quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Rituais I:

As pessoas me perguntam: Quais são os rituais que podemos adotar? Bom, antes disto é importante perguntar, para que se quer um ritual? Deveriam ter um ritual para sua própria vida. Todo ritual concentra as mentes naquilo que se está fazendo. Por exemplo, o ritual do casamento é uma meditação sobre o passo que se está dando, o aprendizado de ser parte de um par em vez de ser um indivíduo só. O ritual nos permite fazer o trânsito.
O ritual nos introduz ao sentido do que está acontecendo.
Uma ação de graças antes das refeições faz com que saibamos que vamos comer algo que já esteve vivo.
Todo o ritual é desta ordem; põe a mente em contato com o que realmente estamos fazendo.
O principal ritual na maioria dos ritos de iniciação da puberdade é um ritual onde mudam o seu nome. Morre-se para o nome anterior e renasce-se com outra identidade.
O menino tem de “representar” a sua transformação num homem. A menina tem que “compreender” que é uma mulher. A vida o exige.
O homem jamais tem uma experiência semelhante. É por isto que muitos rituais de iniciação masculinos são tão violentos, tanto que o homem sabe com segurança que já não é uma criança. E é por isto que um jovem tem de ser separado da sua mãe. Na nossa cultura há mães que compreendem isto e ajudam na separação. Nas culturas primitivas, ele são separados definitivamente.

Rituais II:

Por isto está este ritual que permite a mulher deixar o seu filho homem partir. Ao longo dos anos o capelão da família, o guru, vem e lhe pede algo valioso que ela deve entregar. Começa com alguma jóia (que são praticamente as suas únicas posses) e depois ela tem que abandonar uma comida que gosta muito. Tem que apreender a desprender-se de coisas que valoriza. Depois vem a época em que o seu filho já não é mais um menino e então a mulher já aprendeu que as coisas mais apreciadas na sua vida podem partir.

