sábado, 19 de maio de 2007


Criadas para subalternas:

Lélia Almeida

Uma das obra-primas da minha prendada mãe, foi a idealização, concepção e realização, por suas habilidosas mãos, do projeto do meu quarto de menina. Uma cama laqueada com um acabamento floral na cabeceira, colcha, babados e almofadas de cetim em suaves tons rosa-chá combinando com as cortinas e o tapete. E, o objeto predileto de seu projeto, uma penteadeira com um espelho tríptico de folhas ovaladas. A parte principal da penteadeira era uma mesa pequena, vestida com saias de tule e tecidos vaporosos em elegante caimento. Na verdade, uma mesa vestida como uma menina, o espelho soberano e os objetos de uma penteadeira de meninas.
Repeti seu sonho com fidelidade e sem nenhuma originalidade. Criei para mim mesma, uma penteadeira, na minha vida de mulher adulta. Uma penteadeira sem tules ou róseos e românticos tons, mas com objetos parecidos aos de então, e que, parecem ter de perpetuar, desta maneira, algumas ilusões ou alguns sonhos absurdos que constituem uma curiosa bagagem feminina, herdada em linhagem certa, pela longa estirpe da qual eu e minha mãe damos testemunho.
Os lenços de seda da minha mãe, que se estendiam no seu recôndito quarto de vestir, e que era um país à parte na minha infância.
Seus sapatos altos que me elevavam pra perto dela, na parecença, na semelhança, na vontade de ser igual e também de ser diferente, mais parecida comigo mesma, talvez. Os lenços de seda, ora transformados em sarongues, em xales, ora em trajes orientais de distantes e glamurosas Cleópatras, distantes rainhas perdidas no inóspito deserto. Tendas ciganas montadas com lençóis de coloridos padrões, perfumes, brincos e colares, o corpo semi-vestido as vezes, seminu outras vezes, os cabelos soltos, despenteados em tiaras e colares que serviam de adereços múltiplos, lenços que faziam às vezes de turbantes e chapéus, tecidos vaporosos e a promessa de desvelo de uma feminilidade prometida. O véu e o espelho, a brincadeira feminina de mostrar e esconder, de deixar-se entrever, de jamais mostrar-se.
As meninas que brincam de descobrir o que é ser uma mulher. Brincam de descobrir a herança trazida nas também sonhadoras mãos das mães e irmãs mais velhas, avós, tias, mulheres outras, tradutoras de um mundo de rituais e etiquetas para as meninas em flor.
A penteadeira da minha mãe. O cheiro de seus perfumes misturados com seus batons, suas pinturas, seus esmaltes, seus lenços bordados, lingeries, adereços, cremes, talcos. E aquela gaveta mágica que se abria sempre no mesmo horário do meu dia, pela manhã, quando minha mãe recém saída dos vapores do seu banho, com uma toalha enrolada nos cabelos, ainda fresca, abria a imensa gaveta de sua penteadeira, esfregando suas mãos em óleo de amêndoas, enrolada em sua saída de cama, termo este também dela, e que se misturava aos seus objetos pessoais. Ela me olhava, sua ansiosa e infalível espectadora e, como quem inicia um rito, anunciava: “vou fazer a minha cara”.
Como uma legítima atriz na frente do seu espelho iluminado, construindo sua máscara para compor sua persona, todos os dias de uma vida, durante anos, vendo seu rosto, por detrás da máscara, passar pelos anos e pelo tempo, minha mãe sentou-se na frente do espelho. Incansável protagonista de um espetáculo que repetia no mesmo teatro, por anos, o cumprimento de uma rotina doméstica e familiar em que cuidar dos outros, da sobrevivência dos outros era o argumento central da peça e da história. O ritual repetido mil vezes, cristalizando o significado do espetáculo, da trama, da história, o de envelhecer bela, o de não envelhecer, se possível, o de envelhecer o mínimo possível, o de não aceitar a morte, o de negar a morte, que é um pouco como negar a vida. O de estar sempre a postos, jovem, bela e forte, pra cuidar do próximo.
Os passos do ritual encenados como numa liturgia: abrir a gaveta, retirar e ordenar os cremes faciais, a base, antes experimentada em mistura no dorso da mão, as sombras, os batons, todas as cores, do lilases aos bordôs, dos bordôs aos vermelhos, os terras e os marrons, os glosses, os brilhantes, os transparentes. Os pincéis de lábios, os do delineador, do preto, do verde, do marinho. Rímel, cortador de cutícula, lixa, pinça, tesoura e tesourinhas de vários tamanhos para cabelos-pêlos, pontas mal-criadas e brancos inconvenientes. Delineadores líquidos, lápises de diferentes cores, as sombras, as brilhantes e as opacas, o pó facial. O secador de cabelos, as escovas e os pentes.
Os cremes e os adstringentes. Os cremes para dormir, para acordar, para nutrir a pele velha, a alma enrugada, alimentar de ilusões o desejo de uma idade e frescor que não voltam mais. Cremes e loções que se complementam, tratamentos inteiros em que todos os inúmeros e diversos itens são absolutamente imprescindíveis para o êxito e para a melhora das imperfeições femininas.
Os cremes nutritivos, o fixador, o gel, o laquê, o creme das mãos, os cremes para os trinta, para os quarenta, para os cinqüenta, cada vez mais complexos, sofisticados, caros, compostos, em diferentes fases e cores, desafiando Cronos, o senhor dos tempos, que tenta desfazer, impiedoso, a máscara, comprometê-la, descobrir-lhe os truques, mostrar-lhe a face oculta.
No espelho da penteadeira da minha mãe, que depois de pronta, mascarada e vestida, acionava a máquina do dia e das nossas vidas, restava minha imagem diminuta e ainda sonolenta, cheia de preguiça. O reino dos seus batons e perfumes era agora, um pouco meu. Olho-me no seu espelho. Espelho, espelho meu, o que eu quero ser quando eu crescer?
Com os óculos de grau da minha mãe, serei uma eficiente secretária, para cuidar do chefe, importante empresário que não pode sobreviver sem minha prontidão e cuidados. Ou serei uma professora, para poder cuidar, como uma segunda mãe, das crianças de outras mães e perpetuar assim, uma ética do cuidado e do sacrifício, muito feminina também, de cuidar de outrem, sempre e para sempre, quase sem ter tempo ou espaço pra cuidar de mim mesma. Com seus enormes óculos de sombra serei uma atriz, neurótica com minha aparência, e terei de ser sempre jovem e esguia, de dentes perfeitos e peitos duros, e numa performance perfeita terei de perpetuar uma imagem sempre igual, de juventude e saúde impecáveis. Com os inúmeros adereços e perfumes da cosmética da sedução e do amor, garantirei o amor de todos os homens, ou de qualquer um, que seja, contanto que me amem, me desejem e não me deixem. Que não me deixem jamais, por favor, que em tempo algum me deixem a sós a escutar os ruídos da minha fome de mim, da minha fome do meu amor por mim.

