sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Nada menos que uma vida maravilhosa, Lélia Almeida. Um pássaro despedaçado no meio da sala é sinal do quê, chego a me perguntar. Não tenho tempo para pensar no pássaro e nem de removê-lo dali. Um pássaro pequeno. Os gatos vão dar cabo dele. Está despedaçado, com o abdomen escancarado. O alpiste misturado com as tripas lembra diminutas pepitas de ouro. Os antigos liam o destino das pessoas nas vísceras dos animais que eram sacrificados. Olho para o pássaro todo o dia quando chego em casa, ele cada dia mais seco e mais morto, as partes expostas. Não quero ler nada, nao quero saber nada, não me interessa o meu futuro. A palavra que me persegue nestes dias é maravilhamento. Ontem fui numa feira de roupas populares com a minha mãe e a atendente me olhou e disse, nossa, que olhos lindos! Eu entendi, ela também anda se maravilhando. A minha pele brilha desde que parei de pensar no futuro e passei a respirar profundamente e a sonhar as coisas que sonhava quando era uma menina contente. Penso em tudo o que me maravilha: as cigarras, a chuva, música antigas e bregas, homens de olhar safado, sexo, manhãzinha, entardecer, o barulho das crianças lá fora, os carros que não páram, um coração que pulsa nesta cidade impossível, bolo de chocolate, romãs, figos, jarra com água, a gata que ronrona ao lado do teclado. Milgares moleculares. Saí da loja com um vestido bordô e olhar de depravada.

Nenhum comentário: