domingo, 22 de maio de 2011
À SOMBRA DA CHAMA DE UMA VELA:
Lélia Almeida.
O que não é visto não é lembrado.
(Ditado Popular)
Aquilo sobre o que ninguém escreve
ou fala não existe.
(Érico Veríssimo)
Também tenho encontrado
mulher de todo pêlo
morocha, castanha, ruiva
rica, pobre, remediada
gorda, negra, alta, baixa
moça de família, china rampeira
mulher com medo de rato
e fêmea que briga como macho.
Mas fui aprendendo aos pouquinhos
que hai moças e moças
e que é sempre bom a gente atentar
no que diz a língua do povo:
Em São Borja e São Vicente,
Pra casar não se demora
Que as moças lá desses pagos
Cortam a gente de espora!
Lá na terra de Pelotas
As moças vivem fechadas.
De dia fazem biscoito,
De noite bailam caladas.
Ó moço, se eu le contasse,
Vancê diria que eu minto:
As moças de Livramento
Usam pistola no cinto!
A fala acima é de José Fandango, tropeiro conhecedor dos pagos gaúchos, um dos tantos personagens de O tempo e o vento, de Érico Veríssimo, e que, neste momento, cruzando o segundo volume de O continente, "num verão muito seco (...) foi levar a tropa a São Gabriel". E revela, de modo exemplar, a lenda da mulher gaúcha como forte, viril, varonil, em suma, a lendária mulher de faca na bota.
É também o texto de Érico Veríssimo o que mais amplamente se ocupou de retratar uma diversificada galeria de personagens femininas, vivíssimas para sempre no imaginário do público leitor gaúcho.
Ana Terra, Bibiana, Luzia são, sem dúvidas, personagens femininas fortes, inesquecíveis e com uma força arquetípica constatável nos inúmeros solares, edifícios, projetos "Ana Terra", ou nas inúmeras também Anas Terras e Bibianas nascidas até hoje no Rio Grande do Sul a fora, num movimento recorrente como é o movimento que solidifica a força dos mitos. Mitos de mulheres de força, teimosia, perseverança, garra, determinação.
No caso de Ana Terra, por exemplo: tendo a casa paterna destruída pelos castelhanos e mortos pai e irmãos e o corpo violentado, parte cheia de coragem para reconstruir sua vida no pequeno povoado que se transformará na cidade de Santa Fé, cenário e palco onde se desenvolvem os duzentos anos de história da família Terra/Cambará.
Ana Terra não é movida apenas pelo ódio à violência provocada pelos castelhanos; sua força e determinação, sua teimosia e perseverança (típica dos Terra) são fruto de um sentimento poderoso, absoluto: é preciso criar seu filho Pedro, torná-lo homem, sobreviver. E é desta brava figura que depende a vida do menino. Investida de fúria e vontade, Ana Terra parte com um menino pela mão para conquistar seu território, e a maternidade é o sentimento, a função que lhe dá esta fúria, sua força.
Bibiana Terra, neta de Ana Terra, tem igual destino. É obstinada como a avó, briguenta. Enfrenta o pai para casar com o Capitão Rodrigo e cria três filhos em meio a esperas, perigos, solidão e às idas e vindas do marido a guerras e a outras mulheres. Para ambas, cuidar da terra é mais do que parece: cuidar da terra é cuidar da descendência e da manutenção da sobrevivência que é, afinal, o que importa e o que concerne às mulheres. É assim que Bibiana, com uma praticidade e objetividade agudas, casa o filho Bolívar com Luzia Silva, num casamento de interesses contratuais, conseguindo reaver assim sua casa de infância, seu quintal, a tradição da família Terra, e investir o filho e o neto de poder político e prestígio social.
Nada que um bom pai de família não fizesse por uma filha casadoira. Bibiana, como a avó, é teimosa, perseverante, briga sem limites e pruridos pelo que quer e consegue sempre o que deseja. Para ela, como para Ana Terra, o que importa é a família, a descendência, o filho, o neto.
Ana Terra e Bibiana se consolidam na nossa literatura como mulheres indubitavelmente fortes, e toda a crítica especializada usa de qualificativos masculinizantes para legitimar esta força: são poderosas, viris, varonis. E esta força que tem uma expressão masculina nasce de um motivo específico, feminino, que é a maternidade.
