sábado, 24 de outubro de 2009



Os príncipes da cidade sem alma:

Lélia Almeida.

O cemitério municipal. Vamos visitá-lo. Há uma capela nova. Lá estão os meus avós paternos. Estão as fotos. A foto da Zizi é a do dia do aniversário de 80 anos dela, quando o Pedro tinha um ano e era o neto mais novo. E a foto do Dagoberto, o filho mais velho da Zizi. Olho para a foto e lembro dele jovem, quando eu era menina. No olhar dele, o jeito, a expressão de vários homens da minha família. Sobrinhos do meu pai, meus irmãos, meus primos. E lembro do olhar amoroso deles sobre mim. E a falta deste olhar é um vazio sem fim.

Somos de Rivera, escolhemos, eu e meu irmão. É uma questão de afinidade. Amor à língua, à comida, às ruas, às músicas, às pessoas. Há um jeito de ser, de outra consistência, de outro fundamento, diz o meu irmão. Comemos mozarela na City, milhojas pequenas, com pomelo. Chove, olhamos a fachada das casas antigas, e lembramos de um tempo em que éramos como morcegos jovens e varávamos as noites naquelas ruas silenciosas, vagabundos, fantasmas e éramos, mais que irmãos, parceiros, num tempo de muita dor e incompreensão. Ele paga a conta, eu protesto, ele diz que quando ele sai com uma mulher é ele que paga a conta. Digo que não sou uma mulher, que sou uma irmã. E rimos juntos, como nos bons tempos. Quando líamos juntos, quando ouvíamos as mesmas músicas e tínhamos certeza de que nada nos separaria.

As avenidas de Rivera, nos arredores, ampliaram, foram asfaltadas, a cidade floresceu com o free shop, com o dólar. Meu pai sempre disse que Rivera florescia quando Sant’Ana estava na merda. E vice-versa. A cidade, neste momento, floresceu, dizem que o atual prefeito poderá ser o próximo presidente do país. As lojas do free shop parecem de primeiro mundo, as uruguaias falam português fluentemente. O cheiro de perfume caro impregna o ambiente. Tudo sabe a luxo, coisa fina, chique. Na rua principal estão ao hotéis caros, os restaurantes, pizzarias, confeitarias, parrilladas, sorveterias. Nas ruas paralelas estão os botecos, os bolichos, com os produtos locais, sem o charme dos importados. Quesos, raviólis, pan con chorizo, Ripan, postre Riveli, caramelos, chimichurri, yerba mate, carambones, medialunas rellenas, salsa golf, crema hinds, cucarachas para o cabelo, cheiros e lugares, indissociáveis. E as casas antigas, pé direito alto, portas de madeira, janelas com sacadas, pátios internos com clarabóias e vitrôs, casas com almas. E pelas ruas, os ônibus com os nomes dos bairros. Rivera Chico. Pueblito. Enda. Ônibus velhos. Nomes antigos. Almas velhas. Cidades dos meus amores. Caminhamos, eu e meu irmão, sob os escombros. Escombros da nossa infância. Vamos do mesmo jeito, cúmplices, juntos. O que nos une é também de outro tempo. E de outra matéria também. Ele me diz sempre, que sangue não é água. E sei que quando ele está por perto, eu não estou só. De muitas maneiras eu não estou só.

A brincadeira era a de buscar nomes interessantes para os personagens do próximo livro. Mas sempre acontece algo mais interessante nos cemitérios. Os nomes no cemitério de Rivera. Ele entendeu, ele que sempre me entende. O poder das lápides, das palavras escritas e escolhidas no calor da emoção. Uma lápide branca, uma camélia em tom amarelo, Tereza Ponz, te ama tu sobrina. Nomes italianos, espanhóis, muitos vascos, alguns catalães, mas há poloneses e alemães, ingleses também. Árabes, muitos. A mistura é infernal na fronteira, um lugar que se pretende passível de controles, limites, contenções, alfândegas, permisos. A fronteira é o lugar do limite geográfico e da mescla, da mistura. Os nomes nas lápides contam desta história. Meu irmão entendeu. Paramos na frente de um casal. Horacio e Inês Centi. No quiero vivir sin ti. Ela foi primeiro. Ele foi um mês depois. Viveram 30 anos juntos. Nos olhamos e ele diz, Deus me livre um amor assim, eu digo que é o sonho de muita gente. Ele diz que homem e mulher pode ser muito bom, mas que quase sempre é muito complicado. Bom mesmo é irmão e irmã, ele diz, e saímos abraçados do cemitério.

Sorveteria Martinez. Helado de chocolate con granizado. A mesma mulher nos atende. A mesma que nos atendia nos domingos de noite. Quando voltávamos da piscina no verão, o corpo quente, a pele curtida, vermelha. Sorveteria Zun Zun. Sorveteria Martinez. ‘Nossa, ela passou a vida inteira aqui”, eu disse, ele disse, claro, a sorveteria era da família dela, agora é dela. Crema con frutilla, y chocolate caliente, el que endurece.

Um rio que se move ao contrário no tempo. E no espaço, um movimento sem volta. Comportas que se abriram. Desde que o homem do farol entrou na minha vida, dei para ouvir o rio outra vez, suas águas revoltas, imundas, de novo, a me chamarem. E desta vez, o único que sei, é que não sei para onde ir. Minhas lágrimas não param, uma dor represada foi embora de mim, voltei pra casa, voltei pra mim, voltei pra eles, meu pai, meu irmão, a cidade perdida, os escombros, a água suja, a enxurrada. O farol. Um rio que é um campo. A minha perdição. O meu lugar no mundo.

Um desassossego imenso se instalou desde que voltei, a sensação de que blocos imensos e sólidos se deslocaram, as tais placas subterrâneas que provocam de frêmitos a terremotos. Um desassossego todos os dias. Noites mal dormidas, cansaço e fadiga durante o dia, raiva travestida de toda a sorte de excitação, ódios repentinos, escudos, camadas de escudos para não sentir, para não lembrar, para não ver. Meu pai tão amado, velho, caminhando com dificuldade, me acena de fora do ônibus. Olho pela janela, não sei nunca se vou voltar a vê-lo outra vez. Faz as mesmas mímicas de sempre. Me diz que não esqueça de escovar os dentes, de pentear os cabelos, sou criança de novo e ele me faz rir, me cuida. O ônibus indo embora, ele abanando, até o ônibus sumir e o rio me inunda, a falta dele e esta saudade que não tem cabida nos meus anos e na história da minha vida.

Tenho medo que ele morra. E este medo me paralisa. Sou tomada por uma angústia que se transforma em sintomas. Resfriado. Dor no joelho. Olhos cansados. Taquicardia. Dor no peito. Ansiedades sem nome. Meu irmão e eu sabemos que ele está ficando velho. E nos desdobramos para devolver um pouquinho do ouro daquele tempo. Uma piscina para nadar nas tardes quentes de verão, sorvete no domingo. E a mão dele, que mesmo de longe, sempre esteve ali, perto, sempre. E porque algo maior que as minhas dores e mágoas me faz voltar pra casa e dizer que eu ia secar de frio e de saudade se não voltasse, se não chegasse a tempo.

In: Os príncipes da cidade sem alma, 2008. (Fragmentos, inédito).

2 comentários:

Verônica Couto disse...

muito difícil comentar, quase mal dá pra respirar... Saudade é um troço que mata a pessoa de falta de ar. bjs, prima do coração.

Anônimo disse...

Amei. Chorei. Lembrei. Recordei. Saudade. Lindo guria!!!!! A do martinez adorei.!!!!!jejejeje
Vai um abraço cósmico e um bj a alma. neneca