quinta-feira, 23 de junho de 2011

Oração da mulher perdida:

Ai, Senhor, eu peço, nesta noite fria e escura, pela irreverência do meu espírito, pelo fogo das minhas convicções, pelas minhas esperanças, pela compreensão que me cabe, pela minha consciência e pela minha alegria, que sempre me livra da caretice e da estupidez. Eu peço por mim, Senhor, e por esta doida que não arrefece dentro do meu peito, e que acorda pela manhã com uma única certeza. Eu quero mais. Conserva-me digna, Senhor, de mim e de Ti, em todos os meus descaminhos. Amém.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Nós, as vadias:

Lélia Almeida.

Vou começar este texto avalizando integralmente o editorial do Sul21 que diz “Mais uma vez as aspirações populares, as contestações públicas e a política de modo amplo se renovam e mais uma vez os políticos, os partidos e muitos dos que se apregoam “de esquerda” (mesmo que se digam atualizados) demoram a perceber as mudanças em curso, seu significado e sua importância. É preciso que eles se esforcem para estar sintonizados com seu tempo e para que não sejam atropelados pelos acontecimentos.”
Estive na Marcha das Vadias aqui em Brasília no sábado, 18 de junho. Cheguei cedo no Conjunto Nacional e fiquei vendo as tribos chegarem para a marcha, tribos, gentes de todas as idades, crenças, credos, roupas, homens, mulheres, e sentamos todos na calçada para escrever as palavras de ordem da marcha, todas elas contra o machismo: “Vem pra luta vem, contra o machismo, vem”; “A nossa luta é todo o dia, mulher não é mercadoria”; “Mexeu com uma, mexeu com todas!”; “Machismo mata!”; “Estupro não é piada!”; “Somos todas camareiras”; “Não é não!”; “O corpo é da mulher, ela dá pra quem quiser”; “Decote não é crime, estupro é”.
Inscrições e símbolos pintados no corpo, no rosto, homens e mulheres vestidas de vadias, de freiras, com burcas, maçãs na boca, todos envoltos em símbolos e dizeres que tinham um mesmo significado, o protesto contra a violência sexual contra as mulheres.
Mais de 800 pessoas numa manhã esplendorosa em Brasília, numa marcha pacífica e cheia de vigor saindo do Conjunto Nacional, passando pela rodoviária e indo para a Torre da TV. Fui para ver as gentes, fui para ouvir, sentir, fazer parte da cidade, da muvuca das marchas, da farra. E fiz uma verdadeira volta ao túnel do tempo, lembrando da alegria e da fé daqueles tempos que ocupávamos as ruas para brigar pela democracia e por tantas liberdades imprescindíveis.
Durante a marcha a mistura das pessoas da cidade, que andavam pelas ruas e perguntavam do que se tratava. Um gari me disse, mas doutora, a senhora não acha estranho defender mulé vadia? Expliquei pra ele que o propósito da marcha era denunciar a violência contra as mulheres e contra a máxima de que são as proprias mulheres que provocam situações de violência ao se vestirem desta ou daquela maneira, sendo assim, duplamente vitimizadas. Inútil aprofundar muito a discussão ali no calor dos gritos e das músicas, ele disse, é, pode ser e ficou coçando a orelha. Uma senhora que carregava uma menina pela mão me perguntou se mulher decente podia participar, eu perguntei a ela se ela estava vendo alguma mulher ali que não era decente, ela sorriu cúmplice e disse, meu marido me mata se me encontra aqui, mas eu não vou perder isso por nada deste mundo e nem ela, disse apontando pra filha, e dei o meu apito pras duas.
Sempre que as mulheres dão as mãos e saem às ruas, o mundo muda, não duvidem disso jamais, revisitem a história do mundo, mesmo que pareça que caminhamos em círculos sem fim, já que as repetições são insanas, e os retrocessos absurdos. Sempre que as mulheres saem às ruas para brigar contra as injustiças alguma coisa acontece, ainda que as mudanças tardem e a gente sempre tenha que relembrar, refazer, retornar aos motivos essenciais, primeiros, e ajudar as mais jovens a lembrar o quanto é importante não esquecer. Êita movimento de mulheres este, idas e vindas, avanços e tantos atrasos. Nunca foram criadas tantas políticas para as mulheres como nestes tempos e nunca se viu tanto retrocesso, números alarmantes de toda sorte de violência, a discussão sobre o aborto negligenciada, rifada, como tantas outras que ainda nos concernem sim, e que fazem parte das nossas vidas e das vidas das nossas filhas.
Não vi nenhuma senadora, nenhuma deputada, nenhuma ministra na marcha em Brasília, vi as gentes comuns, as mulheres das ruas, donas-de-casa, estudantes, prostitutas, as que vivem a dureza da cidade e da vida real. E entendi que quando as políticas se institucionalizam elas perdem o fogo do espírito. Este mesmo fogo que a gente só recupera na ciranda das marchas, no calor das mãos dadas, ao som das palavras de ordem que traduzem atos de fé e que reverberam para além dos votos e das alianças vãs.
Gostei de voltar pra casa repetindo “A-vio-lên-cia-con-tra-a-mu-lher-não-é-o-mun-do-que-a-gen-te-quer!”, suada, a cara pintada, as mãos sujas de tinta, os pés cansados, o cartaz amassado embaixo do braço, certa de que sempre termino por encontrar a minha turma. Estas gentes esquisitas que sabem e sentem que o mundo está pulsando, que os vulcões adormecidos estão despertando, que as placas subterrâneas estão se deslocando, que impérios antiquíssimos estão ruindo, e que acreditam que não só um outro mundo é possível, mas que há um mundo que, definitivamente, está deixando de existir.