segunda-feira, 16 de novembro de 2015



Cuidado com a cueca que você usa, por Lélia Almeida.

A consulente me liga às 22hs chorando e me diz, “você tem que me atender agora, estou desesperada e preciso ver as cartas.” Sinto pela sua voz que a coisa é séria e digo que ela pode vir. Ela senta ofegante na frente das cartas enquanto sirvo um chá de erva-doce e ela mais branca que um lírio, tenta se acalmar.
“Tu não sabe o que eu fiz ontem”, ela começa.
JR, que é como ela chama o marido foi buscá-la no trabalho e deixou- em casa com um beijinho na bochecha, dizendo, “Tchau, minha linda”, às 18hs dizendo que ia pro jogo do Inter, que era às 22hs. É claro que ela só se deu conta sobre a disparidade dos horários depois que o carro já tinha dobrado a esquina. Mas aproveitou a noite para lavar e fazer uma escova nos cabelos e descansar um pouco. Às 23:53 chegou a mensagem pelo watts: “Oi. Não vou voltar. Amanhã conversamos. Boa-noite.”
Ela pegou o pau que ele guardava atrás da porta da casa para se proteger de possíveis assaltantes e saiu rua afora sabendo onde encontrá-lo. O carro dele estava na frente da casa da vadia. Não sabe de onde veio tamanha força física, diz, e começou estraçalhando o vidro detrás do carro, depois o do frente, o das portas e quando estava arremetendo contra o capô a porta da casa abriu e saiu o tal JR de cuecas e a vadia de body oncinha e sandálias de plataforma douradas. A vadia (que não fiquei sabendo o nome até agora) gritava que ia chamar a polícia enquanto JR tentava tirar o pauzão da mão dela. A polícia veio imediatamente, colocou os três na viatura e rumou para a delegacia na frente de uma vizinhança encantada com o furdunço.
A delegada era uma mulher imensa com uma cara de poucos amigos e que naquele momento devorava um xis com uma coca 2 litros. E de boca cheia perguntou: “- Que putaria é esta aqui no meu estabelecimento?” Eu disse, ela contou: “-É simples, doutora, eu quebrei o carro dele porque ele é meu marido e estava na casa desta vadia”. A delegada disse, “- Sai todo mundo daqui que hoje to com os corno virado, saiam já daqui!” – “Mas a senhora não vai prender esta louca?” perguntou a oncinha. A delegada viu então que a cueca do tal do JR era do Inter e perguntou se o elemento era colorado. A consulente disse que sim, e que ele era fanático. Ela ordenou ao policial: “- Tire a cueca do donjuan e mande os dois embora, sem carona viu, a pezito nomás, se fosse gremista eu continuava a conversa, e já pra fora com esta bagacerada que tô começando a ficar com enxaqueca”.
JR, agora transformado em elemento, saiu pelado com as mãos em concha sobre o membro murcho e a consulente foi pra casa aliviada arrastando o pau redentor.
Perguntei o que ela queria saber das cartas, ela disse que agora nada, e tirou da bolsa duas latinhas de cerveja bem geladas explicando que o que precisava mesmo era de uma amiga para comemorar.
Assim estão as pessoas.


domingo, 15 de novembro de 2015


As cidades são os nossos amores, por Lélia Almeida.

Tem muitos lugares que gostaria de viver, ou de voltar a viver. Barcelona, Mendoza, Brasília, Londres e outros mais. O que nos encanta nas cidades são as experiências vividas e as pessoas com quem convivemos nelas. Porto Alegre, neste momento, é a minha cidade de eleição. Onde reencontrei amigos do tempo da faculdade, ex-alunos, primos amados, e que nos devolvem uma memória preciosa que só nós conhecemos como guardiões sagrados da nossa simples existência. Devolvem-nos memórias preciosas e lembramos quem somos e assim estamos salvaguardados. As cidades ficam imantadas de amor por conta da nossa memória afetiva e das histórias que vivemos com quem amamos, convivemos e crescemos. As cidades e os nossos amores se misturam.
Há exatamente um ano fiz uma sessão de autógrafo no Centro Cultural CEEE - Erico Verissimo. Hoje fiz o mesmo caminho para a Rua da Praia, saindo do Mercado e chegando ao Centro Cultural. O “Café A Brasileira” estava fechado, fiquei olhando a fechada do prédio e senti uma paz indizível dentro de mim. Cheguei ao Centro Cultural e estava em Porto Alegre de novo, na Feira do Livro que eu tanto amo, indo dar uma palestra como faço há mais de vinte anos. Nada doía. Éramos eu e a cidade num domingo quente e ensolarado, e nada mais.
No dia 4 de novembro do ano passado, na sessão de autógrafos estavam ele e a minha amigona de toda a vida, a Ana Ana Luiza De Moraes Vieira, que estava hoje no mesmo lugar comigo ouvindo a minha palestra. No ano passado, depois da sessão de autógrafos, eu ia para um sarau literário encontrar com a Karla Melo e com o Samarone Lima. Despedi-me da Ana e desci com ele para tomarmos uma água antes do sarau. Na porta do prédio encontrei com o Taylor Diniz que me disse que estava indo ver o Miguel Sousa Tavares. Não fui ao sarau e não fui à palestra, fui tomar uma água com ele no “A Brasileira”.
As parcas estavam tecendo, quem sabe distraídas ou cansadas, tramando tantas malhas ao mesmo tempo. Mas fui eu quem escolheu. Fui tomar uma água com ele no “A Brasileira”. E nunca me perguntei o que teria sido da minha vida se tivesse ido ver a palestra do português ou se tivesse ido ao sarau.

