segunda-feira, 1 de dezembro de 2014


No Natal vai nascer uma menina, por Lélia Almeida.

Numa tardinha quente de fevereiro, minha mãe, grávida de sete meses, subiu os três andares do edifício onde morava, carregando uma melancia. O trabalho de parto começou naquela noite. E ninguém sabia que era um casal de gêmeos. Meu irmão nasceu um menino muito pequeno e quando minha mãe fez força para expulsar a placenta o médico anunciou que era uma menina, menor que ele ainda. Durante muito tempo o meu apelido familiar foi o resto. Meu irmão ganhou peso e pôde ir para casa e eu fiquei ainda um tempo na incubadora do hospital. Fiquei para ganhar peso através de uma sonda de soro e gotas de leite materno pingadas num chumaço de algodão pelas mãos de freiras fervorosas que me batizaram como Lélia Maria, em homenagem à Virgem, para que eu sobrevivesse. Sinto que todas as decisões da minha vida não foram, inteiramente, tomadas por mim. Mas pelo espírito valente daquela menina que se mantinha a sopros e determinação, dia a pós dia, decidindo ficar.
Sempre que vivi provas que me pareceram impossíveis de suportar agradeci a travessia. Mas hoje eu sei que a decisão de suportar ou desistir não me cabia. Aquela menina diminuta já tinha decidido por mim, lá, no início de tudo. E hoje, quando me desespero entro em sintonia com o espírito dela, o corpo enrolado em fios e panos, numa incubadora que talvez lembrasse a precariedade da manjedoura como a daquela história de tanto amor. Ela respira e não desiste. Eu reverencio aquela menina a cada noite escura que meu coração pede trégua. Então eu fico, eu digo, depois de orar, e agradeço a sua força.
Eu fico. E quero a minha jornada por inteiro.
Com tudo o que me cabe.

Amém!