A
mulher mais triste do mundo, por Lélia Almeida.
Como
uma Penélope invertida e errática esqueci de
amarrar-me ao mastro da nau e fechei os olhos para melhor ouvir o canto
do meu amor. Cega, esqueci-me de vê-lo, de olhar nos seus olhos. E fiquei ali,
dia após dia, ouvindo a música que me perdia de mim. Seus ruídos. Os passos
silenciosos pela manhã ao sair do quarto para não me acordar. O chiado da água
da chaleira para o mate. O barulho da ração derramada nos potes das cadelas e o
barulho dele escovando os dentes. O jeito como ele entrava na cozinha ao meio
dia e me abraçava sussurrando, minha linda mulher, minha princesa. O ranger do
portão de ferro quando ele abria a garagem na tardinha e o jeito que ele punha
a mão pela janela para abrir a porta por dentro. O serrilhar das folhas no
pátio nos sábados pela manhã, o motor do cortador de grama, a água da mangueira
para lavar o carro no domingo depois do almoço, os gritos de gol quando o Inter
ganhava, o estalar dos dedos para chamar as cadelas pra dentro do pátio, o
barulho do fogo queimando a papelada da semana e ele guardando o carro na
garagem. O vento embalando os eucaliptos. O mugido dos bois e o revoar das garças rosas. O pio das gaivotas,
o mar lá longe e a lenha crepitando na lareira. Ele fechando as grandes e
emperradas janelas. E o seu ressonar calmo quando adormecia abraçado no meu
corpo. Ouvi tudo e esqueci-me de ver. De ver que ele tinha partido, que ele não
estava mais ali. Não sei o que fazer com estes ruídos que ainda reverberam nos
meus dias, agora que abri os olhos e não sei para onde ele foi. Esqueci-me
ingenuamente da cera das abelhas nos ouvidos e do perigo inexorável da melodia
encantatória, esta minha velha conhecida. Agora olho atentamente e não o vejo.
Mas
a lição é simples, Eros é cego e agora sou a mulher mais triste do mundo longe
daqueles ruídos.
2 comentários:
Muitos sentimentos contidos nesta poética história! Amei!!
O que fazemos para encontrar Penélope? Chamamos pelos nossas Árabes. Nossas amigas escritoras.
Postar um comentário