sexta-feira, 23 de outubro de 2015



Penúria e artimanha na casa amarela, por Lélia Almeida.


Depois que saí da casa em Londres e voltei pro Brasil levei muito tempo sonhando que voltava lá para reencontrar o meu amor, com o tempo o sonho foi se modificando, eu demorava a encontrar a rua da casa, depois a casa não era mais na mesma rua, a paisagem ficava enevoada até que não encontrava mais a casa e nem a rua. A vida tinha andado e nunca mais sonhei nem com a casa e nem com a rua. Agora vivi algo parecido, depois que saí da casa amarela, com a sua varanda ampla de janelas grandes e com o jardim selvagem. No meu sonho estavam as duas labradoras pretas e as caixas de papelão na porta da casa onde elas dormiam nas noites de inverno. Sonhava que voltava lá todas as noites e dormia enrodilhada nelas, tomada de uma tristeza sem fim esperando que ele abrisse a porta e me acolhesse nos seus braços e no seu amor. A porta nunca se abriu. Sempre levantava e partia quando ainda era noite e ia embora para a minha vida sozinha. No meu sonho as cadelas se chamavam Penúria e Artimanha. Acordava com o coração dilacerado e a alma quebrada e custava a levantar da cama e continuar vivendo. Esta semana sonhei que havia dormido além da conta e ao acordar já despontava o amanhecer com a neblina sobre o campo. Parti resoluta e firme, eu, Perséfone, eu, Psiquê. E sem olhar para trás e nem me despedir das cadelas fechei com leveza o portão e atravessei o campo me despedindo dos bois pretos e das garças rosas. Um dia a tristeza começa a ir embora e não voltamos mais para o cenário do abandono e do desamparo, já não precisamos mais de quem não precisa de nós. E estamos prontas para a vida nova.

Nenhum comentário: