sexta-feira, 13 de novembro de 2015



Inveja da Maria Bethânia, por Lélia Almeida.

Minha amiga-irmã, Milena Weber, me convidou para ir ao show da Maria Bethânia no Araújo Viana no domingo. A aparição da Bethânia é algo indescritível, sua voz, sua presença de palco, sua força. Eu queria ser a Maria Bethânia, provocar, como artista, este frisson nas pessoas. Ela, como outros atores e cantores, a gente quer levar pra casa, ficar amiga, ser aquela força. Nunca serei como ela. Escritores não aparecem e quando aparecem só provocam a mais imediata reversão de expectativas.
Quando publiquei na internet um texto chamado “Sexo Virtual”, que fez muito sucesso na época, fui convidada para tomar um café com um diplomata em Brasília. A cara de desapontamento do sujeito quando me viu entrar, uma senhora quase formal, atrapalhada entre um celular e um guarda-chuva, foi de dar dó, quase voltei da porta do restaurante. Comemos aipim frito e tomamos uma caipirinha e o encontro foi rápido quando ele viu que não ia render nada mais, além disso. Muitos leitores fantasiam que tudo o que escrevemos foi vivido e como adoro escrever piadas sobre sexo, já que o sexo pra mim é ridículo e divertido, sem nobreza nenhuma, sou assediada constantemente para contar sobre aventuras que jamais vivi ou por sugerir que sou alguém muito porra louca, coisa que também não sou.
Ninguém entende esta gente que escreve, nem nós mesmos entendemos, e talvez esta seja a graça da coisa toda. Também fui convidada para um chá com mulheres que queria saber se eu tinha saído com um japonês que foi personagem da minha crônica chamada “Turbilhão”. O japonês nunca soube da minha existência, minha vida é tão normal como a de qualquer feirante que acorda cedo e pega um ônibus pra ir trabalhar. O que eu tenho é uma imaginação delirante que me ajuda a espremer da vida comum e corrente seu sumo mais delicioso ou ácido, dependendo do dia.
Eu nunca gostei de conhecer os escritores e escritoras que amo, sei que o texto é sempre muito superior ao que somos. Mesmo assim provocamos este estranhamento. Cada vez que me hospedo num hotel e coloco ESCRITORA como profissão o espanto das pessoas é imenso, e sempre há um comentário surpreso e inevitável. Se escrevesse que era PUTA não teria o mesmo efeito, ser escritora é muito mais estranho que ser puta, parece.
Tenho dado muitas palestras para mulheres jovens nestes tempos em que o feminismo está na moda e não é menos diferente o espanto das meninas quando me vem chegar. Depois que conversamos muda um pouquinho, mas só um pouquinho. Mulheres que pensam e escrevem são pessoas incompreendidas, fora do lugar, deslocadas e isto não muda. Nem se eu usasse aquela saia de lamê dourado da Bethânia ia conseguir um efeito contrário. Escritores são pessoas sem glamour, vivem muito sós e só pensam bobagens, são obsessivos, fóbicos, instáveis, sensíveis na hora errada, distraídos e choram de ranho quando encontram aquele livro que procuravam há dez anos, como se tivessem encontrado um tesouro.
E levam anos, muitos anos para que o trabalho apareça e que algumas pessoas se emocionem com o que conseguimos escrever. O maior elogio da minha vida foi de uma mulher de comunidade, muito pobre, no interior do Espírito Santo, que depois de uma palestra, me presenteou com uma imagem da Virgem Maria e disse: - Que Deus sempre lhe abençoe, quando a senhora fala as palavras entram dentro da gente, a senhora tem elegância mental. Nunca entendi exatamente o que ela quis dizer, mas amei demais da conta.

Este foi o meu momento Maria Bethânia, não me queixo, ninguém jamais disse isto pra ela, garanto que não.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015


Assim estão as pessoas, por Lélia Almeida.


A consulente é psicóloga, uma psicóloga famosa da cidade. Conta-me que o marido a deixou pela babá das crianças. Ficou três meses fora de casa. Chora de ranho na minha frente abraçada num rolo de papel higiênico. As cartas são claras, não vejo a separação deles e fico curiosa com o andamento da história. Cartas, aliás, maravilhosas. As taças de amor transbordando e o ás de paus, aquele pauzão, bem no meio do jogo. Depois que ela se acalma consegue contar que eles acabaram do voltar. Que foi numa mãe-de-santo que mandou-a passar mel na passarinha, no sentido horário, durante 9 segundas-feiras. E que colocasse o nome do marido e da “vadia” (palavras dela) rasgados, em 27 pimentões vermelhos e enterrasse no jardim. No meio do procedimento, de cortar os vegetais e rasgar os nomes, ela foi fazer xixi e quando foi se limpar lembrou que não tinha lavado as mãos e que quase morreu de tanta ardência nas partes. Não sabe o que deu mais certo, se foi o mel ou a fúria dos pimentões. Mas que ele voltou, voltou. Ela pergunta ao Tarot se deve continuar com o ritual, fecho as cartas e sugiro que ela vá imediatamente a um ginecologista. Assim estão as pessoas.




