sexta-feira, 14 de março de 2008

O que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesmo.

Clarice Lispector.
Se você obedece a todas as regras, acaba perdendo toda a diversão.

Katherine Hepburn.
Escrevo (…) estas coisas por ter a impressão de que em algum lugar, quem sabe no campo da literatura ou das artes, resta-nos um caminho capaz de invalidar as já referidas desvantagens. Eu mesmo quero chamar de volta, pelo menos ao campo literário, esse mundo de sombras que estamos prestes a perder. No santuário da Literatura, eu projetaria um beiral amplo, pintaria as paredes de cores sombrias, enfurnaria nas trevas tudo que se destacasse em demasia e eliminaria enfeites desnecessários. Não é preciso uma rua inteira de casas semelhantes, mas que mal faria se existisse ao menos uma construção com essas características? E agora vamos apagar as luzes elétricas para ver como fica.

Junichiro Tanizaki .
Es que obedecer por obedecer, así, sin pensarlo, eso solo lo hace la gente como usted, capitán.

In: El laberinto del fauno.
Todas as mágoas são suportáveis quando fazemos delas uma história ou contamos uma história a seu respeito.

Isak Dinesen.
Anos depois da guerra, depois dos casamentos, dos filhos, dos divórcios, dos livros, ele foi a Paris com a mulher. Telefonou-lhe. Sou eu. Ela reconheceu a voz. Ele disse: queria apenas ouvir sua voz. Ela disse: sou eu, bom dia. Ele estava intimidado, com medo, como antes. Sua voz começou a tremer de repente. E, com esse tremor, subitamente ela reencontrou o sotaque da China. Ele sabia que ela começara a escrever, soubera pela mãe, com que se encontrou em Saigon. E também sobre o irmãozinho, ficara triste por ela. E depois não soube mais o que dizer. E depois lhe disse. Disse que continuava como antes, que a amava ainda, que jamais poderia deixar de amá-la, que a amaria até a morte.

Marguerite Duras.
A parte desconhecida da minha vida é a minha vida escrita. Morrerei sem conhecer essa parte desconhecida. Como foi escrito isto, porquê, como o escrevi, não sei, não sei como isto começou. Não se pode explicar. Donde vêm certos livros? A página está vazia e, de repente, já há trezentas páginas. Donde vem isto? É preciso deixar andar, quando se escreve, não devemos controlar-nos, é preciso deixar andar, porque não sabemos tudo de nós próprios. Não sabemos o que somos capazes de escrever.
[...] Após o final de cada livro é o fim do mundo inteiro, é sempre assim, de cada vez. E depois tudo recomeça, como a vida. Quando se escreve, não se pode falar em vez de escrever. O que se passa quando se escreve, nunca se pode dizer. Eu consigo ler uma passagem, mas depressa fico assustada. Sou mais escritora do que vivente, que uma pessoa que vive. Naquilo que vivi, sou mais escritora do que alguém que vive. É assim que eu me vejo.

Marguerite Duras, in 'Mundo Exterior '
Grande é a diferença entre o turista e o viajante. O primeiro é uma criatura feliz que parte por este mundo com a sua máquina fotográfica a tiracolo, o guia de bolso, um sucinto vocabulário entre os dentes; seu destino é caminhar pela superfície das coisas como do mundo, com a curiosidade suficiente para passar de um ponto a outro, olhando o que lhe apontam, comprando o que lhe agrada, expedindo muitos postais, tudo com uma agradável fluidez, sem apego nem compromisso. (...) O viajante é criatura menos feliz, de movimentos mais vagarosos, todo enredado em afetos, querendo morar em cada coisa, descer à origem de tudo, amar loucamente cada aspecto do caminho, desde as pedras mais toscas às mais sublimadas almas do passado, do presente e até do futuro – um futuro que ele nem conhecerá.

Cecilia Meireles
Nunca te esqueças de ter desejos, Malte. Não se deve deixar de ter desejos. Penso que eles não se cumprem, mas há desejos que duram muito tempo, toda a vida, de tal modo que não seria possível esperar o seu cumprimento.

Rainer Maria Rilke,
in As anotações de Malte Laurids Brigge, trad. de Maria Teresa Dias Furtado, ed. Relógio D'Água.
"Numa palavra, devo renascer periodicamente, tornar-me mais jovem do que sou. Aos cinquenta anos, Michelet começava a sua vita nuova: nova obra, novo amor. Mais velho do que ele (compreenda-se que o paralelo estabelecido é afectivo), entro eu também numa vita nuova, marcada agora por este novo lugar, esta nova hospitalidade. Tento assim deixar-me levar pela força de toda a vida viva: o esquecimento. Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas surge em seguida uma outra em que se ensina o que se não sabe: a isso se chama procurar. Chega agora, talvez, a idade de uma outra experiência: a de desaprender, de deixar germinar a mudança imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessámos. Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda que ousarei aqui arrebatar, sem complexos, à própria encruzilhada da sua etimologia. Sapientia: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria e o máximo de sabor possível."

