terça-feira, 18 de maio de 2010


Volver

Lélia Almeida.

Voltei para a casa materna depois de muitos anos de ausência. A última vez que estive lá, minha mãe me segurava firme entre as suas pernas jovens e penteava, enérgica, os meus cabelos. Trançava os meus cabelos. E enquanto trançava, desenhava o meu destino. Minha mãe nunca soube muito bem o que fazer comigo, a casa das mulheres também estava vazia quando ela chegou, depois da partida prematura da minha avó, a pintora. Vou contar sempre esta história, repeti-la, para que ninguém esqueça de lembrar o preço que se paga quando as coisas ficam fora do lugar. A casa se encheu do desamparo das meninas sós e dos espelhos escondidos sob a gaze branca da névoa do tempo. Voltei para a casa materna, depois de errar, por muito tempo, perdida. Os espectros da minha avó, o da minha mãe, rondam a casa, agora. Tudo sabe a desolação, um travo de amargura, objetos e sentimentos que não servem mais, se misturam. Antes de abrir a janela retiro os lençóis que vedam a superfície dos espelhos. Acendo uma vela e os objetos podem, finalmente, relaxar, na sua imperfeição. A jarra de porcelana para o leite, o açucareiro trincado. As achas de lenha que pareciam esperar por mim, ao lado da lareira. Acendo o fogo. E invoco Héstia, a mais caseira das deusas virgens. Deponho as armas de Artemisa sob a soleira da porta e deixo-a ir. É preciso esgotar os arquétipos para que eles nos liberem também. Invoco Héstia. O fogo é firme e suave. Vou orar antes de dormir. Só abrirei as janelas ao amanhecer. Ave Maria, cheia de graça. Depois da noite fria e escura abrirei a janela. Bendita sois vós, entre as mulheres. As brasas adormecidas sob as cinzas. Bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Muitas cinzas, o lume durou até tarde. E sempre me perguntei sobre como teria sido a história do mundo se no colo da Virgem tivesse uma menina. Santa Maria, mãe de Deus. Sonhei com Ana, a mãe da Virgem, esta noite. Ela me dava de beber em suas mãos. Rogai por nós, pecadores. Ela me dava de beber em suas mãos um leite morno e alvo. Agora e na hora da nossa morte. Abro as janelas, reavivo as brasas, o fogo reacende. Amém. Amém para todas as transformações. Para uma casa velha que pode voltar a ser um lar. Para as almas das mulheres sábias. Começo a limpeza, é uma faxina, na verdade. Meu corpo velho adquire a agilidade de movimentos de uma menina. Sacudo os lençóis brancos e empoeirados. Limpo os espelhos com a manga do suéter velho. Lá estou eu, no fundo do espelho. Cabelos brancos, olheiras. Há muito que fazer. Espantar os medos, aquecer a casa e cuidar das meninas da família. E assim, acolher as meninas do mundo. Vinde a mim as meninas. Eu voltei, depois de muito vagar por territórios inóspitos, ao calor da casa materna. Estou pronta para ocupar o meu lugar e, como os objetos que apenas esperavam ser descobertos, poder, finalmente, ser eu mesma. A mãe de mim.

In: Anovaela, texto inédito, 2008-2010.

2 comentários:

Verônica Couto disse...

Que lindo. Vejo a casa, as meninas, os móveis... Saudade de você. bjs

Unknown disse...

Bonito, Lélia. Muito bonito. Beijo.