Eu escolhi. Foi uma escolha minha e nada mais. A vida é assim. E não há outro jeito de vivê-la. Que as experiências tem prazo de validade e nenhum certificado de garantia.

Chame sempre a sua, mãe, por Lélia Almeida.

Fui estudar em Mendoza quando o Pedro, meu filho, tinha sete anos. Ele se alfabetizou lá. Com tantos afazeres entre os estudos de doutorado e cuidar dele e da casa sozinha, não percebi como ele aprendeu o idioma. Um dia o vi na calçada da rua sentado com dois amigos trocando figurinha do álbum de futebol daquela Copa que a França ganhou do Brasil. Eles batiam as figurinhas e diziam: “esta tengo, esta no tengo, tengo, no tengo”, numa velocidade absurda. Putz, eu pensei, o cara ta falando espanhol e eu nem sei quem ensinou pra ele.
Não foi fácil pra ele ficar longe do Brasil, que significava ficar longe da avó que ele tanto amava, do pai, dos tios, dos amigos. Mas o maior medo dele era se perder na cidade e não me achar. Um dia ele me perguntou: “E se eu me “perdo”, vou virar um menino de rua?” Eu disse que não, que ele não ia se perder, e que ele sempre podia pedir pra alguém me procurar e que ele sabia o meu telefone e o nosso endereço e que sempre ia dar certo.
Na nossa última semana em Mendoza, depois de dois anos, ele se perdeu dentro do supermercado. Ouvi o alto falante dizendo, “El señor Pedro Domingues busca por su mamá, está en la puerta de número 3”. Voei até o lugar onde ele estava e o meu pequeno veio correndo com a cara mais feliz do mundo, me abraçou e disse: “- Deu certo, mãe! Deu certo!”
Numa outra ocasião ele desapareceu dois dias em Brasília, bem mais velho já, perdido numa tormenta erótica com uma sirigaita. Não atendia o telefone e não dava notícias. Depois de chorar que nem uma bezerra desmamada e me arrancar os cabelos, respirei fundo, fiz OM por muitos minutos e pensei, se este guri é louco, eu sou mais louca do que ele, e há mais tempo! Não vou me mixar pra ele. Fui pro Facebook e postei um aviso na página dele dizendo que quem soubesse do paradeiro dele avisasse que tinha morrido uma pessoa da família e que ele entrasse em contato. Ele ligou em cinco minutos e eu disse que se ele não voltasse já pra casa que o morto ia ser ele.
Sempre chame a sua mãe. Sempre da certo quando a gente chama pela mãe, ela ta sempre por perto. Mesmo quando elas não estão mais por aqui, quando a gente chama por elas, elas comparecem. Às vezes disfarçadas de amigas e amigos que nos amam e nos conhecem como ninguém, às vezes como desconhecidos que nos dizem a frase certa na hora em que mais precisamos, e que nos salvam, e às vezes é aquela voz interior que fala dentro de nós e que é a voz dela guardada pela convivência de toda uma vida. O importante é a confiança que temos nesta voz e no olhar amoroso que só estes amigos têm de verdade por nós.
Hoje encontrei o meu vizinho, o Augusto Bier, no boteco da esquina comprando um picolé, este Bier que eu adoro e admiro. E ele me disse com aquela voz de acalanto dos amigos que nos embalam: -“Vai passar. Sempre passa!”

E voltei pra casa nutrida e certa que sim, que vai passar.