sexta-feira, 5 de novembro de 2010



Benjamin

Lélia Almeida.


Do pouco que consigo lembrar daquele momento, só posso dizer que Benjamin nasceu primeiro do meu pensamento, partejei-o através de uma idéia, ou de uma sucessão de idéias. É o que sei: partejei-o pela cabeça, primeiro, chegou-me assim, como uma idéia, antes mesmo de ser um sentimento. Depois Benjamin tomou-me por inteiro e agora já não posso viver sem ele.
Daquele momento lembro da velocidade e da confusão dos pensamentos, que pareciam nuvens rápidas que se desfaziam enquanto voavam, disformes, uma excitação mental que me deixou noites inteiras de olhos estatelados na escuridão em busca de uma forma, de uma idéia, de uma pista que me levasse até Benjamin. Noites vazias que me faziam atravessar os dias trôpega de exaustão. E que pareciam, a princípio, apenas isso e nada mais, um cenário de vazio e escuridão. Meu corpo inquieto se movimentava ansioso, respondendo à excitação da minha mente. Como a urgência de um parto, que não há como adiar. Até o dia em que, vazia de respostas, cai num sono profundo, o corpo pedindo o calor da entrega, a paz do descanso, e fechei os olhos quebrados e desabei na noite dos tempos.
Era o início dos tempos. Eu estava nua num lugar seco e deserto que parecia uma tênue paisagem lunar sob um céu cheio de estrelas. Fazia muito frio e a minha cabeleira era farta e longa. Eu caminhava sem rumo sabendo que não podia parar, como se buscasse algo ou alguém, atrasada quase, e que por isso eu não podia parar. Uma pressa, um frenesi movia os meus passos, meus pés firmes sobre a terra escura e as sombras que se projetavam da luz das estrelas através do meu corpo sob a superfície da opalina. Não sei dizer de onde ela saiu, a velha que segurava o cajado e que tinha os cabelos eletrizados como os meus, menos fartos, devo dizer. Lembrei de Tirésias, é claro, mas ela não era cega e seus olhos brilhavam com ardor.
- Quem é você? – eu perguntei.
- Pergunta errada, sua tonta, pergunta errada.
- Onde estou? Que lugar é este afinal?
- Este é o lugar onde tudo começou, no início dos tempos.
- Mas no início dos tempos não havia um paraíso exuberante...
- Um homem, uma mulher, uma maçã e uma cobra?
- Sim!
- Ora, faça-me o favor, uma mulher tão estudada, tão inteligente e com tão pouca imaginação! Não me diga que acreditou nesta bobagem!
- Na verdade nunca questionei esta história.
- Preguiça de pensar, mais ainda de imaginar.
- Então não havia um homem e uma mulher no início dos tempos?
- A costela! Já sei, você quer o raio da costela. Faça-me o favor!
- Não, na verdade nem sei o que pensar!
- Não temos tempo menina, faz muito frio aqui, temos de ser rápidas, há muito o que fazer.
- Sim.
- Olhe a paisagem. É seca. É dura. Mas também há beleza no que é selvagem.
- É assustadora.
- Aqui é o lugar de conceber. E de parir. Só isso. Preste atenção.
- Não há nada para olhar. Só desolação.
- Isso porque todos, finalmente, partiram.
- E eu vou ficar aqui sozinha então?
- Não, sua tonta! Você vai obrar comigo! Trabalhar ao contrário, trabalhar para dentro.
- Uma desolação só!
- A desolação é o avesso de uma miragem.
- Vou morrer, sinto como se caísse de uma ponte para o vazio.
- Concentre-se.
- O que é isto?
- Uma cratera e no meio dela há um lodaçal que precisa ser ativado. É a lama primordial. Lama, água e terra apenas, não há o que temer. Venha.
- O que devo fazer?
- Olhar, primeiro. E depois reconhecer.
- Olhar o quê?
- Que todos partiram.
- Disso eu já sei. Faz tanto frio. Tanto frio.
