Eu, aos cinquenta:
por Lélia Almeida.
Dia 20 de fevereiro
faço 50 anos. Meu aniversário coincide com uma mudança de casa, vou para um
apartamento menor, eu, três gatos e muitos livros. Hoje comecei a empacotar os
livros e fui tomada por um turbilhão de estados emocionais e alterações de
humor que só quem passa por isso sabe do que se trata. Porque na hora de
encaixotar os livros, muitos, inevitavelmente, vão ficar pelo caminho.
Já fiz mais de 20
mudanças para lugares, cidades, endereços e países diferentes e já deixei
muitos livros pra trás. E como choro na hora da escolha do que levar e do que
deixar. Uma escolha é também uma renúncia. Uma escolha reafirma quem ainda
somos e os livros que não vão conosco parecem gestar um cadáver daquilo que não
somos mais e que vai embora agora, um pedaço de nós, embalado numa mortalha
feita de caixas de supermercado, jazer na Biblioteca Demonstrativa de Brasília.
Chorei de ranho ao pé
da Antologia General de la Literatura
Española (verso, prosa, teatro), de Angel Del Rio de Columbia University y
Amelia Del Rio de Barnard College, da Revista de Occidente de Madrid, de 1954,
três portentosos volumes em couro legítimo que somam juntos mais de 3.000
páginas. E da Historia General de las
Literaturas Hispánicas de Guillermo Díaz-Plaja da Editorial Barna, de
Barcelona comprada na maravilhosa livraria García Santos libros em Mendoza na
Argentina, dois volumes de mais de mil páginas cada um, capa de couro clarinho.
E dos quatro volumes da Historia Comparada de las literaturas americanas de Lui
Alberto Sánchez, editado pela Losada e comprada na Librería Y... do Jorge, em Mendoza.
A Líbrería Y... era do Jorge, o último riponga autêntico da cidade e
ficava no centro de Mendoza, na Argentina. Era, na verdade, um galpão imenso,
cheio de livros maravilhosos, pé direito altíssimo e muitos gatos que ele
criava ali, misturado com os livros. Apaixonado por Cortázar, Jorge teve várias
livrarias na cidade e cada uma tinha uma parte do nome do livro Historias de cronopios y de famas. Todas
faliram, só tinha sobrado a Y... onde
permanecia o acervo fabuloso de todas as outras. Nas tardes de domingo eu e o
meu filho, que tinha sete anos então, passávamos a tarde garimpando livros,
brincando com os gatos e tomando mate com o Jorge e a Marta que nos
apresentavam editoras e autores imprescindíveis. Nosso primeiro gato veio dali,
o Preto, o nosso gato mendocino. Trouxe verdadeiras relíquias daquele lugar que
não existe mais. Voltamos a Mendoza dez anos depois para visitar os amigos e o
lugar vendia geladeiras, fogões e eletrodomésticos.
Tudo isto lembro agora
secando as lágrimas com os dedos cheios de pó, espirrando na hora da escolha.
Não consegui me desfazer das feministas clássicas, que domaram o meu espírito
rebelde, prossigo então com a Alexandra Kollontai, Rosa Luxemburgo, Simone de Beauvoir
e outras que não interessam a mais ninguém, e as brasileiras, Carmen da Silva,
Heliete
Saffioti, Heloneida Studart, Danda Prado, e outras tão caras a minha geração. Minha vida de menina, da Helena Morley também
vai. Tudo o que veio da fronteira comigo, permanece, os latino-americanos da
Editora Losada comprados na Casa América, Lorca e Miguel Hernández que me
iluminam sempre.
Olho para os que
permanecem e vejo que alguma coisa em mim não muda e se perpetua a cada vez que
os mesmos livros são embalados outra vez. Não só as feministas clássicas, as contemporâneas,
que me ensinaram a pensar e a olhar o mundo sob outro ponto de vista, o das
mulheres. Não posso prosseguir sem elas, as espanholas, as italianas, as
mexicanas, as francesas, as americanas, as inglesas, Marcela Lagarde, Michelle
Perrot, Elaine Showalter, Luisa Pousada, Helene Cisoux, Adrienne Rich Sandra
Gubar, e tantas outras. Ironicamente encontro Medo aos cinquenta da irreverente e maravilhosa Erica Jong que
antes me salvou das minhas ilusões aos 20 anos com Medo de voar. Não, não vou sem elas a lugar algum. E nem sem a
Lísia Pessin e a Virginia Wolf, Adélia Prado, Alfonsina Storni, Rosario Castellanos,
Clarice Lispector, Lila Ripoll ou a Cecilia Meireles.
Se um cavalheiro me
pedisse, gentilmente em casamento hoje, e fossemos tratar do dote eu não teria
como enganá-lo e lhe mostraria os meus tesouros: a obra completa da karen
Blixen, a obra completa da Peri-Rossi, a obra completa da Carmen Martín Gaite,
os diários da Anaïs Nin que sempre modulam com delicadeza a minha alma
assombrada. Cassandra Rios, Adelaide Carraro, Alicia Steimberg e Elfriede
Jelinek.