Ana Terra e Bibiana são bravas e fortes mulheres, e são mães; acima de tudo são mães.
A contrapartida destas figuras exemplares pautadas no arquétipo da Grande Mãe, Mãe Terra, é Luzia, neta de Aguinaldo Silva e mulher de Bolívar Cambará, nora, portanto, de Bibiana. Inscrita na capítulo "A Teiniaguá", no segundo volume de O Continente, reforça com seu comportamento feminino diferenciado aspectos significativos da lenda. Luzia é bonita, rica, sedutora, vem da cidade grande, toca cítara, faz versos, emite opiniões próprias, é cruel e não se situa dentro de um modo de ser feminino proposto às personagens femininas ao longo do texto, quiçá
ao longo de toda a nossa literatura. Um modo de ser feminino idealizado, muito distante do modo como as mulheres são e vivem realmente. Luzia desempenha papel de estrangeira; nem ela nem o avô são originários de Santa Fé. Ele nordestino, ela órfã e adotiva, o que obscurece e mitifica mais sua origem, reforçando a percepção trágica do Dr. Winter, que a nomeia significativamente de Melpômene. Esta Lorelei perversa, de olhos de réptil, tem sua força e seu poder na sedução a que sucumbe Bolívar e numa determinação que a põe em guerra com Bibiana, numa disputa por Licurgo e pelo Sobrado até sua morte, vitimada por um tumor maligno.
Se a terra e as boas águas nutrem o nosso imaginário, quando falamos em Ana Terra e Bibiana, com Luzia o que aparece é o fogo destruidor, poderoso, sedutor, como quer seu próprio nome e a lenda na qual seu perfil está calcado. Luzia é também uma forte, mas sua força, ao contrário de Ana Terra e Bibiana, não tem motivação na sublime função materna, mas na sexualidade que seduz e aniquila Bolívar, uma sexualidade que vemos muito mais explicitada na desejo do Dr. Winter e no ódio de Bibiana, do que na conduta propriamente dita de Luzia. Esta força sexual, por assim dizer, é representativa ao longo do texto, sobretudo se recordarmos que Helga Kunz evocava à jovem Bibiana os olhos da Teiniaguá e que, na tradição das "outras" dos varões Terra/Cambará, Ismália Caré evocará à velha Bibiana um jeito, alguma coisa de Luzia.
Na contrapartida das mães dignas e fortes: Ana Terra, Bibiana, Flora e Silva, estão as "outras" no rastro de Luzia-Teiniaguá-Lorelei-Melpômene, as Helga Kunz, Ismália Caré, Toni Weber, Roberta Ladário, Sônia Fraga, Mary Lee, Mandy. A princesa moura é estrangeira, como o desejo é estrangeiro. As "outras", todas estrangeiras, perigosas, ameaçadoras, excluídas tanto do âmbito cultural como da classe social dos Terra/Cambará, encarnam uma sexualidade impulsiva e destruidora.
A equação é simples, recorrente ao longo da representação e construção das personagens femininas na literatura: o corpo feminino dividido entre um corpo materno digno e um corpo prostituído indigno; ou bem Marias ou bem Evas, ou bem santas ou bem putas, como se sabe.
Submetidas à prescrição patriarcal "parirás na dor", as tais mães fortes e poderosas expiam a culpa do pecado original e vêem-se deslegitimadas na própria maternidade ao terem seu corpo dividido com as "outras". E o desfecho de cada uma delas é revelador: Ana Terra pede para enterrarem a roca de fiar com ela para que Bibiana não seja mais uma escrava; Bibiana já velha, ao saber da morte da bisneta Aurora, sente-se aliviada ao pensar que será uma a menos a amargar um destino de mulher; Luzia é sacrificada por um tumor maligno.
Entre elas, no entanto, esquecida pela crítica, no rastro do próprio anonimato criado pelo texto, Maria Valéria Terra, com uma vela na mão, perpassa O tempo e o vento suscitando questões, subvertendo um modo de ser feminino que subjaz às normas e condutas.