A mulher mais triste do mundo, por Lélia Almeida.

Como uma Penélope invertida e errática esqueci de  amarrar-me ao mastro da nau e fechei os olhos para melhor ouvir o canto do meu amor. Cega, esqueci-me de vê-lo, de olhar nos seus olhos. E fiquei ali, dia após dia, ouvindo a música que me perdia de mim. Seus ruídos. Os passos silenciosos pela manhã ao sair do quarto para não me acordar. O chiado da água da chaleira para o mate. O barulho da ração derramada nos potes das cadelas e o barulho dele escovando os dentes. O jeito como ele entrava na cozinha ao meio dia e me abraçava sussurrando, minha linda mulher, minha princesa. O ranger do portão de ferro quando ele abria a garagem na tardinha e o jeito que ele punha a mão pela janela para abrir a porta por dentro. O serrilhar das folhas no pátio nos sábados pela manhã, o motor do cortador de grama, a água da mangueira para lavar o carro no domingo depois do almoço, os gritos de gol quando o Inter ganhava, o estalar dos dedos para chamar as cadelas pra dentro do pátio, o barulho do fogo queimando a papelada da semana e ele guardando o carro na garagem. O vento embalando os eucaliptos.  O mugido dos bois e o revoar das garças rosas. O pio das gaivotas, o mar lá longe e a lenha crepitando na lareira. Ele fechando as grandes e emperradas janelas. E o seu ressonar calmo quando adormecia abraçado no meu corpo. Ouvi tudo e esqueci-me de ver. De ver que ele tinha partido, que ele não estava mais ali. Não sei o que fazer com estes ruídos que ainda reverberam nos meus dias, agora que abri os olhos e não sei para onde ele foi. Esqueci-me ingenuamente da cera das abelhas nos ouvidos e do perigo inexorável da melodia encantatória, esta minha velha conhecida. Agora olho atentamente e não o vejo.

Mas a lição é simples, Eros é cego e agora sou a mulher mais triste do mundo longe daqueles ruídos.




Assim estão as pessoas, por Lélia Almeida.

Somos quatro mulheres e três homens trabalhando na frente dos monitores numa sala pequena. A rotina é simples. Os homens chegam e colocam os fones nos ouvidos e comentam o jogo do dia anterior, os comentários são simples, “porra de treinador, tinha que ser demitido”; “e aquele bosta que ganha milhões e me erra aquele gol”, “e aquele frango, assim não dá.”
Todos estão com os fones e não ouvem o que dizemos.
Uma diz:
“Hoje cuspi no café dele antes dele chegar na mesa.”
“Fez pouco, disse a outra.”
“Não sei o que ele fez, mas tenho certeza que foi pouco, colega.”
“O desempenho daquele cretino, depois de uma semana sem me comer foi nota 5, ficou de recuperação esta noite.”
“Penso tanto numa vingança e não me vem nada decente à cabeça, uma vingança que me alivie os cornos, entendeu.”
“Compra líquido para os freios e joga na lataria do carro que a pintura faz assim ó wijepcaslnasnlasksi.”
            Todas rimos. Ela acrescenta:
“Faz três vezes, ele conserta e você repete e fica super solidária com ele e se ofereça para ir junto com ele na polícia fazer um BO contra tamanho vandalismo, com cara de Cinderela.”
            É o momento da queixa matinal, umas tem olheiras pela noite mal dormida por conta da nenê gripada, a outra vai ao banheiro fazer o risquinho preto no olho, que se atrasou tanto que saiu com “cara de ontem”, como esclarece. Depois, quase sempre, espiamos o horóscopo do dia, cheias de esperança.
Na metade da manhã começamos a interagir. Os homens, já sem os fones, e num mau humor canino por conta do timão decaindo, não tem noção do que falamos, assim como nós nem imaginamos o nome do técnico ou do maldito goleiro.
Assim são os homens e assim são as mulheres, a vida é mais do que simples.

Mas eu gosto mesmo é das mulheres. Porque elas são doidas varridas, loucas de atar, não enfartam porque se queixam e tem o apoio condicional das outras mulheres, sempre. Eu gosto das mulheres más e cansadas, e das insatisfeitas, eu gosto das mulheres de verdade, que tomam um café quente e dividem o biscoito de chocolate que é sempre amaldiçoado e aceito vorazmente como uma hóstia divina contra a dureza da vida.


A consulente me explica que sente que perdeu o controle da sua vida. Diz que é como quando a gente toma um caldo no mar, uma onda gigante e veloz nos pega de jeito, nos arrasta e não para mais, a gente sai escalavrada, arranhada, os cabelos enosados, vertendo água e sem ar. Ela diz que está no meio do caldo e que não consegue sair. Que a velocidade da água não a deixa vir para a superfície. A carta da Roda da Fortuna e do Carro sinalizam que o caldo continua. Ela ri cansada e diz, também, que graça tem uma vida controlada, né. E mergulha no redemoinho outra vez. Lembrei da Clarissa Pínkola Estés quando ela escreve que quanto mais controlada uma vida, menos vida se tem para controlar.

(Lélia Almeida)