sábado, 2 de julho de 2011









O céu é na Ceilândia, por Lélia Almeida. (Para as minhas amigas-anjas)


Aos sábados eu vou ao céu. O céu sempre foi um lugar inimaginável para mim de tão vasto, infinito, imenso. Foi assim desde que eu era menina. Depois fiquei muitos anos sem pensar no céu, divorciada da transcendência e por demais ocupada com a materialidade da vida, e das mazelas terrenas. Atarefada demais para lembrar que tem um lado da gente que só o céu dá conta. Que é um lado de dentro. E que a gente só lembra dele quando o lado de fora não responde, não explica e não nos acolhe mais.
Meu filho esteve muito doente no ano passado. Agora ele está bem. Mas quando ele esteve doente, o mundo este onde eu me sentia tão a vontade e segura, não respondia mais ao desespero do meu coração. Ninguém quer saber de você quando você está desesperada. E não é porque as pessoas não lhe querem bem, é que o desespero funciona como uma espécie de espelho, quando você vê alguém desesperado, parece que o seu desespero acorda, a sua agonia desperta e então você lembra que as coisas terríveis que acontecem aos outros, também podem acontecer com você. E você se afasta, sai correndo, foge, quase sempre usando de expedientes do tipo, fulano está exagerando, não é pra tanto e esquece, esquece que a criatura existe e volta confortável para o seu mundo sem dores.
Atravessei a doença do meu filho como quem atravessa o deserto a nado. Esta era uma das imagens que me ocorria, a de um tempo estagnado que parecia não passar nunca, ele que só piorava e meu coração que ficava, a cada dia, mais apertado. Tudo o que era deste mundo deixou de servir e de ser importante. As respostas já não estavam mais ao meu alcance, as perguntas também pareciam ser sempre equivocadas. E me entreguei, finalmente, para a errância e para a escuridão do deserto. Eu e o meu filho com a alma perdida e o corpo quebrado. Foi quando voltei a pensar no céu. A olhar outra vez as estrelas e a ter a certeza de que quem olha para cima, olha para dentro. Tive de aprender de novo a olhar para o céu, eu que tinha estado desatenta por tanto tempo.
Todos partem quando você tem de atravessar o deserto sozinha, carregando um menino doente nos braços. É quando chegam os anjos para socorrer você, mas eles só aparecem quando você entende profundamente que está só, e que isto é o que lhe cabe. Cuidar do menino.
Os anjos, muitas vezes, aparecem disfarçados de amigas. E então elas levam você para uma igreja humilde e muito pequena, nos confins de um lugar chamado Ceilândia, na verdade, um lugar que se chama a extensão da Ceilândia, uma das cidades-satélites de Brasília.
Lá é o céu. E o céu não é dos ricos, o céu parece ser o único lugar do mundo que os ricos não podem e nem querem comprar. Apesar da hierarquia imprescindível – a ordem e a disciplina são sempre boas guias – o céu é um lugar democrático onde somos todos iguais aos olhos de Jesus, um Jesus de madeira e muito simples pendurado numa parede pintada de azulão.
Para entrar no céu, que é uma sala quadrada onde vários médiuns vestidos de branco dão passes, passamos por uma senhora que distribui senhas que ela retira de uma caixinha de madeira. O rigor com que ela administra as fichas de papel gasto me fez refletir muitas vezes sobre a maneira como trabalho e como prezo o meu ofício. E que a verdade dos gestos é que glorifica o ritual, seja ele qual for.
Ela é a guardiã do céu, não sei se uma versão de São Pedro com as chaves ou uma versão de Miguel e Gabriel quando pesam na balança os frágeis corações humanos para saber o tanto que fomos pecadores ou virtuosos.
A senhora que me atende, na primeira vez, é muito miúda, baixinha, com uma trança de cabelos brancos, toma a minha cabeça em suas mãos e começa a reza e me diz, a madama que é tão estudada, não sabe falar com Deus, tanto estudo que não serve pra nada! Pergunto a ela como faço para falar com Deus e ela responde, converse com ele, minha filha, e peça a ele para aliviar o seu coração porque isto não é jeito de sentir dor! Mas a gente só fala com ele quando tem fé. E ela me diz que traga um terço e água para benzer.
Volto lá todos os sábados. Gosto do hinário e daquelas vozes potentes de pessoas tão simples louvando a bondade e a beleza da Nossa Senhora, a proteção de São José e o amor do Menino. São homens e mulheres trabalhadores, que têm o rosto cansado da jornada da semana, e carregam as crianças da família que esperam pela hora do passe, brincando umas com as outras, comem salgadinhos, conversam e cantam como anjos pequenos.
Já tenho amigas novas. Como a Benedita e suas três netas pequenas, cada uma filha de um dos filhos que deixou a menina por ali e partiu. Benedita tem falhas enormes nos cabelos, e com o tempo, ela me conta, que tem dias que ela arranca os cabelos quando está com raiva. Ou quando está triste.
Ontem conheci a Vanusa, que trabalha numa ONG que cuida de animais abandonados, ela me disse, tivemos de abrir a ONG porque tinha muita gente abatendo os bichinhos para comer. Porque falta tudo no céu. O céu é precário. O céu é como o mundo. Um lugar de difícil sobrevivência. E cheio de dores e esperanças. Cândida e seus nódulos no peito, Inês e seu menino deficiente. Tem dias que ouço vozes, muitas mais, como se o número de médiuns fosse o dobro do número real. O que acontece dentro de uma casa de oração pode fazer a gente delirar, eu acho que não é delírio, eu acho que é milagre mesmo. Afinal, os loucos, as crianças, as mulheres, os pobres e os santos sempre andaram juntos.
Meu filho melhorou. O medo que eu senti, o medo de perdê-lo, entrou nos meus ossos e se instalou para sempre dentro de mim, numa espécie de frio. Com o tempo deixei de me sentir desesperada, o que eu sinto agora, de vez em quando, são calafrios. Levo um terço para benzer todo o sábado e quando o medo é muito forte me penduro no rosário como se fosse um cordão umbilical inquebrantável que me une e conecta com a Nossa Senhora.
Outro dia a Diva, a do filho craqueiro, me perguntou, o seu filho já não melhorou, o que é que você faz aqui então todo o santo sábado, eu disse a ela que venho para agradecer, para não esquecer que a gratidão é uma boa prática, para não esquecer que podemos sobreviver com muito pouco, um rosário pequeno de contas de madrepérola e muita água.
E para lembrar toda a semana que eu tenho tudo.


