domingo, 5 de dezembro de 2010

Receita contra traições, com sangue escorrendo entre os dentes
e mortes imprescindíveis:

Lélia Almeida.

Sofri da mesma traição duas vezes. A primeira quando o meu filho nasceu e minha vida virou um inferno de dúvidas, preocupações e grandes sustos. Um inferno cheio de gratificações, diga-se, mas senti muito que ninguém tivesse me avisado que uma mudança tão avassaladora ia me transformar em menos de um turno em outra pessoa. Minha mãe, pragmática, dizia: engole o choro e toca a viver.
A segunda traição, de mesma natureza, foi quando o mesmo filho entrou nesta zona pantanosa que começa aos dezoito anos e que pode terminar a qualquer momento, inclusive quando o infante tiver 40 anos. É o momento do segundo parto.
E se ele for um rapaz então, como o meu, nós mães, nos tornamos os seres mais odiados e detestados do mundo e todo o idílio que vivemos durante duas décadas com eles, respondendo pavlovianamente a todas as suas demandas, acaba, de uma noite para uma manhã. Ele nos odeia, mas não vai embora. Fica ali para nos lembrar dia e noite que nos odeia e a vida se transforma num inferno.
Estamos agora em plena menopausa, os humores flutuantes como os dele. A vida se transforma num inferno sem as tantas gratificações anteriores. Você, mãe, se transforma na figura de autoridade mimetizada num saco de areia de pancadas, num momento em que muitas outras coisas fantásticas em sua vida estão acontecendo: amadurecimento pessoal, sucesso profissional, novas amizades, casamentos falidos que terminam, novas oportunidades, etc.
Não vou trair ninguém: é um inferno. Mas não desistam dos rapazes. Façam a única coisa que é possível fazer por eles neste momento. Não precisa ser com um afiado facão de cozinha ou de açougue. Sempre há soluções práticas ensinadas pela ancestralidade. Lembrem da mulher macaca que vive dentro de nós. Ou de outras figuras exemplares.
Exausta com as demandas da situação, numa noite insone e no meio de uma reza furiosa, o espírito de uma índia charrua, num sonho iniciático, se abateu sobre mim e me lembrou que sou uma mulher dos pampas, gaúcha fronteiriça onde bravíssimas mulheres guerrearam e mataram para sobreviver na imensidão dos campos. As índias charruas, diferente de outras mulheres, quando violentadas pelos homens brancos, rasgavam com uma faca o próprio útero para que seus filhos não nascessem cativos. Ou lembrem da bravura das vivandeiras, que seguiam os homens nas guerras, e jamais se detinham por conta de marmanjos mimados que se negavam a crescer.
Tomem, minhas amigas, do espírito destas mulheres, deixem a alma selvagem delas recair sobre a de vocês, sintam que elas estão próximas e façam, vocês mesmas o que elas fariam sem dó nem piedade: cortem este cordão umbilical consistente e sem fim, que vai engrossando enquanto eles crescem, cortem com os próprios dentes, e saiam vida afora, urrando um grito liberador, dentes afiados e ensangüentados e vão viver as suas próprias vidas.
Porque não há, senhoras, nada mais que possamos, efetivamente, fazer por eles. Agora eles vão ter de crescer.
E nós temos de voltar a dançar e a cuidar em outro ritmo da vida que nos resta viver. Boa sorte para todas nós!

3 comentários:

Ana lu disse...

Linda crônica Lélia, parabéns. Quando pensamos que tudo passa e que isso tb passará, bobagem... Não é regra. Um dia cheguei ao cúmulo de ouvir, ao elogiar a cor da camisa que havia separado para meu filho vestir, que eu não fazia parte da vida dele. Gostaria de esquecer... de ter essa capacidade, pq perdoá-lo isso eu já fiz, mas confesso que aquelas palavras ficaram marcadas a fogo no meu peito. É aquela porta que se bate com tanta força que vc fica olhando pra ela e não percebe que uma janela se abriu. Com filho tudo é diferente... Nosso amor por eles é tão grande, nosso cuidado e preocupação é enorme que eles simplesmente não entendem... nunca entenderão. São filhos, não são filhas. Acho que essa coisa é mesmo uma característica das mulheres. Eu te entendo amiga, beijos.

Marcelo Daguerre disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Marcelo Daguerre disse...

Quantos atos desesperados necessários? Quantas vidas são necessárias até o desaparecimento do nosso primitivo? O desejo de moldarmos nossas crias talvez nos faça esquecer que moldamos, muitas vezes, no vidro. No vidro que dentro tem uma alma que possivelmente aprisionamos em algum momento desse convívio por vezes cego. Ao desapego, meus amigos...ao desapego. Ouço, repito, ouço, repito, reflito...Já que é assim, que Deus nos tire pelo menos a sensação de ingratidão e que a dor passe logo já que ela parece tão fértil. Um grande beijo, Leila.