sábado, 19 de maio de 2007

Nutrir e amar: o que comem as mulheres?

Lélia Almeida.

Ao ser convidada para conversar com as alunas e alunos do curso de nutrição, comecei a divagar sobre o que falar, já que aparentemente os nossos universos – das letras e da saúde, parecem tão distantes. Não podia perder de vista, no entanto, o meu ponto de vista, o meu jeito de olhar o mundo, e o lugar de onde eu olho o mundo. O meu ponto de vista é o de uma escritora e de uma leitora, mas em primeiro lugar, o meu ponto de vista é feminino, feminista e o meu olhar sobre o mundo é um olhar de mulher que observa fundamentalmente o mundo e a vida das mulheres.
É esta a experiência que eu gostaria de compartilhar com vocês esta noite, a de uma mulher que estuda mulheres, que escreve sobre mulheres e que escreve sobre mulheres que também escrevem sobre mulheres. Esta é uma escolha de vida, esta é a escolha de um trabalho, esta é a escolha de um objeto de estudo e de uma teoria.
Também o tema da nutrição, associado ao corpo feminino de forma tão intrínseca, quase indissolúvel, me pareceu um tema que poderia ser abordado desde esta perspectiva, a dos estudos das mulheres e, mais especificamente, do que se convencionou chamar nos últimos anos, de estudos de gênero.
O Movimento Feminista, tal como o conhecemos hoje, ou o Movimento das Mulheres, como queiram chamá-lo, aparece de forma mais objetiva nos anos 60 e 70 do século passado, com o surgimento de outros movimentos sociais importantes, como o movimento negro, o movimento gay, o movimento pelos direitos humanos. Data desta época também, dos explosivos anos 60 e 70, o início de uma sistematização mais eficaz em torno de um conceito que será central nos estudos sobre as mulheres. O conceito de gênero, que será para sempre associado aos estudos feministas, e que quer simplesmente significar que muitas das atribuições relativas ao masculino ou ao feminino, na nossa história, são atribuições culturais e não, como se pensava até então, naturalidades da biologia. Assim, o conceito de gênero pôde nos esclarecer que muitas características que eram tidas como femininas e masculinas até então, passaram a ser consideradas como construções culturais sobre o masculino e feminino, criando-se assim, possibilidades para os questionamentos sobre o imenso caos em que nos encontramos na atualidade, onde os papéis sexuais se encontram em franco questionamento. Ser homem e ser mulher não é mais a mesma coisa que era ser homem e ser mulher há 50 anos atrás ou há 20 anos atrás.
Os estudos de gênero, realizados em diferentes áreas do conhecimento, permitiram que verdades inamomíveis fossem desfeitas. Acreditamos durante séculos que, por exemplo, bastava que nascêssemos mulher para que fôssemos mãe, já que a biologia e nosso aparelho reprodutor assim nos exigiam. E, que se éramos mães, também por essência e natureza, seríamos boas cuidadoras, e que se fôssemos boas cuidadoras, nossos filhos se sairiam bem, e se eles saíssem bem, teríamos cumprido não só nossa missão como mães, mas como mulheres, já que dentro desta lógica, ser uma boa mãe era ser uma mulher de verdade e ser uma boa mãe era ser essencialmente feminina.
Os estudos de gênero, que se sistematizam a partir de práticas dos movimentos de mulheres, não podiam ignorar as demandas e histórias de vida das mulheres da vida real, e que quase sempre estavam longe das representações da norma patriarcal que ditava como as mulheres deveriam ou não ser. O movimento de mulheres junta, então, as vozes das mulheres que não querem mais se deixar aprisionar por falsas imagens cristalizadas, calcificadas e que permanecem até hoje em nosso imaginário e passam, a seguir, a reinvindicar algumas questões.
Uma das discussões mais cruciais, até hoje para o movimento de mulheres, por exemplo, é a discussão sobre o aborto que, seja ela feita de que ponto de vista for, essa discussão sempre está em pauta. E está em pauta também para nos lembrar que talvez a maternidade não seja uma escolha fácil e simples para as mulheres, que algumas mulheres talvez queiram outras coisas de suas vidas além da maternidade e, que talvez ainda muitas mulheres não tenham a menor vocação para a maternidade.
