sábado, 19 de maio de 2007

O corpo dilacerado de Isolina Canuti:

Dacia Maraini, a famosa escritora e feminista italiana resolve contar a história de Isolina, uma moça pobre e desconhecida, uma italiana anônima. Entre elas, transcorre um período de tempo de quase um século. Um século que faz alguma diferença na vida das mulheres, não toda a diferença que se deseja, mas alguma, sim.

Este testemunho de algumas mulheres, que resgatam a história de vida de outras mulheres, é uma das tendências mais marcantes e singulares da literatura de autoria feminina no mundo inteiro. Onde parece haver um movimento contínuo que estabelece um diálogo ininterrupto entre mulheres de diferentes gerações, diferentes etnias ou mesmo de diferentes classes sociais. Exemplos desta tendência são textos como Se me deixam falar..., onde a antropóloga Moema Viezzer relata a história de Domitila Barrios de Chungara, a trabalhadora da minas de estanho da Bolívia; ou Hasta no verte Jesús Mío, onde , a partir do depoimento de Josefina Bórquez, Elena Poniatowska dá vida à personagem popularissima de Jesusa Palancares, uma soldadera da revolução mexicana; ou quando Elizabeth Burgos-Debray dá voz ao relato de Rigoberta Menchú, em Me llamo Rigoberta Menchú y así me nació la conciencia.

Se os textos citados acima podem nos dar uma idéia do que hoje se chama, dentro da literatura latino-americana, de literatura de testemunho, também é correto considerar que todos eles tratam da história das mulheres. E da história mais comum que perpassa biografias e transcende geografias, unindo as mulheres no reconhecimento de uma experiência comum: a da violência sobre o corpo feminino. Em todos estes textos podemos evidenciar de forma mais ou menos central uma violência ancestral, quase atávica sobre o corpo feminino. Toda sorte e toda espécie de violência: doméstica, social, sexual, psíquica, etc.

E quando Dacia Maraini, em 1992, resolve contar a história de Isolina, está também dando o seu testemunho, mesmo sem a presença da protagonista, e contar esta história é uma maneira de negar o silêncio, negar a morte, negar a violência.

O livro publicado na Itália em 1992, Isolina, é traduzido ao espanhol em 1998 pela Editora Lumen de Barcelona como Isolina, la mujer descuatizada, ainda sem tradução no Brasil.

No alvorecer do século XX, em 16 de fevereiro de 1900, os restos do corpo de uma moça pobre e anônima, Isolina Canuti, são encontrados boiando nas águas revoltas do rio Adigio, em Verona. Os restos, enrolados em sacos e pedaços de roupas vão aparecendo aos poucos rio abaixo: primeiro aparecem 13 kgs de Isolina, depois outros pedaços, um ano mais tarde a cabeça, de onde pende uma trança desarrumada. Os restos são encontrados por outras mulheres, lavadeiras que labutam numa manhã fria na beira do rio.

Ao resgatar os pedaços do corpo de Isolina Canuti, Dacia Maraini vai resgatando - não sem dificuldades - os pedaços de sua breve existência e de sua morte trágica e prematura. A história é quase trivial : os Canuti, o pai e os irmãos, decidem alugar um quarto na casa da família, para um tenente por quem a moça se encanta. Aquece suas noites na fria Verona e, desta troca precária, escondida, Isolina engravida. Este o seu pecado capital, sua culpa, pela qual ela deverá ser severamente punida. O Tenente providencia a realização do aborto para proteger sua honra militar, zelar pelo seu nome, afinal, a moça era pobre, desqualificada, e não servia para ele.

O procedimento cirúrgico é um desastre do começo ao fim, atrocidades são cometidas numa improvisada mesa de cozinha onde o sangue de Isolina brota como de um manancial e seca, o corpo banhado em seu próprio sangue, em sua própria morte.

E a solução é rápida e urgente, desfazer-se do corpo, deste corpo incômodo, imenso, que ocupa lugares, sentidos, espaços desmesurados. A solução é rápida e urgente: cortar o corpo de Isolina em pedaços, enrolar os pedaços em roupas e sacos, atirá-los ao rio, indo pelo Adigio, pelo Pó até o mar.

Os poderes públicos de Verona criam um muro de silêncio ao redor do fato, do caso, do processo, sem, no entanto, conseguir escondê-lo. A indestrutível confraria masculina cria uma teia de informações que invisibiliza a história, a história do Tenente, de Isolina Canuti e de sua morte. O Tenente, é claro, está protegido.

Quase 80 anos depois, Dacia Maraini volta a Verona e tenta juntar as partes de um corpo de mulher que foi destruído, esquartejado, negado, esquecido. Retoma as páginas dos processos e da imprensa, da lembrança de alguns, dos eloqüentes silêncios de outros.

A sentença condena a uns poucos meses o Tenente e esclarece que quanto à gravidez de Isolina, não há como provar que fosse dele. E o subtexto é o de sempre: ela, certamente, provocou toda esta situação. A vítima, uma vez mais, é a culpada.

O corpo de Isolina esquartejado, morto, assassinado, sem direito à vida, à sexualidade, ao amor, à maternidade, a uma morte decente, a uma existência digna.

Mas quando Dacia Maraini conta a história de Isolina Canuti, resgata a sua vida e dignifica a sua morte. Quando Dacia Maraini junta os pedaços do corpo da pobre e anônima moça italiana, organiza o relato e dá sentido à sua dramática existência.

E quando nós, homens e mulheres de boa vontade, denunciamos a violência contra o corpo, a vida, a alma de outras mulheres, estamos dizendo que o silêncio é a morte , que a morte é o esquecimento e que nós não queremos parar de lembrar.

E que nas nossas vozes, estas mulheres permanecem vivas.

Lelia Almeida.

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