A trilogia O tempo e o vento de Érico Veríssimo abre com a cena do Sobrado sitiado, os homens em guerra e dentro do Sobrado, Alice, mulher de Licurgo Cambará entra em trabalho de parto e viemos a saber, com os demais homens da casa, que a criança nasceu morta e que era uma menina. Este episódio, bastante significativo ao longo do texto, suscitou nossas primeiras indagações de como a maternidade tem sido representada pelo imaginário literário e a minha suspeita de haver um silêncio ao redor desta experiência, tipicamente feminina, mas que, ao legitimar a função única da mulher dentro da cultura patriarcal, deveria estar mais exposta, mais festejada, melhor presenciada. Viemos, nós leitores, e aqueles homens cansados, suados, semimortos, em meio a uma guerra, a saber do parto de Alice Cambará, por Maria Valéria, sua irmã.
Maria Valéria apresenta-se, por assim dizer, de início, como a porta-voz de uma experiência típica do mundo e do corpo das mulheres, que, no entanto, ela jamais experimenta. Com a morte de Alice Cambará, Maria Valéria torna-se a referência materna por excelência na vida dos meninos Rodrigo e Toríbio Cambará e para os filhos destes para quem até a velhice, ela será a Dinda, a Madrinha, aquela que não é mãe mas que cuida e protege.
Maria Valéria aqui traça um contorno que - ao contrário do que quer a crítica - não a nivela como uma mãe a mais dentro de uma entidade feminina homogênea, mas que é inovador: desmistificando a idéia de uma natureza feminina feita indistintamente para a reprodução, Maria Valéria propicia uma leitura, bastante em voga em espaços interdisciplinares, de que a maternidade, o sentimento materno, o instinto maternal são construções culturais, ideológicas e que, muito além do determinismo biológico, a maternidade é apenas um afeto como outro qualquer (BADINTER, 1985) e que a figura materna é aquela que cuida.
Maria Valéria, a Madrinha, a Dinda, cuida e protege sem ser mãe. Não gesta, não pare. Está à margem da prescrição patriarcal às mulheres que expiam a culpa do pecado original: "parirás na dor". Tal prescrição se configura como castigo imposto ao corpo feminino pelo pecado original e tem como resultado a cisão definitiva do corpo feminino: o corpo virgem-materno-digno e o corpo prostituído-impuro-indigno. Essa tem sido a representação do corpo feminino ao longo da literatura: madonas, prostitutas, dignas esposas, indignas amásias.
A maternidade, historicamente, passa a ser o espaço da falta de identidade, da impossibilidade de auto-realização da mulher, da sua dependência e infantibilidade, da ausência do desejo e da sexualidade. Disso também o texto nos fala. Maria Valéria ao matar-se virgem, casta, ao não ter o corpo fendido (para cada Cambará macho há uma esposa e uma amante), não sofre a punição da ordem patriarcal e parece sentir-se muito à vontade, portanto, tanto com a experiência feminina como com a convivência masculina. O silêncio que permeia a experiência da maternidade, aqui, incluiria a experiência feminina com o próprio corpo como um todo: virgindade, menstruação, perda da virgindade, iniciação de uma vida sexual adulta, gravidez, gestação, parto, amamentação, etc. Tais aspectos da vivência do corpo feminino como um todo são de importância vital dentro da idéia de que é a partir do corpo, nossa matriz primeira, que construímos uma identidade, questão bastante problemática para as mulheres.
Este silêncio que é aparente (estas experiências são silenciosas, mas presentes em todas as personagens femininas do texto) parece reclamar uma "imperfeição" a mais do corpo feminino e que historicamente foi muito difícil de ser equacionada (MILES, 1989): a de que para que haja uma gestação tem de se admitir o corpo feminino como um corpo sexuado. É, afinal, o mistério de Maria, típico, cristão, constituinte do "eterno feminino" no imaginário masculino. Maria Valéria passa incólume por tais questões. Cuida dos filhos de Alice sem tê-los parido, é companheira de Liburgo sem submeter-se sexualmente a ele.
A castidade de Maria Valéria questiona a violência do relacionamento heterossexual a quem eram submetidas as mulheres. Não sendo mãe nem esposa, Maria Valéria, livre de determinadas atribuições intrinsícas a tais funções, transita com relativa liberdade e bastante determinação numa fronteira absolutamente delineada ao longo do texto e demarcada em total afirmativa pela crítica: a fronteira entre um território feminino e um território masculino. É uma mulher no mundo do dentro e do fora da casa, por onde acontecimentos políticos, guerras, nascimentos de crianças e tachos de marmelada se mesclam de tal maneira que o espaço dicotômico criado pelo patriarca aqui não se sustenta, se mescla.
Maria Valéria aparece também no texto como a figura central, ela herda um conhecimento de Ana Terra e Bibiana e o transmite a Flora e Sílvia. Essas, mesmo esposas e mães, têm na Dinda uma confiança inabalável para a resolução dos problemas, dos mais prosaicos aos mais existenciais. É assim que Maria Valéria intervém no episódio de Alicinha e seu descontrole com o roubo da boneca pelos meninos, resolvendo a questão, ou sendo quem controla Flora quando Rodrigo vai para a guerra, diminuindo a dramaticidade destas idas e vindas dos homens num movimento que para ela é absurdo, ilógico.
Mas a sombra também fala, pouco, mas fala: seguindo o que na atualidade temos mais condições de avaliar, a oralidade, a sabedoria transmitida oralmente, sem registro escrito histórico, encontra em Maria Valéria um discurso cheio de ditos e falares, prática feminina histórica por onde experiência, sabedoria, conhecimento e criatividade se juntavam. Uma leitura desta voz, direta e espontânea, mostra a modalidade de seus diferentes timbres. É surpreendente também que o fato de que, mesmo sendo mulher, vivenciando a clausura, a espera, a solidão, Maria Valéria seja a única personagem feminina do texto que não maldiz a condição feminina. Ana Terra, ao trazer a neta Bibiana ao mundo, pede que enterrem com ela a roca de fiar para que a neta não padeça como ela. Em outro momento, Bibiana, octogenária e à beira da morte, ao saber da morte da bisneta Aurora a bendiz por não ter que sofrer. Luzia é sacrificada com um tumor maligno e lemos pelos olhos de Licurgo, seu filho, tempos depois da morte da mãe, um depoimento onde ele atesta que sua vida foi um suicídio lento e constante. Anita, Aurora e Alicinha morrem. Flora, com os filhos adultos e a morte de Rodrigo, percebe-se absolutamente desamparada, transformando-se numa quase filha-protegida de Floriano. Traça para si um final de resignação e sacrifício, atributos que dignificaram estas personagens femininas ao longo do texto e da crítica. Triste legado esse.
Maria Valéria não morre. Octogenária, cega, tateia pela casa carregando uma vela acesa, uma chama que não se apaga. Vemos no fogo desta chama um significado de conhecimento, ao invés do fogo simbolizado por Luzia, de destruição. Opõe-se também à terra/água nutrientes e protetoras de Ana Terra.
O procedimento narrativo cada vez que Maria Valéria entra em cena é de aparição, "surgiu", "uma presença", "um vulto", o que a caracteriza como sombra, "o fantasma predileto" de Rodrigo Cambará.
Por fim, características como a castidade, o anonimato, a inteireza, a sabedoria, a introspecção (para citar alguns), encontram ecos no arquétipo de Héstia, o que nos permite supor que Maria Valéria, ao invés da sombra que reduplica o arquétipo fundado por Ana Terra, funda um arquétipo novo, retirando-a assim da já tradicional tríade instituída pelo texto e pela crítica composta por Ana Terra, Bibiana e Maria Valéria. Floriano Cambará, pretenso crítico do machismo gaúcho, ao questionar seus mitos e valorizar a "raça" das mulheres, não consegue safar-se da maldição da feminino estereotipado: ama Sílvia mas é amante de Mandy. Mas Floriano, como Érico Veríssimo, mantém a chama da vela acesa, a sombra permanece, "o Sobrado está vivo", diz Floriano Cambará no início-fim de O tempo e o vento ao ouvir os passos da Dinda pela casa.
Este trabalho, seu motivo, persegue uma pergunta, simples: como se ilumina uma sombra? Há caminhos e descaminhos quando se pensa a história das mulheres, os arquétipos, mitos, estereótipos que petrificaram, cristalizaram seus corpos e vozes. Como se ilumina uma sombra?
A pergunta permanece, permanece ainda.
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Um comentário:
Amo la mujer clara, que a mi me ama sin pedir nada.
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