Temas como o amor materno, o aborto, o controle da natalidade, a anti-concepção, os direitos reprodutivos e as novas tecnologias são temas de pauta entre as mulheres há muitos anos, e só agora, muito atualmente, devido à discussão sobre fome ou explosão demográfica, é que passaram a fazer parte da pauta de discussão do mundo dos homens. Que passaram a considerar esta discussão não por amor às mulheres e consideração a seus corpos exaustos, mas porque finalmente se sentem ameaçados com a possibilidade da fome e da superpopulação. Os encontros internacionais de mulheres no México, em Pequim, Estocolmo, etc, dão exemplo desses movimentos e dessas discussões.
Essas discussões, realizadas desde um ponto de vista feminino, foram encaminhadas, num primeiro momento, pelas mulheres, cada vez que elas se reuniram para discutir timidamente sobre os seus duríssimos deveres e seus parquíssimos direitos. Direitos sobre sua sexualidade, sobre sua conjugalidade, maternidade, seus sonhos, seus sonhos mais impossíveis e suas necessidades mais inadiáveis.
Posso dizer a vocês que muitas coisas mudaram na vida das mulheres e posso dizer, da mesma maneira, que muitas coisas estão exatamente iguais a muitos séculos atrás. Quando vemos que algumas questões são tão difíceis de mudar no imaginário do senso comum ou no imaginário científico, nas verdades e mentiras relativas às mulheres, parece que os tempos de serenidade para as mulheres ficam sempre longe, muito longe. Porque os tempos atuais são de muita ansiedade para as mulheres, de uma ansiedade que se revela através de sintomas significativos.
Sim, disso se trata, tenho certeza, de tempos de serenidade, serenidade para se poder ser o que se é, para poder ser o que se pode escolher ser. E estamos, nós as mulheres muito longe destes tempos, desta serenidade desejada como uma quimera. Porque ainda temos que responder a muitas exigências, exigências sociais, familiares, exigências nossas, que nem sempre estão de acordo com os nossos sonhos mais verdadeiros.
Assim, o movimento de mulheres e a criação de um conceito de gênero contribuem na história das idéias como uma nova maneira de pensar, de pensar o mundo e a vida das pessoas, uma maneira de pensar que observa o mundo de um ponto de vista que duvida do que nos foi ensinado como uma naturalidade feminina e masculina e, que leva em consideração a condição de submissão em que viveram as mulheres durante séculos e que faz delas, nesta história, as personagens principais.
Quando penso nessa associação entre maternidade e nutrição, entre mulher e nutrição, não posso deixar de pensar, lembrar, sentir, vislumbrar algumas imagens que talvez sejam comuns à história de todos nós: o aconchego e a quentura do corpo materno.
Não lembro de quando fui amamentada por minha mãe, é claro, embora todos os meus sentidos tenham suas memórias mais misteriosas deste ritual, mas vi minha mãe amamentar a minha irmã menor e o ritual de intimidade entre elas me enchia de ciúmes e de verdadeiro fascínio. E lembro como uma das minhas melhores lembranças de quando amamentei o meu próprio filho, que, longe da experiência que dizem ser paradisíaca para todas as mulheres, foi uma experiência cheia de ansiedade, mas claramente gratificante.
Muitas mulheres sofrem com a amamentação, muitas mulheres a vivem de uma forma fácil e sem problemas e essas facilidades e dificuldades em nada as tornam melhores ou piores mães umas em relação às outras.
Mas esta é a imagem que se impõe quando penso nesta associação entre o corpo materno e a nutrição. Mesmo a mãe que não amamenta, que dá de mamar com uma mamadeira, acolhe este filhote em seus braços e de forma amável, carinhosa, o alimenta, sacia sua fome, sua fome que é real e que é também a fome desse momento, do momento da troca e do afeto. Um ritual de celebração da alegria dos sentidos se estabelece entre estas duas criaturas que estão trilhando o árduo caminho da construção de um vínculo, e, aqui, de um vínculo que será determinante para muitas coisas pelo resto da vida dos dois, não só da criança.
Um corpo aninhado em outro corpo, é o nosso lado bicho que se manifesta então, clamando, pedindo para ser, se deixar ser, numa lógica de dar ao corpo o que é do corpo, e um filhote de gente suga e mama e chupa e lambe e se lambuza na teta materna, onde uma mãe também se lambuza e se nutre com a alegria da cria. Peles e corpos que se encostam, roçam, sentem, corpos quentes e que exalam seus cheiros, o cheiro do leite, o cheiro do peito materno, o cheiro suado do bebê que se esforça e trabalha arduamente neste ritual de prazer e conquista. Os cheiros se misturam, os gostos do corpo materno e do corpo do bebê, a pele da mãe misturada com a pele do filho, como uma extensão da sua.