- Veja-os, estão muito longe agora, lá onde a vista não alcança mais.
- Eu os vejo. Meu pai. Minha mãe. Meus irmãos. Todos partiram. E esta luz das estrelas que parece tornar tudo mais frio ainda.
- Concentre-se agora. As mãos na lama. Enfie as mãos na lama, sinta como a lama se movimenta e como é ela quem molda as suas mãos também, assim, imprima força nos braços, isso, nas mãos, nos dedos.
A velha me ajuda a enterrar os braços até a altura dos cotovelos no lodaçal. “Força”, ela diz. E uma tristeza antiga parece desfazer-se enquanto movimento os braços, com a força de quem quisesse resgatar um improvável náufrago de um buraco tão pequeno e profundo. “Força”, ela repete. “E deixe ir aquela gente que já partiu há muito tempo”.
Sequer os vejo mais, quase os imagino como numa reminiscência que teima em voltar. Lembro de uma praia, da água salgada nos cabelos e castelos de areia na beira de um mar imenso.
- Concentre-se, ela diz enérgica, não há mais tempo a perder.
Estou sentada sobre as minhas pernas dobradas, ela, a velha, está atrás de mim e seu corpo velho me sujeita e me ajuda no movimento dos braços que faz com que a lama apareça, cresça, se incorpore, começamos a suar as duas, com a velocidade e o rigor dos movimentos.
- Você terá de inventar e depois criar o que deseja.
- Um homem, eu disse.
- Que seja! Ela disse. – Já!
Trabalhei com força na forma de uma espécie de boneco, esboço, ensaio, tudo muito precário.
- As mãos e o pensamento. Vamos. Fale-me dele.
- Ele se chama Benjamin.
- Bem já mim. Beija mim. Gostei, ela ri.
O corpo de Benjamin é uma perfeição, ele é mais alto e mais forte do que eu, demoro-me especialmente ao desenhar seu membro que cresce no movimento feliz das minhas mãos ágeis. Desenho-lhe as coxas, os glúteos firmes e ela diz: “não se disperse, depois você terá tempo para brincar à vontade”.
Os olhos de Benjamin não têm fim, posso entrar neles como que entra num poço profundo e Benjamin me vê, inteira e me acolhe. Seus braços fortes e seu corpo me envolvem.
- Ele me protege, eu digo.
- Um homem com um membro ereto e proteção! É isso que você quer de um homem, sua estúpida? Trabalhe!
Minhas mãos não param. Já não sinto mais o corpo da velha sobre o meu, outra vez, ela sou eu, como já aconteceu outras vezes. A minha força vem da força dela. Benjamin, belo, grande, forte, limpa a lama do corpo e do cabelo sedoso, adora a brincadeira, me olha assombrado. O brilho de algo metálico me desperta do encantamento de admirá-lo. Há um punhal de prata perto do buraco de onde a lama nasce. Sei que tenho que ser rápida. Corto, seguindo a linha do desenho de uma meia-lua, o seio esquerdo, perto do coração. “Meu amor”, eu digo, “venha, venha a mim”. Benjamin me abraça largo e me beija intensamente antes de se alojar dentro do meu coração. Dentro de mim.
Acordo então da noite dos tempos, me espreguiço, muito longe agora da paisagem lunar, que agora mais parece uma névoa ou a lembrança de um sonho pouco nítido. Acordo cheia de fome, apetites, desejos, saudades, anseios. E sinto o calor que vem da terra, da água, do dentro. Abro a janela, o sol me inunda. Benjamin. A solidão é como uma bênção. Fecho os olhos sob o calor do sol.
Partejei-o inteiro, o meu homem.
E me transformei numa dançarina muito antiga no seu abraço.



In: Anovaela. (Fragmento, texto inédito, 2008).

2 comentários:

Rubão disse...

Benjamim..... Eu o invejo...

duda hamilton disse...

Sempre gratificantes ler o que escreves. besos