É o que temos, senhor,
eu diria, a obra completa destas damas, três gatos. E era isto. Ele desistiria,
estou certa, diante de um dote tão miserável, e ficaríamos amigos, quem sabe.
Deixei as gramáticas de
língua espanhola para trás, as de língua portuguesa também, e muitos
dicionários, há muito que não sou mais professora de línguas e literaturas e
esta parte foi triste, confesso.
Outros temas se
incorporaram nos últimos anos, temas sobre direitos humanos e mulheres,
mulheres que lutam pela paz no mundo, sobre conflitos e sobre feminismo
pacifista. Os livros da infância e da adolescência do meu filho também vão
ficar, e os de um doutorado em literatura comparada nunca concluído também não
me acompanham mais.
Mas nem morta eu me
desfaço do Sergio Faraco, do Simões Lopes Neto, do Erico Verissimo, do Julián Murguía,
do Acevedo Díaz, do Mario Arregui, do Felisberto Hernández, Borges, da Juana de
Ibarbourou, da Delmira Agustini que desenharam a alma da paisagem da fronteira
que é o meu lugar no mundo.
Chorei toda a tarde
embalando os livros, as latino-americanas que eu amo, minhas mestras, Elena Poniatowska,
Griselda Gambaro, Diamela Eltit, Alejandra Pizarnik. Os
das cartas de amor, os gregos, as cartas de amigos, os mitos, os livros dos
arcanos e os tarôs, os dos planetas, os de receitas, os atlas, a Dona Benta ainda
vai comigo, mas desta vez consegui liberar o Dr. De Lamare.
Cinquenta anos e não
sou uma mulher só. Aos cinquenta anos sou uma mulher simples, que vai morar num
loft pequeno cheio de livros e três
gatos. Levo, La enciclopedia de las cosas que nunca
existieron do Michael Page y Robert e do Ingpen Lee, que amo tanto.
Aos cinquenta anos sou,
pois, uma mulher de palavras, das que leio e das que escrevo. E continuo
perseguindo as palavras com a mesma obsessão e curiosidade de quando era uma
menina e perguntava o significado delas à minha mãe. E ela sempre sabia
responder. Treliça. Salamandra. Aleluia. Monjolo. Cometa. Benjoim. Minuano.
Castiçal. Manjedoura. Entranhas.
Aos cinquenta anos
acordo no meio da noite em ânsias, tomada de uma angústia inexplicável, suando,
acendo a luz e abro um livro ao acaso, os Cuentos
de amor, de locura y de muerte do Horacio Quiroga com a dedicatória: Jamás te olvidaré, te amaré siempre, em beso,
Germán, Rivera, 1975. Não sei quem é, mas não estou mais só e então volto a
respirar com calma, amparada agora pelo Quiroga e louca de saudades deste
Germán que, graças aos céus, em algum lugar do mundo, ainda me ama.
Aos cinquenta anos sou
exatamente o que sonhei ser quando era uma menina: uma mulher de palavras.
Seco as lágrimas, tomo
um banho, prendo o cabelo molhado, a cara limpa, sem maquiagem e antes de
dormir olho a pilha dos livros que ficam e dos que vão embora. Mudei muito pouco
em tanto tempo. E passou muito rápido.
Na pilha dos livros que
ficam o que sempre me inspirou: as mulheres, as mulheres escritoras, as
furiosas, as loucas e as irreverentes, algumas delicadas, as romancistas, as
que brigam contra as injustiças, as poetas, as senhoras das palavras.
E na mesma pilha o
esboço daquilo que tenho sido, lapidado: uma leitora, uma aprendiz de escritora,
uma senhora cheia de rugas, del sur,
do Prata, perdida no mundo, andarilha, com algumas convicções por demais
arraigadas, forjadas a fogo lento, uma senhora de cabelos brancos e com o
coração ancorado no pampa.
7 comentários:
Lindo, tocante, cheio de risos e lágrimas..., como tudo que escreves.Completar 50 anos é uma experiência, digamos... intensa.
Feliz Aniversário!
Belo texto.
Eu também vivo me mudando. É um saco. Principalmente para quem carrega o peso das palavras. Desejo-lhe sorte em sua nova morada, e feliz aniversário.
Beijos.
Parabéns atrasado minha amada! Que este meio século seja apenas a metade da sua jornada escriba, que os livros continuem a lhe acompanhar aonde quer que você vá e que os seus, escritos a punho, continuem a se multiplicar.
xxxx
Nick
É um grande privilégio ler-te. Pra mim tu és o Messi das palavras! Feliz aniversário! Também não estava por aqui, e sem máquina no mato, na data.
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