Roland Barthes, Lição - Comment vivre ensemble: simulations romanesques de quelques espaces quotidiens 1977 -cit. in
http://abnoxio.blogs.sapo.pt/
Pauline querida:
O mundo não tem mais graça. De grande que era se tornou pequeno, as distâncias todas acessíveis, todo mundo pode falar muitos idiomas e ir a todos os lugares e há McDonald´s, para alívio do Pedro, espalhados pelo mundo. Conheço um monte de pessoas super viajadas, viajar já não é mais viajar, se me entendes. Quando eu era pequena e morava em Sant’Ana do Livramento, de tempos em tempos vinha pela cidade uma japonesa que parecia uma boneca de porcelana oriental. Vendia pérolas do Japão. Não sei se tem pérolas no Japão, mas o que eu sei é que ela vendia pérolas do Japão. Vestia sempre um tubinho preto, usava uma estola de tecido bordada com finíssimo fio de seda oriental e tirava de dentro um estojo de veludo verde, e era ver o contraste da claridade da pérola no fundo escuro. Um sonho, um luxo. Minha mãe comprou uma vez um colar de uma volta só e outra ocasião um par de brincos que eu cobicei uma vida inteira e que agora nem imagino onde estejam. A questão é que aquela mulherzinha minúscula que falava uma mescla de muitos idiomas para se comunicar, vinha do outro lado do mundo, com uma mercadoria valiosíssima, autêntica, a inquietar o coração e o bolso daquelas pacatíssimas mulheres fronteiriças. E era um luxo, se reunia uma mulherada enorme, as amigas, faziam o ritual do chá, cada uma trazia a torta ou o quitute mais delicioso e se extasiavam com as pérolas japonesas, lindas, se enfeitavam como verdadeiras rainhas. Cada vez que a japonesa anunciava a sua chegada eu tinha a sensação, que só posso descrever hoje, de estar na frente de um personagem cinematográfico, uma mulherzinha pequena e redonda, enrolada em peles, coberta de pérolas: !era de cine, chica, te lo cuento, era de cine! E assim era com o chá chinês, uma colcha indiana, um xale russo, põe tudo isso num baú (restaurado, é claro) e vê que bagagem, quanta história. Me lembro agora de muitos vendedores ambulantes na minha vida de compradora, que vendiam o produto como peça exclusiva, em atenção especial e que eu comprava ávida, às vezes muito mais encantada com a história da peça do que com a peça propriamente dita. Mas agora não tem mais graça, o que vem do Japão é vulgar e falso e massivo, vem fácil, é feito aos milhares para nós, os supremos babacas ocidentais devorarmos e depois descartarmos, as pérolas são falsas, o chá chinês é inglês e se compra no supermercado da esquina, o que é chinês não tem requinte e o que vem da Índia não é indiano, que as mulheres indianas jamais usariam aquelas roupas, tecem-nas para nós, para a nossa ilusão de feminilidade, muito diferente da delas. E eu, não encontrei com um amigo em Londres? Não pode ser, me sinto desencantada, traída, viciada num circuito pequeno, aeroportos, McDonald’s, Shoppings, o mundo não tem mais graça. Eu gosto é dos cantos, dos recantos, do reduto mais longínquo, lá onde não é chique ir, estar, aparecer, como se fosse possível escrever um guia turístico para os sonhadores, um guia com a casa dos escritores, por exemplo, nada de catedrais romanas e seus caríssimos souvenirs, mas a casa em que a Virginia Woolf morreu em Londres, a do Fernando Pessoa. Ontem descobri aqui em Mendoza uma ruazinha sem asfalto e com poucas casas, muito da sem graça, se chamava Calle Alfonsina Storni. Me comovi, naquele fim de mundo, ela a Alfonsina, a Alfonsina e o mar. Não quero mais ir a Paris, Londres, quero o fim do mundo, o cu do mundo, por assim dizer, e me emocionar com o que é mais comum e corriqueiro nas cidades pequenas do mundo, ônibus velhos, como são os argentinos, senhoras gordas e suadas que carregam os filhos muito limpos e domingueiros nas ancas, namorados apaixonados que só se vêem nos sábados à tarde, gente vagabunda e preguiçosa que nem eu, passeando pela cidade. Nada demais, só esta sensação de que o mundo se vulgarizou, perdeu a graça. É tão fácil ir a Paris. E não aproveitar, e voltar dizendo que os franceses são fedorentos e que chove em Londres e que os ravioles italianos são bárbaros. Eu, por mim, interiorana da pior espécie, gosto destes recantos pequenos, onde acontecem as histórias mais tórridas, sim senhora, o Manoel sabia, disso sim, e, aqui eles dizem, “pueblo Chico, infierno grande”, lugares pequenos, onde todo mundo se mete na vida de todo mundo. Para depois chegar em Buenos Aires, sentar num café depois da excursão pelas livrarias da calle Corrientes, pedir um café e se sentir a criatura mais cosmopolita do mundo, naquela cidade que faz a gente estar no mundo e se sentir em casa, como se isso fosse possível, e em Buenos Aires, isso é possível. Acho que não fui morar lá só para poder sentir isso cada vez que vou lá. Porque se eu morasse lá, é claro que eu ia começar a reclamar do metrô, do barulho da cidade, etc. E agora tem o Pedro Domingues, que em plena 9 de Julio, de mochila nas costas, me olhou muito surpreso e disse, “legal esta cidade, hein mãe, até parece Nova York!” E assim eu ando, minha adorada amiga, uma alma dilacerada, sempre com saudades de algum lugar, devem ser aqueles dois peixes ligados um ao outro, vai um para cada lado, e viva-se com tanto antagonismo. Um caminho que vem, um caminho que vai, que é que eu vou fazer, sou pisciana nascida e o jeito é se acostumar. Portanto, e como não podia deixar de ser, saudades, e o meu amor.