sábado, 2 de junho de 2012




Leite de rosas, por Lélia Almeida.

Eu tinha onze anos quando minha mãe me deu um frasco de leite de rosas e me disse, use sempre antes de dormir para limpar a pele, agora você é uma mocinha. Uso até hoje e o cheiro do leite de rosas me lembra de verdades essenciais todas as noites, depois de tê-las esquecido durante o dia.
Gosto de um livro da Victoria Sau, uma feminista espanhola da velha guarda, maravilhosa, que se chama El vacío de la maternidade. Ela afirma que a maternidade não existe, no sentido de que não existe enquanto valor social, já que somos mães para os filhos dos homens, na história do patriarcado. Tudo o que enaltece as mulheres, um pretenso amor ou instinto materno, o acolhimento, a capacidade de cuidar, é o mesmo que nos perde já que somos descartadas nas horas das tomada das decisões legítimas. As mães sírias que o digam.
Para Victoria Sau, que retoma o pensamento de Riane Eisler de quem gosto muito, em algum momento da história do mundo as mulheres, que viviam numa relação de valorização, não de poder, ao lado de suas mães, numa linhagem matrilinear, foram sequestradas pelos homens que desta maneira, através do sequestro e do rapto enfraqueceram sua referência mais importante, a mãe, a avó, a filha, as amigas, as outras mulheres. Enfraquecer este vínculo é colocar a perder a irmandade, a cumplicidade e a comunidade de mulheres. E elas passam, então, a ter filhos para os homens. Portanto, diz Sau, a maternidade não existe, se as mulheres, como mães, servem aos homens, vivem para eles e não sabem quem são e o que querem, a maternidade não existe. E as mulheres se contentariam em parir os filhos numa espécie de inconsciência calando a boca com um pênis ou com um filho, ela radicaliza. Na verdade a autora faz alusão ao grande mal que o mito do amor romântico – que direciona a existência feminina para o casamento ou para o amor - e o mito do amor materno – que faz dos filhos a centralidade de suas existências - podem fazer à vida das mulheres, imbecilizando-as a elas e sua prole, num miasma de amor cujo objetivo da vida se situa na rede dos afetos pura e simplesmente e propõe que as mulheres usem esta potencia em outras frentes, que cuidem do mundo, oras, ou que não cuidem, e que cresçam e se desenvolvam de outras maneiras também, para além do que se espera delas.
Adoro estas velhas feministas, radicais, furiosas, que preconizam o que há de mais importante no feminismo, um sentimento de pertinência. De pertencer. À casa da minha mãe, da minha avó, das minhas amigas, das minhas filhas, da minha irmã, a filha da minha mãe. Da mesma maneira que as linhagens e associações masculinas são inquebrantáveis, deveríamos voltar a casa materna, para lembrar do essencial.
Mas o vínculo entre as mães e as filha foi rompido, diz Victoria Sau, e pagamos um preço absurdo por este rompimento. Na história do mundo, só resta a história de Deméter e Perséfone para lembrar que as mães e as filhas estiveram juntas em algum momento. Deméter sabe que perdeu sua Core, mesmo que ela volte ao seu encontro em alguns momentos do ano, Deméter chora em Elêusis a perda da sua menina e os mistérios eleusinos são a celebração da nossa dor, da nossa perda deste vínculo que nos constitui de uma maneira definitiva.
Nos perdemos da casa materna quando não ouvimos a nossa própria voz, quando nos portamos como ventríloquos das vontades alheias, quando não sabemos o que queremos, quando nos submetemos, quando negligenciamos quem somos nas nossas relações, quando deixamos de ser importantes, e quando a voz dos nossos pais, maridos, irmãos, maridos, namorados ou chefes soam mais altas do que as nossas. Então submergimos no silêncio, um silêncio que só pode ser resgatado, agora e sempre, através da reflexão sobre como nos portamos no mundo em relação às outras mulheres.

Quando escrevo sobre as mulheres estou tentando voltar pra casa, quando leio sobre elas, estou procurando o caminho de volta, quando procuro imagens de mulheres e investigo como foram pintadas, desenhadas, fotografadas, estou voltando pra casa. Sem pressa, que agora sei que o caminho é longo. O caminho de volta, de quando a gente se perdeu é como o caminho de uma peregrinação, na travessia vamos lembrando do que esquecemos, vamos ao encontro da nossa alma. No final talvez encontremos um refúgio, um lugar para se estar em paz, com um espelho, uma bacia com leite de rosas, uma toalha de linho cru, e onde possamos enfim lembrar deste outro mundo que esquecemos todos os dias.





Brasília, 02 de junho de 2012.