quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

A Grande Mestra:


Lélia Almeida.

A tristeza foi a minha Grande Mestra de 2010. Vou chamá-la assim, Grande Mestra, com a reverência das maiúsculas. A tristeza não é a mesma coisa que a depressão, também é diferente da angústia, da ansiedade, da agonia. A tristeza é quieta, e sem o histrionismo da depressão a tristeza é expressiva, tão delicada a tristeza, tão mansa.
Esta madrugada, depois de pelejar todos os dias do ano com a tristeza, nesta madrugada quase desisti da luta. Não é uma luta contra ela, propriamente dita, mas é o como a gente sobrevive todos os dias com ela ali, onipresente. Levantei de madrugada para tomar água. Sentei na sala e disse a Deus, a Virgem Maria, a Deusa Tara, eu não agüento mais, disse assim, com uma intimidade doméstica, de quem se atreve, como último recurso, discutir a relação com a transcendência. Pedi por compreensão, só isso, compreensão disto que me é impossível compreender, e chorei como uma menina, de cansaço e exaustão.
Então, mais íntima ainda, atrevida quase, pedi colo pra Deus, pedi água, eu quero um colo, eu disse, baixinho, eu aprendo tudo o que esta Grande Mestra tiver que me ensinar, mas agora Senhor, neste momento, eu preciso de colo, eu quero colo, senão eu vou morrer.
O amanhecer em Brasília é uma experiência. Não é apenas um amanhecer, é uma experiência. Fiquei olhando pela janela aquela bola de fogo que surgia no horizonte, sentindo as lágrimas que escorriam sem parar e a Grande Mestra ali, na sua presença inequívoca.
Os esotéricos dizem que a hora mais escura da noite é antes do amanhecer. Que é a hora da noite escura da alma de San Juan de la Cruz.
Imediatamente uma grande paz tomou conta de mim, a luz do dia nascendo é da cor da minha tristeza, iluminada, suavemente iluminada. Uma paz tão grande, que mesmo sem conseguir compreender o que tanto me mata em vida todos os dias senti que de alguma maneira, estava tudo certo. E que talvez seja mais sábio pedir por aceitação do que por compreensão. Negociei com a transcendência, pedi a Tara, a Virgem e ao Senhor, que eu posso estar com ela, com a Grande Mestra, mas que não me tirem nem a minha alegria e nem a minha fúria, que eu não sou nada sem elas.
Uma paz imensa eu fui sentindo, tão grande que tive forças pra fazer um café, regar as plantas, dar comida pros gatos, arrumar a casa, deixar preparado metade do almoço e voltar pra cama só mais um pouquinho, vitoriosa, brava e vitoriosa, sem ter desistido.
A tristeza, que foi a minha Grande Mestra de 2010 me ensinou mais uma coisa hoje, já que os ensinamentos têm sido diários. Que a gente nunca está só. Que com Deus é assim, a gente pede colo e Ele dá. Colo quentinho, disfarçado de uma paz verdadeira e uma grande disposição para limpar a casa e arrumar a vida.
Agora já sei, era eu que não estava sabendo pedir. O que eu quero é simples, eu quero colo, colo de Deus.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Receita contra traições, com sangue escorrendo entre os dentes
e mortes imprescindíveis:

Lélia Almeida.

Sofri da mesma traição duas vezes. A primeira quando o meu filho nasceu e minha vida virou um inferno de dúvidas, preocupações e grandes sustos. Um inferno cheio de gratificações, diga-se, mas senti muito que ninguém tivesse me avisado que uma mudança tão avassaladora ia me transformar em menos de um turno em outra pessoa. Minha mãe, pragmática, dizia: engole o choro e toca a viver.
A segunda traição, de mesma natureza, foi quando o mesmo filho entrou nesta zona pantanosa que começa aos dezoito anos e que pode terminar a qualquer momento, inclusive quando o infante tiver 40 anos. É o momento do segundo parto.
E se ele for um rapaz então, como o meu, nós mães, nos tornamos os seres mais odiados e detestados do mundo e todo o idílio que vivemos durante duas décadas com eles, respondendo pavlovianamente a todas as suas demandas, acaba, de uma noite para uma manhã. Ele nos odeia, mas não vai embora. Fica ali para nos lembrar dia e noite que nos odeia e a vida se transforma num inferno.
Estamos agora em plena menopausa, os humores flutuantes como os dele. A vida se transforma num inferno sem as tantas gratificações anteriores. Você, mãe, se transforma na figura de autoridade mimetizada num saco de areia de pancadas, num momento em que muitas outras coisas fantásticas em sua vida estão acontecendo: amadurecimento pessoal, sucesso profissional, novas amizades, casamentos falidos que terminam, novas oportunidades, etc.
Não vou trair ninguém: é um inferno. Mas não desistam dos rapazes. Façam a única coisa que é possível fazer por eles neste momento. Não precisa ser com um afiado facão de cozinha ou de açougue. Sempre há soluções práticas ensinadas pela ancestralidade. Lembrem da mulher macaca que vive dentro de nós. Ou de outras figuras exemplares.
Exausta com as demandas da situação, numa noite insone e no meio de uma reza furiosa, o espírito de uma índia charrua, num sonho iniciático, se abateu sobre mim e me lembrou que sou uma mulher dos pampas, gaúcha fronteiriça onde bravíssimas mulheres guerrearam e mataram para sobreviver na imensidão dos campos. As índias charruas, diferente de outras mulheres, quando violentadas pelos homens brancos, rasgavam com uma faca o próprio útero para que seus filhos não nascessem cativos. Ou lembrem da bravura das vivandeiras, que seguiam os homens nas guerras, e jamais se detinham por conta de marmanjos mimados que se negavam a crescer.
Tomem, minhas amigas, do espírito destas mulheres, deixem a alma selvagem delas recair sobre a de vocês, sintam que elas estão próximas e façam, vocês mesmas o que elas fariam sem dó nem piedade: cortem este cordão umbilical consistente e sem fim, que vai engrossando enquanto eles crescem, cortem com os próprios dentes, e saiam vida afora, urrando um grito liberador, dentes afiados e ensangüentados e vão viver as suas próprias vidas.
Porque não há, senhoras, nada mais que possamos, efetivamente, fazer por eles. Agora eles vão ter de crescer.
E nós temos de voltar a dançar e a cuidar em outro ritmo da vida que nos resta viver. Boa sorte para todas nós!