Nada dos adereços dispostos na penteadeira da minha mãe me incitam ou convidam a brincar de ser uma mulher inteligente, de querer brincar de ser astronauta ou de ser a dona da empresa em que só me posso ver como secretária. Nada me convida a sonhar em ser uma qualificada física nuclear, a não desejar ter filhos ou marido, ou tê-los a mão cheia, nada me convida a poder fazer escolhas descabidas, insólitas. Ou simplesmente a ser feliz comigo, a gostar da imagem de mim mesma no espelho, a gostar da minha vida que passa como um rio, um mar, um córrego e que me leva para um caminho que tem um fim, um fim natural e certo como o das águas imperturbáveis.
A minha penteadeira se parece a da minha mãe. Reflete no seu espelho os sintomas que falam das imperfeições do corpo feminino. A imprecisão dos hormônios, por exemplo: tratamentos para impedir ou retardar a maternidade, a hora de ser mãe é sempre inadequada, é a mesma hora de render ao máximo profissionalmente, aprimorar-se, produzir, crescer, investir, crescer. O relógio biológico é absurdo, contraditório, trabalha, quase sempre, contra as mulheres: a hora biológica de ter filhos é também a hora social das promoções profissionais, dos estudos, dos melhores empregos, dos mestrados ou doutorados.
Mais hormônios: para recuperar as células-mães, recuperar o tempo perdido (perdido de quem? Perdido por quê? Perdido para quem?). Recuperar a hora e a vez de um tempo para procriar, reverter este tempo, rapidamente – mais remédios e hormônios para as imperfeições do corpo feminino, da frágil casa das pobres mulheres.
Na minha penteadeira, além da herança materna e de uma cosmética cada vez mais aprimorada, há mais e mais: anti-depressivos, ansiolíticos, soníferos, reguladores do humor ou do apetite, toda sorte de psicofármacos, representantes únicos de uma cultura do mal-estar feminino, do mal-estar das mulheres. O corpo feminino parece ser sempre imperfeito: envelhece quando deveria permanecer para sempre jovem e saltitante, quer se aprimorar profissionalmente na hora de parir, quer parir quando seus óvulos querem descansar. O corpo feminino parece ser cheio de imperfeições, imperfeições que nos tiram a alegria, nos impedem a espontaneidade de ser o que somos, com nossas vontades e fomes, como nossas mortes e perdas, com nosso direito de sermos cidadãs de primeira classe.
No espelho da penteadeira que herdei da penteadeira da minha mãe, olho minha própria imagem e vejo uma figura confusa, uma imagem embaçada. Fomos criadas para ser cidadãs subalternas, me ocorre, exiladas da nossa própria casa, em corpos cheios de defeitos, com almas atrapalhadas, somos mulheres que se impõem exigências absurdas de serem cumpridas. Exigências que nos levam para longe de nós mesmas, das nossas mães e filhas, das nossas amigas, das nossas iguais, num movimento que repete, de forma circular, rituais permanentes de eternas frustrações.
Somos mulheres que não admiramos, verdadeiramente, a imagem do espelho. A imagem primeira que olhamos no espelho é fundamental para a construção da nossa identidade, nossa subjetividade, nossa vontade de ser. E, diferentemente das nossas seguras e imbatíveis mães, que cresceram num mundo de muito menos exigências para com as mulheres, não sabemos qual a máscara que devemos compor para as personas que devemos interpretar.
Nós somos as que fomos criadas para ser cidadãs subalternas, subalternas ao olhar soberano de um outro, de um outro que quase sempre nos olha de cima, nunca do lado ou de frente, que nos olha de um lugar distante e, que nos convoca a sermos o que se espera de nós e que é, quase sempre, muito diferente do que, secretamente somos e desejamos ser.
Como medusas implacáveis, nós, as criadas para cidadãs subalternas, olhamos no espelho uma imagem cristalizada que tem mostrado muito mais da nossa tristeza do que da nossa esperança.

Um comentário:

lenaschoepf disse...

Lélia é sempre extraordinária com suas palavras.