sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Quando é de verdade, não acaba, apenas muda.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011







Eu, a mulher-macaca, por Lélia Almeida.


Na minha quadra tem um salão de beleza que se chama Paraíso, é todo rosa-pink com poltronas forradas com uma imitação de couro de vaca, branco e preto. A dona do salão se chama Nete, mulherão de 1,80, corpo escultural, punk velha, mulata, toda vestida de couro preto, tatuada, cabeça raspada, calça justa, bundão e decote atrevido.
A primeira vez que entrei no salão era sábado de tardezinha e perguntei se alguém podia tirar a minha sobrancelha e fazer a minha mão. Ela me olhou e disse: “- A esta hora?” A minha expressão de desapontamento amoleceu o coração daquela mulher com cara de poucos amigos que resmungou: “- Tá bem, pode entrar.”
A conversa fluiu fácil, como sempre acontece nos salões, principalmente nos mais populares como este, e  se transformam numa grande terapia de grupo, onde os assuntos quase sempre são os mesmos, e que vão das dificuldades para emagrecer, aos infortúnios amorosos e as preocupações com os filhos. E todas se aconselham, se queixam, expurgando dores que parecem ser coletivas.
Eu estava particularmente arrasada quando entrei no salão, tomada de uma tristeza que me consumia, ansiando por uma pinça na sobrancelha para poder chorar sem pudor e aliviar um pouco a minha gastura. Mas não chorei.
Nete sentou numa escada pequena colocada atrás de mim, abriu as pernas e segurou a minha cabeça entre os seus peitos, pude sentir o seu cheiro doce, as mãos ágeis trabalhando nas minhas sobrancelhas, senti o hálito muito próximo e o que emanva dela era muito perfumado e suave. Contou que sempre sentia um nó na garganta aos sábados na tardinha, que foi  num entardecer como este que a mãe a deixou num orfanato, junto com a irmã, porque não tinha como dar conta das filhas, de tão pobres que eram. Contou baixinho, muito próxima de mim, quase sussurrando. E a minha agonia foi se diluindo em lágrimas que vertiam para dentro enquanto meus olhos mergulhavam na imensidão daquela mulher agora travestida de menina. Era um orfanato em algum lugar perto aqui da Brasília, ela sonhava todas as noites que voltava pra casa pra cuidar da mãe.
Somos duas mulheres-macacas ao entardecer no meio de uma selva esplêndida, íntimas, catamos piolhos uma da outra, nos fazemos carinhos, nos embalamos, nos contamos segredos, choramos, rimos, dividimos as nossas dores e as nossas ânsias. Pude ver sim, ao meu redor, muitas mulheres-macacas, em rituais ancestrais quando as mulheres cuidam das outras mulheres, na hora dos partos, das mortes, das tristezas e nas horas mais felizes também. Carrego esta selva e esta memória dentro de mim, este lugar aonde posso voltar a me embalar no colo desta confraria tão antiga.
Ela conta de quando pôde voltar pra casa, mocinha já e começar a trabalhar e a cuidar da mãe e da irmã, e que agora estão todas juntas, com os filhos criados e que deu tudo certo, graças a Deus, mas que sempre sente esta agonia aos sábados na tardinha.
O som estridente do celular de uma mulher jovem que corta os cabelos nos arrebata da selva. Ela responde monossilábica: “- hum-hum-sim-hum-hum-um beijo” e desliga. Diz pra moça que está cortando o cabelo, “- Rápido aí com este corte, que vou ter que realizar um atendimento ambulatorial, faz tempo que este santo pede missa, hoje vou fazer uma ação entre amigos, dar uma alegriazinha pro rapaz.”
As macacas começam a rir, os pássaros debandam com as gargalhadas e, subitamente, tudo vira festa no entardecer na selva.