J. Campbell.
Sobre esquecer, trabalhar e amar:

(...) Cinco dias antes de deixar aquele país, encontrei-me com Phaly Nuon, que já fora candidata ao Prêmio Nobel da Paz e estabelecera um orfanato e um centro para mulheres deprimidas em Phnom Penh. Ela obtivera um enorme sucesso em ressucitar mulheres cujas aflições mentais eram tamanhas que outros médicos as haviam abandonado à morte. De fato, o seu sucesso fora tão grande que a equipe de seu orfanato é quase inteiramente formada por mulheres que ela já ajudou, e que criaram uma comunidade de generosidade em torno de Phaly Nuon. Se você salva as mulheres, dizem, elas por sua vez salvarão as crianças, e assim, traçando uma cadeia de influências, pode-se salvar o país.
(...) No início dos anos 70, Phaly Nuon trabalhava para o Departamento Cambojano do Tesouro e Câmara do Comércio como secretária, datilógrafa e estenografa. Em 1975, quando Phnom caiu em poder de Pol Pot e do Khmer Vermelho, ela foi tirada de sua casa com o marido e os filhos. Seu marido foi enviado para um lugar desconhecido, e
Phaly Nuon não tinha idéia se fora executado ou continuava vivo. Ela foi colocada para trabalhar no campo com sua filha de 12 anos, o filho, de três e o bebê recém-nascido. As condições eram terríveis e a comida escassa, mas ela trabalhava ao lado de seus companheiros, “jamais dizendo a eles coisa alguma e nunca sorrindo, nenhum de nós sorria porque sabíamos que a qualquer momento poderíamos ser mandados para a morte”. Após alguns meses, foi despachada para outra localidade junto com sua família. Durante a transferência, um grupo de soldados amarrou-a a uma árvore e a obrigou a assistir enquanto sua filha era violentada pelo bando e depois assassinada. Alguns dias depois, Phaly Nuon foi levada com alguns outros trabalhadores para um campo fora da cidade. Amarraram suas mãos atrás das costas e ataram suas pernas unidas. Depois forçaram-na a se ajoelhar a amarraram-na a uma vara de bambu, fazendo com que se inclinasse para a frente num campo lamacento de modo que suas pernas tivessem que ficar tensas ou ela perderia o equilíbrio. A idéia era que, quando finalmente caísse de exaustão, ela afundaria na lama e, incapaz de mover-se, se afogaria. Seu filho de três anos gritava e chorava a seu lado. A criança foi amarrada a ela para se afogar na lama quando a mãe caísse: Phaly Nuon mataria seu próprio filho.
Ela então contou uma mentira. Disse que, antes da guerra, trabalhara para um dos membros da cúpula do Khmer Vermelho, que fora sua amante e que ele ficaria zangado se ela fosse morta. Poucas pessoas escaparam dos campos de morte, mas um capitão que talvez tenha acreditado na história de Phaly Nuon posteriormente disse que não podia suportar o som de seus filhos gritando e que as balas que os matariam rapidamente eram caras demais para serem desperdiçadas. Então, ele desarmou Phaly Nuon e lhe disse para correr. Com o bebê num dos braços e o filho de três anos no outro, ela disparou adentrando profundamente a selva do nordeste cambojano. Ficou na selva por três anos, quatro meses e 18 dias. Jamais dormia duas vezes no mesmo lugar. Enquanto perambulava, colhia folhas e desenterrava raízes para alimentar a si e sua família, mas a comida era difícil de encontrar e outros ceifadores, mais fortes que ela, haviam deixado a terra nua. Gravemente desnutrida, começou a definhar. O leite de seus seios logo secou, e o bebê que ela não pode alimentar morreu em seus braços. Ela e o filho remanescente se agarraram à vida com todas as suas forças e atravessaram o período de guerra.
A esta altura da narrativa de Phaly Nuon, nós dois já tínhamos trocado nossos lugares pelo chão, e ela chorava balançando-se para frente e para trás, enquanto eu me sentava com os joelhos sob o queixo e uma das mãos no ombro dela, um abraço que seu estado de transe permitia. Ela continuou quase sussurrando. Depois de a guerra acabar, ela encontrou seu marido que, gravemente espancado na cabeça e no pescoço, sofreu uma perda significativa de sua capacidade mental. Ela, o marido e o filho foram colocados num campo de fronteira próximo à Tailândia, onde milhares de pessoas viviam em abrigos temporários feitos de lona. Sofreram abusos físicos e sexuais por alguns dos funcionários do campo, e foram ajudados por outros. Phaly Nuon era uma das únicas pessoas instruídas ali e, conhecendo línguas, podia falar com os funcionários encarregados da assistência. Tornou-se uma parte importante da vida e do campo, sendo dada a ela e sua família uma cabana de madeira que era considerada luxuosa, em comparação com o resto. “Ajudei em certas tarefas de assistência naquela época”, lembra. “O tempo todo em que andei por ali, vi mulheres em péssimo estado, muitas delas paralisadas, não se moviam, não falavam, não se alimentavam e não davam a mínima para os próprios filhos. Vi que embora tivessem sobrevivido à guerra, iam agora morrer de depressão, de um estresse pós-traumático totalmente incapacitante.” Phaly Nuon fez um pedido especial aos funcionários encarregados da assistência e criou em sua cabana uma espécie de centro de psicoterapia.
