terça-feira, 10 de junho de 2008

Uniforme amarelo e branco:

Lélia Almeida.

Minha sobrinha Sofia tem um ano e três meses e vai numa creche que se chama Cantinho Mágico, o uniforme da creche é uma roupa amarela e branca. Quando vamos buscá-la eu digo que ela é a minha ova, a minha ovinha amarela e branca. Ela é filha da minha irmã caçula, é quase minha neta, por assim dizer. Sofia é a sobrinha mais moça da família. A mais velha se chama Michele, e tem 21 anos, e agora elas têm alguma coisa em comum. A cor do uniforme.
Porque o uniforme das presidiárias da Penitenciária Feminina da Capital, de São Paulo, é amarelo e branco, e soube hoje pela mãe dela que se quisermos mandar alguma roupa, algum abrigo, só pode ser destas cores. Amarelo e branco.
Contei para a minha mãe sobre esta triste ironia. Ela disse, que amor, sem saber o que dizer, como se a outra também estivesse numa espécie de creche onde as meninas têm de ir uniformizadas. O que ela disse não combinava com a sua expressão, que era uma expressão de desespero, mas então pude contar algumas coisas de todas estas que ela não quer ouvir nestes dias de tormenta e tristeza. Que estamos juntando laudos médicos para comprovar os anos de tratamento da Michele, as taxas de lítio, que neste momento estão absurdas, que ela deve estar precisando de medicação, que tudo isso pode ajudar na defesa.
Minha mãe não quer saber, não entende esta doença, e eu a conduzo com paciência até a doença, porque preciso dela, preciso da força dela pra tentar resgatar esta menina. Preciso da minha mãe, da força do espírito dela, preciso da minha irmã, e da minha pequena Sofia também, e não sei por onde ir, nem por onde começar. Mas sei que este é um assunto de meninas, e de mulheres.
Há quinze dias ela foi detida no aeroporto de São Paulo com 1kg de cocaína grudados no corpo, tentando embarcar para a Itália. Palavras novas, que eu conhecia só na teoria, passaram a cobrar realidade na minha vida, se tornaram reais. Repito-as, para me acostumar. Inquérito, boletim de ocorrência, jovem infrator em conflito com a lei, delação premiada, tráfico de drogas, enfim.
E penso na menina que dorme na penitenciária com seu informe amarelo e branco. Nas suas noites frias e cheias de medo, ansiedade e solidão, e no como ela deve pensar nesta família que ela quis tanto que a quisesse, nesta família que nunca a quis.
Preparo uma caixa com as instruções que me chegaram através da mãe dela: roupas só se forem da cor indicada, bolachas que não sejam recheadas, sucos que não sejam de cor vermelha, seus cigarros favoritos, carlton cream, mas os que valem ouro dentro da penitenciária são os hollywood, que podem ser trocados por tudo, inclusive telefonemas de celulares anônimos, sabão para lavar roupa.
Preparo a caixa, Michele, uma caixa com cigarros, absorventes, pensei, sempre podem ser úteis, desodorante, sabão para roupa, não consigo pensar nem escolher, eu não conheço você, não sei do que você gosta, nem do que você precisa.
Eu a conheci quando você tinha poucos meses de idade, e quando você ainda era filha do meu irmão. Porque depois você deixou de ser filha dele, e não sei ainda de quem foi esta decisão. E nem como isso foi possível. Meu pai disse, essa menina não é minha neta. Meu irmão disse, esta menina não é minha filha.
Desculpa, Michele, se não sei por onde começar, nem por onde ir, mas olho pra caixa de papelão com estas parcas iguarias, e sei que, dentro dela, você voltou para a minha vida.
Deus é mãe:

Lélia Almeida.


Outro dia acordei com um humor do cão. Rosnava pela casa e nada me fazia melhorar. Há algumas pessoas que convivem comigo há muito tempo e que ainda não sabem desta evidência tão simples: sempre que fico furiosa deste jeito é porque não estou conseguindo ficar triste. Então a fúria fica maior do que eu, caio num pranto sem fim, vou até o fundo daquele horror e choro como uma bezerra desmamada até ficar triste e me acalmar.
Sonhei que dizia para uma terapeuta, meu filho fez dezoito anos e quer ir embora de casa e eu vou morrer se ele fizer isso comigo! Simples o sonho, mais simples ainda o sentimento. O deste segundo parto de quando temos de expulsá-los das nossas vidas, regidas por rotinas em que eles e seus horários são soberanos, e que parece que vão deixar de ter sentido quando eles não estiverem mais. Meu filho quer viajar, morar longe, morar sozinho, fazer exatamente tudo o que fiz na idade dele. E maldigo todas as vezes que eu quis estar sozinha, quando estava cansada e ele me demandava o impossível, todas as vezes que ele atrapalhou os meus namoros e os meus planos que não cabiam mais na nossa vida de mãe e filho. E penso que os melhores anos da minha vida foram estes, vendo este menino crescer, e quando penso que ele não vai estar na hora do jantar, nos domingos na tardinha, choro mais ainda.
Choro tanto que o caseiro que cuida do sítio onde moro, um cabloco que é um pedaço de mau caminho, fala mansa, olho verde, chapéu preto e louco de exibido, chega na janela e diz, mas isso é jeito de chorar dona Lélia, que eu não posso ver uma mulher chorando esse tanto assim, sô!! eu disse pra ele que ia morrer se o meu filho fosse embora de casa, ele riu e me olhou como se eu fosse uma menina velha, ah é isso, morre não, além do mais, sozinha é que a senhora não vai ficar, que a madama ainda rende um bom caldo, viu?!
Dei uma fungada, arrumei o cabelo desgrenhado e botei a água prum café.
- O senhor acha mesmo? eu perguntei.
Que Deus nunca abandona a gente, viu, que sempre tem um anjo da guarda por perto, olhos verdes, fala mansa, mãos firmes e cheiro forte de tabaco. Um anjo da guarda lembrando que não tem chuva que pra sempre dure e nem tristeza que não acabe.
Deus é mãe. Parece com o meu caseiro de olho verde vezenquando.
Mas é mãe.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Atraso

