“Assim na Terra como no Céu”, por Lélia
Almeida.
Encontrei com o Louco do Tarot na
rodoviária de Osório num final de tarde chuvoso e outonal. Dou aulas em Osório
toda quarta-feira, de manhã e de tarde, e no final da tarde a gente deixa o
nome com o rapaz do guichê das passagens e se tem lugar para Porto Alegre ele
chama o nome das pessoas interessadas. Nunca sabemos se vamos de fato embarcar,
mas sempre dá certo.
O que se sentimos diante de uma imagem
arquetípica é sempre avassalador. Muitas vezes não sabemos exatamente do que se
trata, mas sabemos da potência simbólica da experiência. Ela fala com a nossa
alma. Uma vez num carnaval no Rio de Janeiro encontrei com uma adolescente
grávida que tinha uma coroa de estrelas na cabeça, uma tiara de plástico, muito
simples, era uma moça muito pobre. Mas o esplendor e a força que emanava daquela
mulher que alisava serenamente a barriga me fizeram entender que eu estava na
frente da Imperatriz. E que a sua beleza tinha a ver com uma vitalidade e
prosperidade muito singular.
Sentei no banco da rodoviária esperando
que chamassem o meu nome. Um homem jovem, moreno, com a roupa esfarrapada
passou por trás do banco onde eu estava sentada. Ele levava uma trouxa vermelha
amarrada num cano, tinha a barra das calças dobradas, uma boina basca preta e
vestia umas alpargatas destruídas. Do lado dele um cão branco e atrás do cão,
vários outros vira-latas. O homem deu um assovio que ecoou pela rodoviária e os
outros cães fugiram. Ele desfilou solene pelo espaço e me olhou firmemente. “É
o Louco do Tarot”, eu quis gritar pra todo mundo ouvir. E tentei imaginar o que
ele estava tentando me dizer naquele entardecer sombrio.
Esta noite acordei de madrugada e pensei
que o lema do louco poderia ser este: “Assim na terra como no céu”. E que
corresponde um pouco ao significado da carta, o Louco olha as estrelas, com a fé
inabalável dos doidos, ele crê no mapa errático e caótico do universo. Ele está
à beira de um precipício e não tem nada além da roupa do corpo, uma flor e uma parca
mochila. Um cão branco ao seu lado, no entanto, o alerta e guia. O louco anda
só e perdido. O louco precisa ousar, sabe que não há como se encontrar sem se
perder. Ele é a força motriz, ígnea, selvagem, instintiva, primitiva.
Esta noite tive sonhos com animais
selvagens que não sei o nome, animais furiosos, e acordei serena e imensamente
alegre. Porque depois de alguns meses de mudanças de vida profundas, que me
assustaram muito, hoje, nesta madrugada fria, a minha alma perdeu o medo. O
medo de que as escolhas não tenham sido certas, o medo do que virá, o medo que
me impedia de ver as linhas do mapa. Perdi o medo e acordei sorrindo ouvindo o
canto dos pássaros na casa amarela. O mantra do Louco embalava o amanhecer:
“Assim na Terra como no Céu”, e que invoca impressões definitivas, que algumas
coisas que nos acontecem talvez já estivessem, misteriosamente, desenhadas e
que nem sempre elas correspondem ao que pensávamos desejar. Que elas ainda
podem ser outras, diferentes das que supúnhamos possíveis e que ainda assim
podem ser maravilhosas e surpreendentes. E que não temos nenhuma espécie de
controle sobre nada.
Cheguei a Porto Alegre e fui pegar o
Catamarã para ir para casa. As ondas do Guaíba estavam agitadas. Olhei a minha
imagem na janela do barco, misturada com a das águas e sigo sem saber quem é
esta mulher que passa o batom, arruma o cabelo molhado da chuva e que leva pão
preto para casa para jantar no fim do dia.
Talvez o Louco tenha vindo me
anunciar o fim do medo e a certeza da imprevisibilidade das rotas. Talvez
aquele olhar e aquele assovio poderoso anunciem o que eu sempre soube: que quem
se aventura às grandes mudanças pode, depois de tudo, voar.
Chego a Guaíba e já é noite e a
chuva amainou. E vou para Eldorado do Sul, o lugar onde moro agora. Numa casa
que está se transformando num lar. E onde pintamos a velha despensa com tinta
cor de laranja. E onde ele me levou para o pátio, numa tarde de verão, para
tirar a tinta dos meus cabelos, com um pente destes de catar piolho, tirou os
pedaços de tinta, encostei a cabeça no corpo molhado dele e o sol ofuscou os
nossos olhos, a cor laranja ficou dourada, os nossos olhos iluminados. Com ele
lembrei-me do significado real de palavras esquecidas: alecrim selvagem, flor
de hibisco, boi, garça, cágado, lagartixa, erva doce, eucalipto, tempestade. E
que determinadas experiências são da ordem da fé e nada mais. Em Eldorado do
Sul aprendi que nem tudo que reluz é ouro. E que para além do ouro encontrei
apenas o que mais procurava: a vida vívida, a vida viva.
Nenhum comentário:
Postar um comentário