Ela usava a medicina tradicional khmer (feita com porções variáveis de mais de 100 ervas e folhas) como primeiro passo. Se aquilo não funcionava suficientemente bem, ela usava medicina ocidental quando disponível, como às vezes ocorria. Eu escondia estoque de quaisquer antidepressivos que os funcionários da assistência pudessem trazer”, disse, e “tentava ter o suficiente para os casos piores.” Ela levava as pacientes para meditar, mantendo em sua casa um altar budista enfeitado com flores. Conquistava a confiança das mulheres para que se abrissem. Primeiro, levava três horas para que cada mulher lhe contasse sua história. Depois, fazia visitas de acompanhamento regulares para obter mais detalhes, até que finalmente obtivesse a total confiança das mulheres deprimidas. “Eu precisava conhecer a história que essas mulheres tinham para contar”, explicou, “porque queria entender bem especificamente o que cada uma tinha que superar.”
Uma vez que a iniciação fosse concluída, Phaly Nuon prosseguia num sistema formulado por ela. “Eu o aplico em três etapas”, disse. “Primeiro, ensino-as a esquecer. Temos exercícios que fazemos a cada dia, para que a cada dia elas possam esquecer um pouco mais as coisas que jamais esquecerão inteiramente. Durante esse tempo, tento distraí-las com música, bordado, tecelagem ou com concertos, com uma hora ocasional de televisão, com qualquer coisa que pareça funcionar, com qualquer coisa que elas me digam que gostam. A depressão está sob a pele, toda a superfície do corpo tem a depressão logo abaixo de si,e não podemos tirá-la fora; mas podemos sim tentar esquecer a depressão mesmo que esteja bem ali.
“Quando suas mentes estão limpas do que esqueceram, quando aprendem bem o esquecimento, eu as ensino a trabalhar. Seja qual for o tipo de trabalho que querem fazer, eu descubro um modo de ensiná-lo a elas. Algumas treinam apenas limpar casas ou cuidar de crianças. Outras aprendem habilidades que possam usar com os órfãos, e algumas voltam-se para uma verdadeira profissão. Elas precisam aprender a fazer tais coisas e se orgulhar delas.
“E então, quando finalmente já dominaram o trabalho, eu as ensino a amar. Construí uma espécie de anexo e fiz ali um banho a vapor. Agora tenho um similar, só que mais bem construído, em Phnom Penh. Então levo-as para lá para que todas fiquem limpas, e as ensino a fazer as mãos e os pés umas das outras, e como cuidar das unhas, porque elas se sentem bonitas com isso, e querem muito se sentir bonitas. Isso também as coloca em contato com os corpos de outras pessoas e faz com que se distraiam de seus corpos para cuidar de outros. Isso as resgata do isolamento físico, que é uma aflição habitual entre elas, e conduz à quebra do isolamento emocional. Enquanto estão juntas lavando-se e pintando unhas, começam a conversar, pouco a pouco aprendem a confiar umas nas outras e, no final de tudo, aprenderam a fazer amigas, de modo que jamais terão que ser tão solitárias e tão sós novamente. Suas histórias – que não contaram para ninguém a não ser para mim -, elas começam a contar umas para as outras.”
Phaly Nuon mostrou-me depois os instrumentos de sua profissão de psicóloga: os pequenos frascos de esmalte colorido, a sala de vapor, as varetas para empurrar as cutículas, as lixas de unha, as toalhas. A limpeza e o cuidado com elas e com os outros é uma das formas primordiais de socialização entre os primatas, e essa volta aos cuidados básicos como uma força socializante entre os humanos me pareceu curiosamente orgânica. Eu disse a ela que acha difícil ensinar a nós mesmos e aos outros a esquecer, a trabalhar e a amar e ser amado, mas ela disse que não era tão complicado se você próprio puder fazer essas três coisas. Contou-me como as mulheres que ela tem tratado formaram uma comunidade e como se dão bem com os órfãos de quem tomam conta.
“Há um último passo”, disse-me ela depois de uma longa pausa. “No final, eu lhes ensino o mais importante: que essas três habilidades – esquecer, trabalhar e amar – não são isoladas e sim parte de um enorme todo. É a prática dessas três coisas juntas, cada qual como parte das outras, que faz a diferença. É o mais difícil de transmitir”, ela ri, “mas todas passam a entender isso e, quando o fazem, estão prontas para entrar de novo no mundo.” (p.34-36)