Era uma vez um país onde muitos acocaram na boquinha da garrafa, adoraram a Eguinha Pocotó e dançaram o créu com a Mulher Melancia. E na semana em que este país aprovou a pesquisa com as células-tronco e deu um passo definitivo à civilidade, nesta mesma semana e neste mesmo país, Carlão e Bernardinho se casaram, mas não puderam beijar na boca! O beijo foi censurado!
Atraso e hipocrisia no país mais galinha do mundo! Ou devo dizer, no país mais careta e moralista do mundo?
Sábado à noite as comportadas famílias brasileiras puderam assistir ao último capítulo da novela Duas Caras de Aguinaldo Silva. Um casamento coletivo foi realizado e, como é de praxe, todo mundo casou e foi feliz para sempre.
Durante os meses de novela a discussão sobre o politicamente correto e sobre algumas políticas governamentais estiveram na ordem do dia. Bem ou mal, falou-se sobre quotas na universidade, sobre inclusão, sobre racismo e sobre paternidade homoerótica (juro que não fui eu que inventei este termo). Dondocas descobriram que a vida com o povão na favela podia ser uma farra e alguns bandidos se reabilitaram, como foi o caso do inescrupuloso Carlão, que explorou o pobre Bernardinho à farta.
No país que cria uma ficção, em plena novela das oito, onde uma criança pode, legalmente, ter dois pais e uma mãe, e onde um dos pais pode casar com outro homem, acontece o inusitado: casar pode, mas não pode dar beijo na boca!
Assim caminha a humanidade e assim caminha a sociedade global brasileira: um passo a frente, dez para trás. Atraso, minha gente, o nome disso é atraso. Talvez quando tivermos os resultados das primeiras pesquisas com as células-tronco, dentro de alguns anos, Carlão e Bernardinho, quem sabe, depois de assinar a união estável na frente de um juiz, poderão pegar na mão e dar um virginal beijo no rosto. Espantoso!
Porque na vida real a coisa é outra. Na vida real, a coisa é gay. O mundo está gay. As relações são gays, a estética é gay, a moda é gay, e o fashion é ser gay. O cenário obrigatório é queer eye for the straight gay. Confesso que estou exausta com a coisa gay. Estou exaurida com a moda gay. Estou de saco cheio da caricatura. Estou cheia da histeria da ditadura gay para quem tudo é homofóbico, e estou farta da assepsia do politicamente correto e da punheta virtual também. E do feminismo que só discute, na academia e nos movimentos sociais, relações parentais homoeróticas, técnicas reprodutivas para casais homossexuais, quando a discussão sobre gênero, na atualidade, tem um único e último objetivo que é a discussão sobre a coisa gay.
Eu mesma, depois deste desabafo, serei, muito provavelmente, espinafrada por estas poucas linhas, denunciada como preconceituosa e homofóbica. Mas eu realmente estou de saco cheio destes tempos muito sem graça em que estamos vivendo.
Particularmente, tenho saudades da sacanagem e do deboche, sinto falta do tempo em que os homens gostavam de foder com as mulheres e as mulheres se derretiam para dar a bichana. Sinto falta dos tempos em que homens e mulheres podiam se esfregar e assediar e amassar sem que isso fosse um sintoma, uma doença, um desvio, uma ameaça, tenho saudades dos tempos em que era considerado relativamente saudável, - para dizê-lo em bom português, e para que não esqueçamos os nomes das coisas - homens e mulheres gostarem de namorar, transar, trepar ou foder. Estou quase saudosa de pérolas pré-históricas como a coçada no saco, a boa e velha pegada, um peito cabeludo e um mundo de homens sem brincos.
Estou cansada com o exagero da coisa gay, mesmo sabendo que o exagero é necessário para que algumas demandas venham a público. Assim como foi absolutamente necessário que as feministas queimassem sutiãs, há muitos anos atrás, e assim como foram necessários gestos definitivos e exagerados para que reivindicações e novas condutas se estabelecessem.
E mesmo cansada da moda e da patrulha gay que assola a contemporaneidade, digo que o que vi sábado à noite me fez ter medo de um retrocesso à obscuridade da noite dos tempos. Foi patético, Bernardinho e Carlão ali, lado a lado, dando um passo sério e definitivo, em direção a formas afetivas mais livres e menos preconceituosas. Mas sem beijo na boca! Com beijo na boca censurado!
Atraso, o nome disso é atraso.


Lélia Almeida.