidade de quando era uma menina e perguntava o significado delas à minha mãe. E ela sempre sabia responder. Treliça. Salamandra. Aleluia. Monjolo. Cometa. Benjoim. Minuano. Castiçal. Manjedoura. Entranhas.
Aos cinquenta anos acordo no meio da noite em ânsias, tomada de uma angústia inexplicável, suando, acendo a luz e abro um livro ao acaso, os Cuentos de amor, de locura y de muerte do Horacio Quiroga com a dedicatória: Jamás te olvidaré, te amaré siempre, em beso, Germán, Rivera, 1975. Não sei quem é, mas não estou mais só e então volto a respirar com calma, amparada agora pelo Quiroga e louca de saudades deste Germán que, graças aos céus, em algum lugar do mundo, ainda me ama.
Aos cinquenta anos sou exatamente o que sonhei ser quando era uma menina: uma mulher de palavras.
Seco as lágrimas, tomo um banho, prendo o cabelo molhado, a cara limpa, sem maquiagem e antes de dormir olho a pilha dos livros que ficam e dos que vão embora. Mudei muito pouco em tanto tempo. E passou muito rápido.
Na pilha dos livros que ficam o que sempre me inspirou: as mulheres, as mulheres escritoras, as furiosas, as loucas e as irreverentes, algumas delicadas, as romancistas, as que brigam contra as injustiças, as poetas, as senhoras das palavras.
E na mesma pilha o esboço daquilo que tenho sido, lapidado: uma leitora, uma aprendiz de escritora, uma senhora cheia de rugas, del sur, do Prata, perdida no mundo, andarilha, com algumas convicções por demais arraigadas, forjadas a fogo lento, uma senhora de cabelos brancos e com o coração ancorado no pampa.