SOLOMON, Andrew. O Demônio do Meio-Dia. Uma anatomia da depressão. Tradução de Myriam Campello. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Escritora putinha:

Lélia Almeida.

Escrevi um artigo sem a menor importância sobre sexo virtual depois de ter passado o ano inteiro escrevendo coisas muito mais sérias e relevantes sobre as mulheres e o momento político do país. O momento histórico em que tivemos duas mulheres disputando a presidência da república, por um lado, e milhões de mulheres brasileiras, decidindo o seu voto, por outro. Nenhum dos textos que escrevi sobre este assunto fez tanto sucesso quanto o que teci meia dúzia de bobagens sobre sexo virtual.
Recebi num curto espaço de tempo mais de 350 e-mails e quatro convites de editoras para a publicação do meu livro que ainda não está pronto, o que fala da personagem que navega pelos submundos da rede.
Adelaide Carraro publicou em 1978 um livro chamado “Escritora Maldita?” onde publica as cartas que ela recebia dos seus leitores. Padres, marinheiros, donas-de-casa, homossexuais, secretárias, prostitutas, lésbicas e todo tipo de leitor escreveram cartas que quase sempre diziam que a escritora salvou-lhes a vida ao trazer a público determinados temas tabus.
Fiquei tentada a fazer uma publicação parecida, pois todos os candidatos a escritores de literatura erótica do país me enviaram seus originais, todos os tarados se manifestaram e outros que não se inserem em nenhuma destas categorias, mais homens do que mulheres, também enviaram sugestões e comentários quase sempre muito interessantes. Gostei, particularmente, da carta de um pastor que quis me converter, argumentando que uma mulher que escreve sobre sexo está tomada pelo demônio; e de outro senhor que depois de muito considerar a qualidade do meu texto, parabenizar a minha ousadia e atrevimento ao tratar do tema, termina, de maneira muito sincera por dizer que ele é, na verdade, igual a todos os que vagueiam sem rumo pelos confins da rede e o que ele queria, em suma, era também, comer o meu rabinho (cito).
Mulheres que gostam de sexo ou de falar e escrever sobre o tema são seres mal vistos na nossa cultura. Ainda são vistas como pessoas pouco sérias não importando se escrevem bem ou se pensam de maneira inteligente ou original sobre o tema. Sexo, definitivamente, não é um tema adequado para as mulheres. Alguns blogs que reproduziram o texto colocaram fotos sugestivas de um sutiã ou calcinhas daquelas de sex-shop em cima de um teclado e coisas do tipo.
Telefonei para os editores que escreveram pedindo que eu enviasse imediatamente os originais de Anêmona Bristol para que fosse emitido um parecer e uma proposta editorial explicando que o texto encontra-se em momento de finalização, mas que tenho outros quatro textos prontos e encalhados e de todos recebi a mesma resposta, não estamos interessados, queremos este que trata sobre sexo virtual.
Talvez esta tenha sido a minha grande e última oportunidade desperdiçada de me tornar uma escritora famosa, publicada, de me tornar uma celebridade, de fazer um calendário posando nua com trechos do romance e, finalmente, fazer deslanchar uma carreira de escritora até agora anônima, difícil, trabalhosa, como a da maioria das pessoas que quer escrever neste país.
Gosto de falar sobre sexo porque acho divertido, acho divertido o vocabulário e as narrativas. E porque acho que a experiência sexual ainda se constitui num território onde podemos exercer a nossa liberdade e a nossa humanidade. Voltamos um pouco a ser crianças quando estamos desnudados na frente do outro, fuçando no corpo do outro, quando abraçamos as nossas imperfeições, quando nos enroscamos, quando podemos ser ridículos e podemos dar ao corpo o que é do corpo. Quase sempre é engraçado desnudar-se diante do outro. E ainda que a cama como outros lugares que não garantem a mesma experiência lúdica possa ser o lugar de grandes enganos, é também o lugar de encontros maravilhosos.
Tive de explicar aos editores que não sou uma escritora de literatura erótica, que acho esta arte por demais sofisticada de trabalhar e que o sexo, na minha vida e na minha escrita, ocupa o mesmo lugar de outras experiências afetivas e que posso escrever sobre todas elas, como de fato faço, sem a supervalorização de nenhuma delas em detrimento de outras.
Ontem assisti Roberto DaMatta no programa Roda Viva sendo entrevistado por várias pessoas. Uma entrevista brilhante que finalizou com o antropólogo falando sobre a experiência dramática de, aos 70 anos, deparar-se com a perda de um filho de 42 anos vítima de um infarto fulminante e da doença de sua companheira amada, que tem Alzheimer. Num tom muito comovido disse que estas experiências ensinaram-lhe duas coisas. Que não temos garantia de nada nesta vida, que nem Deus, nem o dinheiro, nada nos protege dos infortúnios e da morte. E que diante desta evidência ele passou a se perguntar sobre o que é suficiente para uma vida.
Talvez eu tenha perdido a chance de ser uma escritora famosa num percurso meteórico. Talvez eu não queira ser uma escritora putinha porque antevi de maneira muito clara como é fácil e rápida a construção de um estigma, que funciona como um carimbo, uma tatoo: esta aqui vende sexo!
Roberto DaMatta lembrou que diante da inevitabilidade da morte e das experiências dramáticas que nos tocam a cada um, a única coisa que vale a pena é viver uma vida com valores claros, autênticos e que nos expressem verdadeiramente. E que o seu grande refúgio, naqueles momentos, foram os livros. Esta foi a sua medida ao se perguntar sobre o que era suficiente.
Eu não quero ser uma escritora putinha. Escritora putinha não é aquela que escreve sobre sexo, mas pode ser aquela que vende a alma para um público fácil e para editoras preguiçosas que precisam lucrar rapidamente com os temas de sempre, sejam os relativos à violência, sexo, vampiros, anjos e outros bem cotados no mercado.
Eu não quero ser uma escritora putinha. Aliás, tenho achado cada vez mais difícil inclusive tentar ser uma escritora. Que viver cada dia até o fim e não enlouquecer, para mim, já está de bom tamanho.
Este é o meu suficiente.