sábado, 19 de maio de 2007

50 ML DE CABOCHARD

(ou da invisibilidade do trabalho feminino)

Enquanto penso no que escrever sobre o trabalho feminino, a campainha toca e invade eufórica o meu apartamento uma amiga. Esfuziante me conta que comprou, depois de muita dúvida, um frasco de 50 ml de Cabochard, o preço, o prazer secreto, condições de pagamento, etc. "Comprei, comprei sim, com este perfume eu esqueço o cheiro do ajax, da kiboa, do talco Johnson, da galinha frita, do pinho sol, me transformo noutra mulher, numa mulher de verdade, bela, livre, feliz..." Rimos muito as duas, o cheiro do perfume no ar 50 ml de Cabochard.
Não posso deixar de pensar na complicada relação que as mulheres estabelecem, no mais das vezes, com o trabalho e com a remunereção deste trabalho. Os pobres tostões dados às mulheres, aqueles que eram, histórica e tradicionalmente para os "alfinetes". Alijadas das trocas reais e importantes do mercado de trabalho, das verdadeiras e poderosas trocas do mundo da oficialidade, o manuseio do dinheiro pelas mulheres criou mitos e estereótipos. Ou somos gastadeiras contumazes ou somos desorganizadas. A administração do dinheiro, como do resto todo, só será exitosa através das mãos masculinas. Mãos mais do que habituadas com trocas e valores, com a produção. Poderíamos pensar no clichê usual, corriqueiro, de que nem sempre as mulheres trabalharam , de que trabalhar era coisa de homem. Sempre me pergunto, ao ouvir esta máxima, que tempo foi este quando as mulheres não trabalhavam? Onde estavam as mulheres, o que faziam? Eu que venho de uma família de mulheres que sempre trabalhou, e "fora" de casa, ainda não sei que tempo é este. Inúmeras mulheres não trabalham fora de casa ainda hoje, assim como um contingente enorme de mulheres sempre trabalhou, desde sempre, mundo afora. O trabalho parece ser inerente a este corpo, a esta biologia maldita que nos faz obrar sem descanso noite e dia, vida inteira e que ainda nos faz ouvir que estamos em casa, sem fazer nada, atiradas, relaxadas, com as crianças.
Busco então dentro de mim mesma sensações, memórias, ecos, vozes e recordações das histórias das mulheres e sua relação com o trabalho. Penso na minha avó materna que trabalhava numa repartição pública o dia todo e passava as noites bordando para sustentar a casa, um casal de filhos e minha bisavó, que ficava com as crianças para que ela pudesse trabalhar. A noite era o momento de arrumar a casa, organizar as roupas e refeições para o dia seguinte. Penso também na minha avó paterna, jovem viúva de cinco filhos homens, pequenos, costurando e cozinhando para fora num dia onde se somavam muito mais de 24 horas de trabalho ininterrupto e outras horas de solidão e cansaço. Penso também em minha mãe, professora, costureira, cozinheira, hábil em mil e uma utilidades e afazeres que constroem a existência mais comum e mais vital das pessoas num trabalho que magicamente não aparece e que, por isso, não existe.
E, mesmo antes de pensar na divisão deste espaço - o dentro e o fora de casa - e o trabalho, fico sentindo nesta viagem das lembranças, o cheiro do corpo e do calor destas mulheres, o cheiro das linhas e fazendas, dos doces de frutas da época, das roupas engomadas, as lãs, as comidas, e o bater contínuo da máquina de costura ou da máquina de escrever de minha mãe, a professora, alternadamente durante as noites. Foram todas mulheres sós na maior parte de suas vidas, os maridos ausentes, e a casa se transformava, assim, em seus reinos absolutos.
Essas algumas das impressões da menina que eu era. A impressão forte de que aquelas mulheres e suas tarefas ininterruptas, constantes, permanentes, eram o que garantia a minha vida, a alegria e a sobrevivência. É a impressão de que o trabalho doméstico, ou o trabalho realizado dentro de casa (bordar ou preparar aulas, por exemplo), é um trabalho inseparável do corpo feminino. Se a casa é o espaço da gestação, do nascimento, da amamentação, do crescimento e socialização das crianças, e se quem assegura a existência deste mundo é uma mulher, é natural que o cheiro de casa nos evoque sempre um cheiro materno das mães e de todas as mulheres que nos cuidaram e nos atenderam. No entanto, se este "trabalho" feito em casa, no ambiente doméstico, parece fazer parte "intrinsecamente" da vida das mulheres: amar os filhos, cuidá-los, alimentá-los, vesti-los, tal trabalho é comumente desconsiderado como tal e passa a ser visto como obrigatoriedade, dever e naturalidade de um modo-feminino-de-ser idealizado. Em nome do amor materno e sua "corporalidade" doméstica, a mulher faz algumas tarefas que, historicamente, a consagram como a rainha do lar. Onilza Braga, dona-de-casa, lista com maestria algumas destas tarefas: acordar nos horários convenientes a cada um, ajudar a calçar, vestir e pentear os menores, preparar merendas e arrumar merendeiras, conferir o material escolar de todos, conferir as contas a pagar, forrar a cama de todos, separar as roupas sujas, juntar o lixo, colocar as roupas de molho no sabão, arrumar a casa, recolher e repor os objetos nos lugares certos, limpar cinzeiros, varrer a casa, passar pano úmido, aspirador, enceradeira, tirar o pó dos móveis, retirar a mesa do desjejum, lavar, guardar tudo, levar as crianças à escola, comparecer às reuniões escolares, buscar as crianças, lavar as roupas que estavam de molho, sair para fazer compras, preparar o almoço, preparar sobremesas, lavar e encher o filtro, encher