segunda-feira, 9 de junho de 2008

Atraso

Era uma vez um país onde muitos acocaram na boquinha da garrafa, adoraram a Eguinha Pocotó e dançaram o créu com a Mulher Melancia. E na semana em que este país aprovou a pesquisa com as células-tronco e deu um passo definitivo à civilidade, nesta mesma semana e neste mesmo país, Carlão e Bernardinho se casaram, mas não puderam beijar na boca! O beijo foi censurado!
Atraso e hipocrisia no país mais galinha do mundo! Ou devo dizer, no país mais careta e moralista do mundo?
Sábado à noite as comportadas famílias brasileiras puderam assistir ao último capítulo da novela Duas Caras de Aguinaldo Silva. Um casamento coletivo foi realizado e, como é de praxe, todo mundo casou e foi feliz para sempre.
Durante os meses de novela a discussão sobre o politicamente correto e sobre algumas políticas governamentais estiveram na ordem do dia. Bem ou mal, falou-se sobre quotas na universidade, sobre inclusão, sobre racismo e sobre paternidade homoerótica (juro que não fui eu que inventei este termo). Dondocas descobriram que a vida com o povão na favela podia ser uma farra e alguns bandidos se reabilitaram, como foi o caso do inescrupuloso Carlão, que explorou o pobre Bernardinho à farta.
No país que cria uma ficção, em plena novela das oito, onde uma criança pode, legalmente, ter dois pais e uma mãe, e onde um dos pais pode casar com outro homem, acontece o inusitado: casar pode, mas não pode dar beijo na boca!
Assim caminha a humanidade e assim caminha a sociedade global brasileira: um passo a frente, dez para trás. Atraso, minha gente, o nome disso é atraso. Talvez quando tivermos os resultados das primeiras pesquisas com as células-tronco, dentro de alguns anos, Carlão e Bernardinho, quem sabe, depois de assinar a união estável na frente de um juiz, poderão pegar na mão e dar um virginal beijo no rosto. Espantoso!
Porque na vida real a coisa é outra. Na vida real, a coisa é gay. O mundo está gay. As relações são gays, a estética é gay, a moda é gay, e o fashion é ser gay. O cenário obrigatório é queer eye for the straight gay. Confesso que estou exausta com a coisa gay. Estou exaurida com a moda gay. Estou de saco cheio da caricatura. Estou cheia da histeria da ditadura gay para quem tudo é homofóbico, e estou farta da assepsia do politicamente correto e da punheta virtual também. E do feminismo que só discute, na academia e nos movimentos sociais, relações parentais homoeróticas, técnicas reprodutivas para casais homossexuais, quando a discussão sobre gênero, na atualidade, tem um único e último objetivo que é a discussão sobre a coisa gay.
Eu mesma, depois deste desabafo, serei, muito provavelmente, espinafrada por estas poucas linhas, denunciada como preconceituosa e homofóbica. Mas eu realmente estou de saco cheio destes tempos muito sem graça em que estamos vivendo.
Particularmente, tenho saudades da sacanagem e do deboche, sinto falta do tempo em que os homens gostavam de foder com as mulheres e as mulheres se derretiam para dar a bichana. Sinto falta dos tempos em que homens e mulheres podiam se esfregar e assediar e amassar sem que isso fosse um sintoma, uma doença, um desvio, uma ameaça, tenho saudades dos tempos em que era considerado relativamente saudável, - para dizê-lo em bom português, e para que não esqueçamos os nomes das coisas - homens e mulheres gostarem de namorar, transar, trepar ou foder. Estou quase saudosa de pérolas pré-históricas como a coçada no saco, a boa e velha pegada, um peito cabeludo e um mundo de homens sem brincos.
Estou cansada com o exagero da coisa gay, mesmo sabendo que o exagero é necessário para que algumas demandas venham a público. Assim como foi absolutamente necessário que as feministas queimassem sutiãs, há muitos anos atrás, e assim como foram necessários gestos definitivos e exagerados para que reivindicações e novas condutas se estabelecessem.
E mesmo cansada da moda e da patrulha gay que assola a contemporaneidade, digo que o que vi sábado à noite me fez ter medo de um retrocesso à obscuridade da noite dos tempos. Foi patético, Bernardinho e Carlão ali, lado a lado, dando um passo sério e definitivo, em direção a formas afetivas mais livres e menos preconceituosas. Mas sem beijo na boca! Com beijo na boca censurado!
Atraso, o nome disso é atraso.


Lélia Almeida.

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