sábado, 31 de outubro de 2009

(...) Ela sai de casa apressada, vestida com um casaco pesado demais para a época do ano. Estamos em 1941. Há uma outra guerra em andamento. (...) Caminha decidida em direção ao rio, certa daquilo que fará, mas mesmo assim um tanto distraída, observando as colinas, a igreja e um grupo de carneiros, incandescentes, matizados por um vago tom cor de enxofre, que pastam sob o céu enfarruscado. Pára, vendo os carneiros e o céu, depois retoma o caminho. As vozes murmuram atrás dela; bombardeios zumbem no alto, ainda que procure os aviões e não os veja. (...) Ela (...) fracassou. Não é escritora coisa nenhuma, não de verdade; é apenas uma excêntrica bem-dotada. Pedaços de céu brilham nas poças deixadas pela chuva da noite anterior. Seus sapatos afundam ligeiramente na terra fofa. Ela fracassou, e agora as vozes voltaram, resmungando de modo indistinto bem atrás de seu campo de visão, atrás dela, aqui, não, basta virar que elas somem e vão para um outro canto. As vozes estão de volta e a dor de cabeça se aproxima, tão certa quanto a chuva, a dor de cabeça que vai esmagá-la seja lá o que ela for e tomar o seu lugar. A dor de cabeça aproxima-se e parece que os bombardeiros (está ou não invocando todos eles, ela mesma?) surgiram de novo no céu. Chega à ribanceira, sobe e desce de novo até o rio. Há um pescador mais acima., lá longe, mas ele não vai notá-la, vai? Começa a procurar uma pedra. Trabalha depressa mas com método, como se estivesse seguindo uma receita que tem de ser obedecida escrupulosamente para que dê certo. Escolhe uma, mais ou menos do tamanho e da forma de uma cabeça de porco. No momento em que vai erguê-la do chão e enfiá-la num dos bolsos do casaco (a gola de pêlo faz cócegas em seu pescoço), nota, não pode evitá-lo, a frieza de giz da pedra e sua cor, de um marrom leitoso, com manchas esverdeadas. Pára perto da beira do rio, que lambe a margem, preenchendo as pequenas reentrâncias de lama com uma água muito limpa, que poderia muito bem ser uma outra substância, inteiramente diversa daquela coisa amarelada, parda, sarapintada, de aspecto tão sólido quanto uma rua, que se estende uniforme de uma margem à outra. Ela se adianta. Não tira os sapatos. A água está fria, insuportavelmente fria. Pára, a água fria até os joelhos. (...) Continua desajeitadamente (o fundo é lamacento) até ficar com água pela cintura. Olha de relance para o pescador, que usa um paletó vermelho pescando e um céu nublado refletido em água opaca. Quase involuntariamente (parece involuntário, para ela), avança ou tropeça alguns passos à frente e a pedra a puxa para baixo. Por instantes, ainda, não parece nada; parece um outro fracasso; apenas a água gelada da qual pode sair facilmente, nadando; mas nisso a correnteza a envolve e a leva com uma força tão repentina e vigorosa que a impressão é a de que um homem muito forte surgiu do fundo, agarrou suas pernas e segurou-as de encontro ao peito. Parece algo pessoal. (...) Rápida a corrente a leva. Ela parece estar voando, uma figura fantástica, os cabelos soltos, a aba do casaco enfunada atrás. Flutua, pesada, por entre hastes de luz marrom, granular. Não vai muito longe. Seus pés (os sapatos se foram) batem de vez em quando no fundo e, quando o fazem, convocam uma nuvem indolente de sujeira, povoada por silhuetas negras de esqueletos de folhas que param quase imóveis na água, depois que ela some de vista. Fiapos de mato de um verde quase negro enroscam em seu cabelo e no pêlo do casaco e, por instantes, um chumaço grosso de capim lhe tampa os olhos, depois acaba se soltando e sai flutuando, torcendo-se, destorcendo-se e retorcendo-se. (...) Por fim, acaba parando num dos pilares da ponte de Southease. A correnteza a empurra, ataca, mas ela está presa bem firme na base da coluna quadrada, atarracada, de costas para o rio e de cara para a pedra. Enrodilha-se em volta, um braço dobrado sobre o peito e o outro boiando acima da curva do quadril. Um pouco acima dela está a superfície ondeada, brilhante. O céu se reflete incerto ali, branco e pesado de nuvens, cruzado pelo recorte negro da silhueta das gralhas. Carros e caminhões trovejam sobre a ponte. Um menino pequeno, não mais que três anos de idade, cruza a ponte com a mãe, pára na grade, agacha-se e enfia entre as frestas o pauzinho que vinha carregando, para que caia na água. A mãe o chama, mas ele insiste em ficar um pouco mais, vendo o pauzinho ser levado pela correnteza. (...) Ei-los então, num dia no começo da Segunda Guerra Mundial: o menino e sua mãe sobre a ponte, o pauzinho flutuando pela superfície da água e o corpo no fundo do rio, como se Virgina estivesse sonhando com a superfície, o pauzinho, o menino, a mãe, o céu e as gralhas. Um caminhão verde-oliva cruza a ponte, carregado de soldados fardados, que acenam para o menino que acabou de derrubar o pauzinho. Ele acena de volta. E exige que a mãe o pegue no colo, para que possa ver melhor os soldados; para ficar mais visível. Tudo isso entra na ponte, ressoa através de suas madeiras e entra no corpo de Virginia. Seu rosto, comprimido de lado contra o pilar, absorve tudo: o caminhão e os soldados, a mãe e o filho.

In: As horas, de Michael Cunningham.

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