E o bebê adormece feliz, satisfeito no colo materno e é isto o que buscamos o resto das nossas vidas, nos nossos afetos, esta intimidade, esta nutrição, esta sensualidade, este erotismo.
Muitos foram os escritores que descreveram a sensualidade do ato de comer à sensualidade do ato de fazer amor. Gunter Grass, um dos maiores escritores alemães da atualidade brindou-nos na década de setenta, em 1977, com o magistral romance O Linguado, onde a história das mulheres é revisitada através de nove capítulos que correspondem a diferentes períodos históricos, diferentes mulheres e nove meses de gravidez. O texto de Grass, calcado na lenda dos irmãos Grimm, A mulher e o pescador é uma celebração do sexo e da culinária, da comida e dos afetos. Também a dinamarquesa Karen Blixen (ou Isak Dinenses, se quiserem), escreve seu texto, hoje um clássico do cinema, que é uma celebração erótica às comidas, o inesquecível conto A Festa de Babette, no livro As Anedotas do Destino, de 1958. Ou o recente livro de Isabel Allende Afrodite, onde a autora chilena nos apresenta o prazer da comida como um verdadeiro consolo espiritual para a perda de sua filha Paula.
Erotismo e culinária, no imaginário do senso comum, sempre andaram juntos numa festa de celebração dos sentidos, das sensações e prazeres, e, na sua falta, de desprazeres também.
Para as terapeutas americanas Rosalyn Meadow e Lillie Weiss, que escreveram Las chicas buenas no toman postre, a associação da comida com a sexualidade é fundamental na vida das mulheres, não apenas na vida daquelas que são mães, mas de todas as mulheres. E elas, depois de ouvirem, como terapeutas, milhares de mulheres em seus consultórios, chegaram a algumas conclusões.
O mal que atinge às mulheres no mundo inteiro nos anos noventa do século passado e na atualidade é um conjunto de doenças, sintomas e moléstias chamados de distúrbios alimentares. Nesse livro, onde elas contam seus estudos de casos, não apresentam um manual classificatório de tipos de anorexia ou bulimia, mas propõe uma tese simples. A comida é para as mulheres hoje, o que foi a sexualidade em tempos passados. Ou, por outra, o dilema da comida para as mulheres hoje, é o que foi o dilema da sexualidade para as mulheres em tempos passados.
Sim, porque houve um tempo em que as mulheres não podiam dispor livremente de sua sexualidade, por exemplo, não podiam ficar, não podiam transar, se transassem tinha de ser só depois de casar, como o mesmo namorado de anos, com quem, geralmente, elas também não tinham transado, etc. Estes tempos mudaram: com o advento da pílula anticoncepcional as mulheres, livres do fantasma de se-eu-der-eu-engravido, puderam fazer algumas escolhas, como por exemplo, transar ou não transar, com um, com dois, com três, com cem, engravidar ou não engravidar, casar ou não casar. A passagem, no entanto, de um estágio a outro foi brutal para as mulheres, foi brutal desfazer-se das culpas milenares, morais, religiosas e se transformar numa mulher liberada e responder às exigências de uma sexualidade muitas vezes compulsiva (transar muito é saudável), ousada (quanto mais parceiros melhor), eficiente (orgasmos múltiplos, ponto G, etc.).
Assim, de uma sexualidade reprimida, precária, às mulheres passaram sem muito direito de transição, de forma direta, ao que Marina Colasanti chama da sexualidade fitness, quando transar é um esporte, um esporte caro, sofisticado e que exige demandas insuportáveis para as mulheres. A primeira delas é estar em forma, ter um corpo perfeito, de atleta, para corresponder ao êxito do esporte e ser bem vista pelo público.
Meadow e Weiss atentam para o fato de que cada vez mais e mais mulheres substituem a sexualidade por outras coisas, pelas compras, e, principalmente, pela comida. E, ao longo de uma lista de comparações terminam por concluir que se antes, o controle sobre o corpo feminino exercido pelas normas e regras da sociedade patriarcal, dava-se em relação à sexualidade da mulher, agora mudou e o mesmo controle sobre o corpo feminino se dá através da comida. Para elas, a antiga equação dar ou não dar para o namorado, equivale à equação comer ou não comer, dos dias de hoje. As mesmas fobias que tomavam conta da vida das mulheres que tinham problemas em alcançar o orgasmo, dores na penetração, muitas vezes frígidas, ou de deixar-se simplesmente tocar por um parceiro, de sentir-se à vontade sem roupas na frentes dos outros, são as mesmas fobias que tomam conta da vida das mulheres as mulheres, de forma desesperadoras, nos dias de hoje. Só que agora a antiga ansiedade se revela através de um verdadeiro terror das mulheres em relação ao seu peso e suas medidas.
