sábado, 23 de outubro de 2010




Medo dos cães, meu Pai:

Lélia Almeida.

Hoje eu sei que o medo é frio. Como que metálico. Como devem ser os trilhos por onde deslizava o trem que levava as mulheres da família para fazer o procedimento do outro lado da linha divisória, na fronteira. O procedimento sempre se faz longe de casa, que é pra não se deixar pistas. É assim desde que o mundo é mundo. E não vai mudar. Voltaram sempre quebradas, todas elas, o corpo dobrado no movimento desencontrado da cólica de um caracol vazio, as almas secas. É assim que todas sentem, hoje sei, embora não se fale muito no assunto. É frio, eu dizia, o medo. É gelado. Como os trilhos que são como os objetos cortantes usados no procedimento.
Quando acordei vi um crucifixo na parede branca e cheguei a pensar que estava no céu. Uma freira se aproximou, me alcançou um absorvente, disse que eu podia ir e que a receita estava dentro da minha mochila. Desejou-me boa sorte. O ferro da cama antiga e os objetos cortantes, os trilhos, o medo é frio e metálico.
Minha amiga me esperava dentro do carro. Abriu a porta com cuidado e me ajudou a sentar e a colocar o cinto. Quando a casa ficou para trás eu disse que assim que eu tivesse o dinheiro... Ela respondeu que eu não me preocupasse, a gente sempre faz isso por alguém, essa é a paga, é assim que a gente paga, ela explicou. Chá de macela, o comprimido, cama e um frio que não passa. Sonhei nesse mesmo dia que você era uma menina, desde então quando penso em você, penso numa menina, por causa do sonho, deve ser. Minha mãe e minha avó não tiveram a mesma sorte na viagem de volta do procedimento. Sacolejaram no trem, mortas de dor e tiveram que dar a janta para as crianças e para os maridos e continuar a fazer a vida andar. Uma vida tão cheia que elas mal lembram, agora, e que talvez seja por isso que elas fiquem sem saber o que me contar sobre aquele dia. E sobre todos os outros que se repetiram ao longo de uma vida, quando elas tomavam o trem sem saber se voltavam ou não para preparar o jantar. Era assim naquele tempo, elas me dizem. E o tom da voz da minha mãe fica mais baixo, e o da minha avó, mais metálico.
Ao contrário do que aconteceu com elas, depois do procedimento fui de carro pela mesma estrada para a casa onde vivem agora o meu Pai e os cães de guarda. Fui para lá para descansar. Há mato sobre os trilhos e a máquina está enferrujada perto da estação. Diga que é cólica menstrual, essa é sempre uma boa explicação. E assim você vai pra cama sem muita conversa, ela me orientou, a minha amiga. O tempo passa e o procedimento é sempre o mesmo. Desde as agulhas de tricô e crochê atravessadas, chás, raspagens mal feitas, óbitos.
É frio o medo. E ácido. Não reconheço o cheiro do meu corpo. Suo e tremo de frio. Meu Pai toma o mate na frente da lareira enquanto uma voz grave, de homem, despeja monótona o noticiário na Rádio Belgrano de Buenos Aires. Meu pai dormita ao pé do fogo. Abro a porta e saio na noite gelada enrolada na ruana grossa. O céu imenso, o campo que parece um mar, a figueira. Sento perto do balanço quebrado e choro baixinho. Os cães começam a latir. Cuscos de merda, meu Pai sempre diz, um dia ainda matam um vivente e me encrencam. Estão furiosos. Começo a suar frio sob o peso da ruana e sinto o líquido quente escorrendo entre as minhas pernas, lembro que pensei, a bolsa estourou, pensei que você ia nascer, um delírio como uma estrela cadente jogada naquela imensidão, o campo. Você que não existia mais. O sangue que escorria era você não sendo. Comecei a chorar então e o que saía de mim era como um miado e isso deixou os cães mais loucos ainda. Foi então que ouvi a voz do meu Pai, onde você está, minha filha? Ele perguntou, entre brabo e assustado. Eu disse, tenho medo dos cães, tenho medo de morrer. Ele disse, vamos pra casa, e fique quieta que então eles vão sossegar também. Mal podia andar. E a dor que parecia um trem veloz sobre mim. Mas a voz do meu Pai me assegurava que se eu ficasse quieta tudo ia ficar bem, que os cães iam se acalmar.
Quando lembro daquela volta pra casa, ao lado dele, tenho uma sensação estranha, minha filha. Se é que posso lhe chamar assim. A de que um silêncio tomou conta da minha vida, como quando a gente abaixa o som da TV num filme de terror ou de suspense, pra não sentir medo. E de que tudo ficou bem então. Os latidos dos cães foram diminuindo dentro de mim e a minha vida foi se enchendo de silêncio. E de tudo o que o silêncio pode guardar, culpa, vergonha, medo, essas coisas de mulher. E de uma saudade que nem eu entendo. Uma vida sem os seus barulhos, minha filha.
Uma vez que outra sonho com os trilhos e com os objetos do procedimento que ora brilham ora não, como relâmpagos, no escuro. E aí lembro que um dia você esteve aqui. E para que tudo fique em paz outra vez, volto a dormir e esqueço. Meu Pai tinha razão, posso lhe dizer isso agora, o silêncio é um santo remédio. Um remédio que faz a gente se acalmar e ter a certeza de que a gente não vale nada.

