sábado, 19 de maio de 2007

Silicones, travestis, mulheres e 08 de março, de novo:

Uma das cenas mais comoventes do filme Tudo sobre minha mãe do espanhol Pedro Almodóvar é quando Agrado , a magnífica travesti do filme, sobe no palco, conta a história de sua vida e da transformação do corpo, pra dizer no final da apresentação, sob o aplauso de uma diversificada platéia que o importante nessa vida é ser autêntica, como ela, e que só se é autêntica quanto mais uma pessoa se parece com aquilo que ela sonhou. A cena é belíssima, Agrado é uma personagem encantadora que nos faz refletir do princípio ao final do filme sobre o feminino, suas representações, simulacros, nestes tempos finisseculares onde tudo o que sabíamos sobre masculino e feminino foi literalmente pro espaço. O filme trata sobre isto, sobre as mães, sobre as atrizes que interpretaram mães, sobre as mulheres, sobre as mães e seus filhos, sobre o feminino em seus diferentes matizes. Um filme absolutamente contemporâneo, misturando todos os temas que nos fascinam e amedrontam depois de tantas conquistas e desbravamentos sexuais, amorosos, sensuais, virtuais. Podemos tudo, ou pelo menos quase tudo. Agrado opta por ser travesti, fala do tempo em que colocou suas tetas, do tempo em que foi camioneiro, da raiva que sente quando tem de se misturar com as falsas drags. Ela é um travesti, um personagem autêntico, diz a que veio, e porquê.

Um domingo destes antes do carnaval um programa do Faustão apresentava a tal miss que fez dezenove plásticas para poder competir para ser miss nacional, uma outra, na verdade um mulherão, que ia sair no carnaval, esta moça, nua e com uma pintura mínima, tinha um sorriso petrificado, ao lado do seu marido, um cirurgião plástico que tinha feito todas as intervenções e que media qualquer coisa como a metade de sua obra e que aparecia de maneira tímida, frank e sua obra, meio escondido. Foi quando o Faustão chamou para juntar-se ao grupo uma antropóloga para explicar o fenômeno de tanto silicone, operações, etc., tudo acontecia num ritmo meio frenético, como é o ritmo da televisão, a tal antropóloga que fazia às vezes de uma criatura humana e normal, meio baixinha, gordinha, com os sinais vitais da idade, mal e mal pôde balbuciar que as mulheres deviam ter cuidado com a loucura das medidas, com a neurose do corpo perfeito, porque muitas vezes podiam estar cumprindo com expectativas masculinas de um corpo perfeito, longe das medidas possíveis delas, longe de si mesmas. O Faustão chamou os aplausos e enquanto aquela enorme mulher sorria seu sorriso petrificado e exibia seus cortes e matérias, terminava o programa.

Lembrei da personagem da Agrado e fiquei pensando no que será que as mulheres estão querendo se travestir, cada vez que pagam verdadeiras fortunas por silicones, cirurgias arriscadas, ou as que vivem só e apenas em função disto? A cosmética, a dietética, a moda, ditam a cada mês, a cada estação a cura de todos os males, o elixir definitivo da juventude e da felicidade, e o preço de toda esta parnafernália não é barato, custa sem exagero, o dobro, o triplo das horas preciosas de trabalho conquistadas a tanto custo na existência e biografia de uma mulher. Muito bem, mulheres, vocês querem trabalhar, competir com os homens no mercado de trabalho, pois bem venham, mas venham jovens, belas e bem-vestidas, venham com aquelas botas italianas, aquelas que custam 1000 dólares! Se é que você me entende. As meninas, filhas das senhoras da minha geração, começam a fumar entre os onze e treze anos para não sentir fome e poderem assim ficar magras e sofrem sistematicamente de distúrbios alimentares, afetivos, sexuais.

Erica Jong, a famosa feminista americana nos esclarece que ser feminista é ter autonomia de pensamento e ação, uma explicação pra mim, suficiente, inteligente e esclarecedora. Autonomia de ser e pensar, de fazer escolhas próprias, de poder duvidar que nem sempre o que nos vendem como solução e salvação é o que desejamos ou vai de fato funcionar. A propósito, lembrei de uma lenda grega, de um rei que esculpe uma estátua de mármore branco, tão perfeita e tão maravilhosa, tão na medida de seus próprios desejos, só faltava ela falar, então ela fala, atendendo o pedido do rei a Afrodite, ela fala uma fala previsível, ela fala uma fala que copia, era quase como se o rei tivesse casado consigo mesmo, era quase como se o rei estivesse casado com uma imitação... Eu quero mais do que silicones impecáveis, eu sou do tempo antigo, eu quero mais do que cicatrizes que mal se vêem, nada contra as midiáticas e fabulosas poposudas, eu sou do outro lado da rua, eu quero algo mais pra quando os meus silicones não servirem pra mais nada.

De novo, dia 08 de março, a cada ano há uma espécie de esperança no ar, parece que agora sim, houve uma mudança, há uma mudança no ar. As conquistas têm sido enormes, não tenho a menor dúvida. Difícil é mantê-las, difícil é que elas não se transformem, não apareçam travestidas em outras coisas: há tempos atrás o feminismo era considerado agressivo, pouco feminino, coisa de mulher louca que queimava sutiã em praça pública : vejam só, olhem só o que foi feito dos nossos pobres sutiãns!!

Pra todas nós, um feliz 08 de março. Uma vez mais.

Lélia Almeida

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