domingo, 29 de novembro de 2015



A peixa e a sereia, por Lélia Almeida.

Minha mãe, que é gaúcha, foi morar no Rio de Janeiro, menina ainda, com a família, e voltou aos 18 anos para o sul. Foi com ela que aprendi a nadar e a respeitar o mar. Nos veraneios nas praias do Uruguai quando eu era pequena tínhamos um ritual secreto, depois que todos dormiam na casa, em noites de lua clara íamos nadar juntas. Ela recomendava que não fossemos muito longe porque eu não imaginava os bichos que podiam vir à beira-mar de noite, mas mesmo assim íamos. Eu fascinada com a brincadeira e com os tais perigos insondáveis e sempre sabendo que se ela estivesse por perto tudo ia ficar bem.
Ontem fiz o ritual sozinha, numa noite nublada e de muito vento, conduzida pelo triângulo de águas desenhado no meu mapa de nascimento. O mar estava calmo e a água morna. Antes de molhar os pés fiquei olhando encantada a força e a velocidade do vento sobre a areia que parecia mostrar, graficamente, como acontece nos filmes que indicam que na velocidade das imagens, uma radical mudança do tempo. A virada de um tempo interno e misterioso. Uma mudança inexorável, inadiável e soube assim que o pior já havia passado. Molhei os pés e ali mesmo, na solidão da noite, tirei a roupa e deixei os óculos e as sandálias juntos segurando o vestido.
A praia estava vazia e entrei no mar nua, lembrando aqueles tempos, firme e segura, sem a minha sereia por perto. Era uma noite esplendorosa e mergulhei sem medo nas águas agradecendo aquela pequena bênção nestes tempos de tantas dores e de tantas mortes. E pude ouvir as nossas risadas de outros tempos ressoando fortes com o barulho das ondas. Agradeci imensamente às águas pela capacidade de improviso nos tempos tristes, de maleabilidade e acolhimento, sua força perseverante e irredutível. Olhei para o céu imenso e abri os braços em gratidão profunda, sem conseguir parar de sorrir. E fiquei muito tempo dentro d’água numa espécie de batismo primordial, renascida. Um ponto de mutação.
Quando voltei à praia só encontrei as sandálias e o vestido, e os meus óculos não estavam mais. Não pude deixar de pensar com graça e ironia que às vezes é preciso aprender a ver as coisas de outra maneira ou, simplesmente, livrar-se dos óculos das ilusões perigosas, estas mesmas que nos espreitam como tubarões, arraias e outros na beira da vida.

No dia seguinte pela manhã parti da praia mágica cheia de gaivotas. Não olhei pra trás e estava pronta para nadar em outras águas. Fortalecida, dona e senhora de mim, as dores e as lágrimas vencidas diluídas agora no vasto mar, segura pela mão firme de uma mãe primeva que agora me habita finalmente.

Um comentário:

João Luiz Pereira Tavares disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.