32 comentários:

Jean Scharlau disse...

Que bom que rompeste o silêncio e fizeste este notável alerta do perigo. Acho, ao contrário daquela amiga, que esta é que pode ser a paga.

braçoabraço

Lélia Almeida disse...

Um escândalo este silêncio, Jean, um escândalo.

mhelena disse...

lelia querida,
como sempre teu texto é agudo como lâmina e delicado como estas borboeltas que andam à solta.
É um texto lindo, triste, grávido de medos e de esperança pq foi publicado .
beijos
milena

mhelena disse...

borboletas

Rubão disse...

Eu fiquei triste imaginando tantos percalços na vida de tantas mulheres que sentem medo e não podem falar porque estão com medo. Em algumas situações, não existem cães próximos.

Anônimo disse...

Um silêncio estarrece_dor fiado na pena do mundo e na pena de um exímio conto. Por trás das linhas há um soluço abortado,uma gravidade sabotada pelo amanhã que é um outro dia.
Parabéns !

Valéria Sessa

Sarah disse...

Belíssimo.

Anônimo disse...

É horrível saber que milhares de mulheres já fizeram isso em busca de uma solução. O pior é que Eu fui uma delas. Pra dizer a verdade ainda não me arrependi, disso tenho medo.
Parabéns pelo texto.
Até.
cintia

merluza de andrade disse...

Estou de 4, de lado, de boca aberta, de queixo caído. Estou lavando de pranto viril o campo seco onde o sangue escorreu. Estou de cólica de farto de medo de sem noção. Estou sem saber porque me sinto menor, frágil, virado. Estou buscando o feminino em mim para ver se chego perto destas estrelas cadentes. Estou sem luz querendo descobrir onde erramos e porque os trens me apavoram. Estou sem ar.
Bravissimo por seu texto. Fiquei mudo no canto.

Anônimo disse...

Muito belo texto, amiga.
Mas espero que seja texto de um personagem. Um texto. Nao um desabafo. Pessoal, claro, mas ficcional agora mesmo que tenha sido, em parte, vivido.
Porque sou a favor do aborto. Sou contra a pessoalizaçao do feto. Um feto nao é uma pessoa. Nao é um filho. E uma possibilidade. E creio que a culpa quanto ao aborto é a culpa quanto ao sexo disfarçada.
Claro que aborto nao é método anticoncepcional e que é melhor nao ter de fazê-lo. Mas por razoes de saude, nao por razoes morais ou existenciais.
O que complica a questao é sua ilegalidade, que provoca o silêncio, a culpa, a cumplicidade. Aqui na França, de onte lhe escrevo, o aborto é legal e os problemas dele decorrentes, menores.
Um abraço. Gosto muito de seu texto.
Eliana

Marco Antônio disse...

Não entendi a razão da senhora me enviar o link desse seu antigo post para o meu e-mail. Creio que não nos conhecemos.
Contudo, cá estou a ler esse post que também foi enviado para o meu e-mail.
Eu sou obrigado a perguntar "se trata de um relato pessoal ou é apenas a ilusão do que você acha que acontece com uma mulher que pratica o aborto?"
Porque achei o texto um tanto romantizado, visando enfocar apenas a sua idéia quanto ao que é de fato o aborto.
Respeito sua opinião, como respeito a opinião de qualquer ser humano pensante; mas não me sensibilizou em nada porque muitas mulheres não sentem nada disso quando põe filhos no mundo e não dão a eles condições mínimas de existência.
Para mim a palavra aborto precisa de outros sentidos no dicionário, como: destruir, agredir, violentar, aproveitar-se, abandonar, largar, entre tantas outras. Não apenas o ato de por fim a uma gravidez.
De qualquer forma, essa é a minha opinião quanto ao tema aqui descrito pela senhora.
Grande abraço

Pedro Ornellas disse...

Texto maravilhoso... Sentimentos fortes e verdadeiros.
Eu poderia ser a favor do aborto, caso este pudesse ser retroativo, para impedir que viessem ao mundo pessoas tão perversas a ponto de defender o aborto. Só neste caso.
A vida começa no instante da concepção. Fato provado. Aborto é assassinato com agravante de que a vítima não tem a mínima chance de se defender. Toda vida pertence a Deus que a criou. Todo aquele que tira uma vida seja lá por que meios for, e não se redime, prestará contas por seu ato.
Que seu texto ajude pessoas a refletir a tempo de evitarem os cães.
Abraços!

Lígia disse...