A insatisfação com suas medidas é permanente, com sua imagem, um profundo sentimento de inadequação se estabelece na vida das mulheres que se vêem sempre impossibilitadas de sentir-se bem com seus corpos e em sua pele, imaginando sempre estar muito longe de um ideal de beleza que nunca será o delas. E passam estas tristes criaturas, a maior parte das horas dos seus dias pensando em dietas, medidas, roupas, cosmética, dietética... E em vista dessas evidências, eu me pergunto: se nos liberássemos destes pensamentos, que nem sempre são verdadeiramente nossos, em que pensaríamos? Não tendo que nos ocupar com pensamentos alheios a nós, como poderíamos aproveitar tanta energia desperdiçada? Não pensando mais em coisas que nos foram muitas vezes impostas, quem sabe não teríamos tempo para fazer leituras, atividades artísticas inusitadas, esportes prazerosos, estudos, trabalhos... Não seríamos, quem sabe, astronautas famosas ou físicas talentosas ou virtuosas violinistas e muito mais coisas, se não perdêssemos tanto tempo lembrando que somos feias, gordas demais ou magras demais, ou que vamos ficar velhas com rugas ou que temos celulites ou peito pequeno ou bunda grande?
Sempre pensei que estamos presas, numa imensa armadilha, e que esta armadilha é, muitas vezes, a nossa própria exigência mental absurda sobre nossos corpos. Tiramos os espartilhos e os cintos de castidade de outros tempos e os trocamos por manequins 38 e por botas italianas de trezentos dólares sem as quais não podemos viver.
E estas mulheres que não comem, comem o que? Comem a fome. A fome dos seus desejos mais secretos, das suas necessidades afetivas mais básicas, de seus sonhos mais recônditos. Mas a fome não mata a fome de ninguém, cria mais fome. E as mulheres que comem demais, também, são iguais as quem comem de menos. Todas negam a fome das suas emoções. As mulheres estão famintas, longe de seus corpos e suas vontades, de seus corpos e suas verdadeiras imagens, de seus corpos e suas únicas e infinitas possibilidades de sentir alegria e prazer. Porque as mulheres que nutrem o mundo de diversas maneiras, afetivas, reais, com suas comidas e afetos, e sua capacidade para a dança, o riso e a farra com seus homens, seus filhos e suas amigas, estão tristes, não se reconhecem mais nos seus corpos, na espontaneidade de seus movimentos. As mulheres desses tempos têm fome e, assim, elas não podem nutrir o mundo. As mulheres desses tempos têm fome de si. As mulheres desses tempos têm uma fome imensa de si mesmas. As mulheres têm fome de tudo aquilo que elas querem poder ser, sentir e realizar.
Vocês que vão ter como ofício um trabalho que é nutrir o mundo não poderão fazê-lo apropriadamente se não pensarem em algumas questões:
- de pensar que, com toda a fome que há no mundo vivemos num mundo onde muitas mulheres deixaram simplesmente de comer, num processo doentio de dissociação de sua auto-imagem onde elas negam seus instintos, sua sexualidade, seu prazer vital de viver. E que isto é sintomático.
- de pensar que, se antes a sexualidade era pecaminosa e proibida às mulheres, agora, quem ocupa o pódio dos pecados primordiais na vida das mulheres é a comida e que, mesmo que sejamos bombardeados, muitas vezes por dia, com imagens de corpos desnudos e liberados, são estas mesmas imagens que denunciam, de forma significativa, outros tipos de aprisionamentos em que se encontram as mulheres. Aprisionamento de um corpo que não é o delas e de uma forma de viver seus apetites, que nem sempre tem a ver com seus desejos e vontades. E que isto também é sintomático.
- que é preciso nutrir as mulheres, que é preciso nutrir quem nos nutre, com imagens positivas e auto-afirmativas delas mesmas, com imagens que não as desqualifiquem e desvalorizem, e que as tornem senhoras e soberanas no seu jeito de amar, no seu jeito de comer, no seu jeito de viver.

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