as garrafas de água, dar banho nas crianças, recolher as toalhas de banho e pôr no varal, colocar papel higiênico no banheiro, recolher as roupas que secaram, pôr a mesa para o almoço, guardar as mochilas e uniformes das crianças, entregar a todos as roupas que usarão à tarde, servir o almoço, tirar a mesa, decidir o que fazer com as sobras, lavar tudo, enxugar, guardar, repor a toalha da mesa e os enfeites, passar a roupa, guardar tudo nos armários de todos, consertar roupas, pregar botões, remendar meias, sair para fazer pagamentos bancários, lavar os tênis, levar as crianças à praça ou ao clube e aulas particulares, cortar as unhas de todos, ajudar nas pesquisas e tarefas escolares, organizar a roupa para o dia seguinte, lavar o banheiro, enxugar o banheiro cada vez que alguém molha de novo, cuidar dos animais domésticos, fazer e servir o lanche da tarde, tirar a mesa, lavar, enxugar, guardar tudo de novo, iniciar o jantar, fazer o bolo e biscoitos, fazer a lista de compras, ir ao mercado, cuidar ininterruptamente do bebê, lavar e passar umas quarenta fraldas por dia, preparar mamadeiras e chás diversas vezes, dar os remédios na hora certa, preparar dietas especiais para os que estiverem doentes, entregar toalhas e roupas de quem vai ao banho, lavar vidraças, lavar lustres, lavar tapetes e cortinas, atender à campainha, acompanhar todos à porta, preparar os temperos, cuidar dos machucados, fazer curativos, manter o clima e o bom-humor familiar, cortar a grama e manter o jardim limpo, cuidar das plantas, lavar as escadas, varrer a calçada, lavar a geladeira, armários, fogão, tirar as teias de aranha, polir as panelas, dar faxina semanal, aproveitar a roupa dos maiores para os menores, costurar para a família, atender a todos a qualquer momento, passar o pano úmido no chão da cozinha, preparar o jantar e servir, preparar as mamadeiras da noite, fazer tira-gostos se ele for ver algum filme na TV, conferir se tudo, de todos, está pronto para o dia seguinte, tomar seu banho se tiver chance, ninar os menores, contar histórias, esperar dormir, arrumar a cama de todos à noite, ligar inseticidas nos quartos, fechar janelas e portões, acordar vária vezes de madrugada para atender ou cobrir as crianças, dar plantões noturnos, sempre que necessário, estar a serviço 24 horas por dia, satisfazer sexualmente o marido, com muita garra, embora o que você mais deseja seja desmaiar de cansaço. (Braga, 1992).
É a isso que se chama ficar sem fazer nada.
O trabalho doméstico tem seu curso na vida familiar e é por isto que ele é desconsiderado e destituído de valor. Cuidar da casa, dos filhos, da distribuição das comidas e afetos é obrigação e dever das mulheres. Trabalhar incansável e ininterruptamente na manutenção da casa não é considerado um trabalho, mas um dom, uma vocação, um modo-feminino-de-ser. Criar filhos, cuidá-los, vesti-los, alimentá-los não são produtos de um trabalho porque estas tarefas não são mensuráveis e, portanto, estão destituídas de valor. Um filho não é o produto de um trabalho: ele vai embora, cresce, é impossível medir, mensurar em resultados o seu valor. E vem daí a idéia de que cumprir por 50 anos tais tarefas, entre outras, é não estar fazendo nada e ser apenas uma mulher do lar.
Imbuídas dessa mentalidade, de que sua força de trabalho, de produção, não vale nada, não tem valor, a mulher sai de casa para trabalhar e tem aí inúmeras dificuldades que vão desde conseguir um emprego a definir questões salariais, o seu preço. A mulher que usualmente cumpre mais horas de trabalho que os homens e que ganha invariavelmente menos que eles (e que é a mesma que depois do trabalho vai cumprir com as tais tarefas de rainha do lar) não sabe dizer o quanto vale o seu trabalho. Porque a história das mulheres com dinheiro, ou com a falta dele, o que é mais comum, passa por uma pergunta muito angustiante e muito complicada: a de quanto vale uma mulher.
E socialmente valemos pouco, muito pouco; somos enaltecidas como mães e donas de casa e é paradoxalmente por ser feito por mulheres que este trabalho tem sido absolutamente desvalorizado, diminuído.
Mas sair às ruas, produzir um trabalho mensurável e passível de ser avaliado e valorizado, tem-nos colocado em contato e troca com inúmeras mulheres e suas vozes. Vozes que contam de seus sonhos e seus desejos. Esses, que estão muito além da simples rotina doméstica e de um trabalho extenuante. Sonhos e desejos que nos despertam sensações, possibilidades novas e que falam em identidade, realização, auto-estima, prazer, alegria, respeito, coletividade, cidadania. Talvez a minha amiga, a dos 50 ml de Cabochard, pense em identidade, autonomia, liberdade, de ir e vir com seus tostões e sua vida mesma. O que eu valho e o quanto vale o meu perfume. Nossos sonhos, enfim.
O trabalho realizado fora do âmbito doméstico nos torna mais conscientes e esclarecidas da importância do trabalho que invariavelmente realizamos no mundo da nossa casa (Porque, afinal, alguém tem que tomar conta destas crianças!). Sua importância vital, que é o trabalho dos cuidados essenciais. Trabalho que tem nos tornado um contingente de mão-de-obra especializada, eficientíssimo e caro, extremamente caro aos corações.
As mulheres competentes que foram minhas avós, minha mãe, todas nós trabalhadoras, sabemos desta competência que não tem preço e que ainda não tem uma história.

Lélia Almeida

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