Assutadoramente belo; incrível como a linguagem pode tornar poesia algo tão dificilmente digerível pelo homem, a morte, exatamente isso, ninguém sai ileso quando se trata de definir uma interrupção. Sempre me perguntei se teria coragem de fazer um aborto; certa vez conheci uma mulher bastante jovem, estávamos na casa de praia, lembro que havia uma menininha linda, correndo pelo quintal, a fralda um tanto larga e desajeitada movimentava-se conforme os passos da criança que estava aprendendo aquele ato de desequilíbrio - andar. Bom, essa mulher contava que tentou fazer um aborto com um certo chá, mas foi rapidamente levada ao hospital. A criança nasceu, perfeitamente saudável, impressionante, como tudo de que não temos domínio, simplismente vida.

Unknown disse...

Intenso, cortante, como o fio do frio, como o fio dos objetos do procedimento... Parabéns pelo conto.

Um abraço.

MJFortuna disse...

Lélia, seu texto me gelou os ossos. Nunca fiz aborto, mas deve ser uma experiência realmente de morte. Você escreve muito bem!

Um grande abraço

Maria J Fortuna

http://arteseartesmjfortuna.blogspot.com/

http://precesemcaledoscpio.blogspot.com/

Anônimo disse...

muito bom o conto, e sabe a ultima frase realmente decifra bem o medo dos cães", " gente nao vale nada".
e nao é preciso atraxessar a fronteira para descobrir que nao deveriamos temer os cães, ao lado sempre encontra o vizinho que faça o procedimento, o que parece escondido e notorio e tao claro.

Rosa Amanda Strausz disse...

Lélia, descobrir seus textos foi uma das boas surpresas de 2010.

CaPatez disse...

Estou com frio até agora... maravilhoso texto!

Anônimo disse...

Spammer filha da puta

Luiz Carlos Nogueira disse...

Realmente como você encerrou o seu discurso: "[...] a certeza de que a gente não vale nada." surge na mente e fustiga a alma, quando a pessoa se afasta da sua humanidade e assume a sua pusilanimidade, para que tudo se resolva sem responsabilidade. A vida é o grande mistério do ser -- até os animais, por instinto, sabem disso. Mas o ser humano, por conta da sua chamada racionalidade, na verdade não sabem o que fazem. Não celebram a vida mas temem a morte. Muito estranho isso, não é mesmo?

Respondi-lhe porque você me enviou esta matéria por e.mail.

Luiz Carlos Nogueira

Luiz Carlos Nogueira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Luiz Carlos Nogueira disse...

Retificando o texto (concordância):

Realmente como você encerrou o seu discurso: "[...] a certeza de que a gente não vale nada." surge na mente e fustiga a alma, quando a pessoa se afasta da sua humanidade e assume a sua pusilanimidade, para que tudo se resolva sem responsabilidade. A vida é o grande mistério do ser -- até os animais, por instinto, sabem disso. Mas o ser humano, por conta da sua chamada racionalidade, na verdade não sabe o que faz. Não celebra a vida mas teme a morte. Muito estranho isso, não é mesmo?

Respondi-lhe porque você me enviou esta matéria por e.mail.

Luiz Carlos Nogueira

Anônimo disse...

Lindo o texto. Obrigada por ter enviado o e-mail. Um forte abraço.

Anônimo disse...

EU não te perguntei sua opinião sobre nada. Você precisa mesmo fazer spam pra conseguir leitores?

Anônimo disse...

FELIZ 2011! Não te conhecia e graças ao spam, invasivo como todos os spams, fiquei conhecendo a escritora Lélia. Vc escreve muito bem e tem muita coragem em expor seus sentimentos e experiências e de enviar spams.

Maria Di Lascio

Olinda disse...

mujer de cojones: mulher. ser mulher também é foder o silêncio com palavras. adorei o teu texto. :-)

Silvia Badim disse...

O silêncio é remédio, é alma, meditação. Respiração da mente. Lindo e frio, como os momentos que cortam pensamentos e calam o coração em chamas.
Adorei o texto.
Beijos,
Silvia Badim

Noslen Rodrigues disse...

Que legal! Tua arte vem da fonte e mexe com a loucura da gente!!!

Anônimo disse...

A gente termina de ler e ainda fica olhando as últimas palavras, meio hipnotizada...
Betina

Plinio Zuni disse...

Com certeza um dos melhores textos que já li sobre dor, perda e ojeriza.
É difícil manter firmes as maõs no teclado depois de ler. passei por uma experiência semelhante, estando do outro lado, diante da impotência do observador, da culpa do inseminador e sem a possibilidade da redenção pela dor. Poucas vezes me emocionei tanto em um blog.

Assim que sobrar algum tempo, prometo ler seus outros texto.

Anônimo disse...

Já vivi coisas iguais...
É terrível saber que se precisa fugir das luzes para viver a vida e a morte...
A existência nos joga nas mãos do Bem e do Mal...às vezes com tanta velocidade e ferocidade que só quando vimos de longe por caminhos que percorremos é que a razão e a emoção acordam nossos sentimentos...

Gerson disse...

Ah... o silêncio.
Belo texto.