(Na foto, com as meninas Carla, Naiara e Emili, na Ceilândia.)

sexta-feira, 1 de julho de 2011



Emily L. faz poemas, mas não fala sobre isso. Seu desejo é o de escrever. Seu desejo, ela o recebe como uma compulsão. Muito antiga. Antiga demais. Eu associo àquela que acometia os caçadores da pré-história, nas noites de primavera. Eu vejo a literatura assim, como um algo comparável à caça pré-histórica. Quando nenhuma palavra tinha sido escrita. Eu a vejo chegar assim. Com essa força que levanta os homens (...) Escrever é também isso, esse apetite de carne fresca, de matança, de marcha, de consumação da força. É também essa cegueira. (Marguerite Duras, in depoimento ao Nouvel Observateur)

quinta-feira, 30 de junho de 2011

A consulente aflita pergunta entusiasmada para a cartomante, - E este, é ou não é o homem da minha vida? Ao que a consulente respondeu, - Vocês dois juntos, minha filha, são a ruina e a destruição abraçados! (Lélia Ameida)


Rapidinha: A consulente aflita tenta explicar para a cartomante os dramas para administrar a sua vida dupla, ao que a sábia cartomante responde: não se culpe e nem se prive, minha filha, lavou tá limpo! (Lélia Almeida)




Rapidinha: a consulente perguntou aflita para a cartomante, veja aí se este estropício já saiu da minha vida, ao que a cartomante respondeu: - ele nem entrou! (Lélia Almeida)

terça-feira, 28 de junho de 2011

O fim da tristeza:

Lélia Almeida.

Um mar de lágrimas. Uma mulher muito branca atravessa, numa embarcação pequena, um mar de lágrimas. O céu é azul cobalto e as estrelas imensas. A mulher tem os cabelos grisalhos e vestes transparentes. Está em pé na embarcação e chora com as mãos no rosto, em tristeza profunda um pranto sem fim. A embarcação desliza lentamente, o pranto é desolador, as estrelas despencam do firmamento e deixam o mar brilhante, como papel laminado. Uma transformação acontece enquanto a embarcação avança e a mulher chora. É uma transmutação, na verdade. A mulher solta os braços sobre o corpo, levanta a cabeça e vê a chuva de estrelas que despenca do céu. O ar é leve agora, a mulher não chora mais, respira a plenos pulmões e compreende o milagre. Um dia a dor vai embora, um dia a dor não nos quer mais. E então a única aventura possível é rumar firme para a alegria. A mulher avança. A paisagem agora é solar e ela vai para o seu centro, depois da travessia da dor. Ela volta para casa, finalmente. Ela volta para ela.

domingo, 26 de junho de 2011

O pão da alma:

Lélia Almeida.

Escritura é culinária. Você escolhe os ingredientes, mistura e deixa a massa descansar. A história cresce. Depois põe no forno e espera com paciência pela alquimia dos elementos. Depois do forno, a história cresceu, tá pronta. A comensalidade é quando partilhamos as experiências, e a literatura é o pão da alma.