sábado, 19 de maio de 2007

A história de Piu Tchi e Tchi Piu

Os ruídos ensurdecedores das hordas maoístas se aproximavam cada vez mais dos santuários tibetanos. Os nobres monges, criados entre a elevação espiritual e a ingenuidade das crianças felizes, estavam amendrontados. Não sabiam o que sentiam, eles, acostumados com os nobres sentimentos e o riso solto, misturado à disciplina e bem-aventurança. O medo instalara-se nos santuários que pregavam a paz, a verdade e o infinito amor por tudo o que vive e morre.

Os bárbaros chegaram pisoteando, com seus passos firmes e devastadores, as belas mandalas de pétalas de flores construídas pelos monges, herança de uma sabedoria própria e milenar.

Dois monges, recém entrados nos mistérios e inquietudes da adolescência, Piu Tchi e Tchi Piu fugiram em desabalada carreira pelas implacáveis montanhas, para poderem assim, preservar os ensinamentos da casa de Buda e salvar a própria pele e espíritos, é claro. Um vestia um manto cinza, outro um manto preto, eram iguais, formando duas metades de uma unidade, irmãos, companheiros inseparáveis. Trouxeram pulgas ao longo dos caminhos, inevitavelmente.

Transformaram-se, na poética lógica budista, da transmutação dos corpos em outros corpos e dos espíritos em muitos mais, em dois gatos siameses misturados com temperado gene vira-lata. Aprendizes e mestres da mais sofisticada tradição zen, espalham-se, hoje, em confortáveis tapetes e coloridos edredons, comem frugalmente e brincam como dois meninos contentes. Brigam, eventualmente, sem descartar de um todo suas origens felinas, esquecidas pelo conforto de um pequeno apartamento cheio de livros e poucas plantas.

Mudaram seus nomes, ocidentalizaram-se por precaução, depois de salvos do perigo dos fanáticos predadores. Piu Tchi chama-se hoje, Yoda, codinome Yoyogrey, Príncipe das cinzas, Iago, Gisele Bünchen, Bênção peluda ou Devoto de Santa Lélia. Tchi Piu chama-se Ulisses, codinome Uliboy, Príncipe das trevas, Otelo, Naomi Campbell, Pedacinho de Deus com pêlos, Desbravador dos sete mares, Neguinho da beija-flor ou Bolinha de ébano.

Vivem em paz num pacato lar do ocidente, numa cidade pequena e cheia de flores, alimentando os espíritos mais sábios, aconchegados e esparramados com a elegância e preguiça que só os que meditam e ronronam sabem, dignamente, ter.

Lélia Almeida (2002)


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