sábado, 19 de maio de 2007

Mulheres em Movimento:

Quando as minhas alunas me perguntam se eu sou uma feminista a pergunta vem cheia de curiosidade, mas uma curiosidade de quem está falando com um animal pré-histórico, uma mamute congelada o clone de uma dinossaura, qualquer coisa assim. Eu digo que sim, e mais, digo que sou das últimas, das últimas feministas da América Latina inteira, já que a outra feminista que eu conheço é justamente a minha companheira de mesa, esta que é uma feminista histórica deste país, a professora Suzana. Enfim, as minhas alunas de todas maneiras não conseguem compreender como uma pessoa simpática como eu e que gosta tanto de literatura, pode gostar de ser uma feminista, e concluem pelo exótico, pelo excêntrico, afinal, eu sou uma escritora, o que justifica muitas excentricidades. E quando falo do Movimento de Mulheres, do Movimento Feminista, a coisa só piora, Movimento de Mulheres, mas quando mesmo foi isto, acho que elas imaginam que foi na minha juventude, um tempo muito longínquo e distante, muito distante da realidade delas, onde as mulheres, loucas e insatisfeitas, queimavam sutiãs em praça pública e espantavam os homens, enraivecidas. Sempre acho graça o Feminismo ser associado a um fato tão absolutamente isolado e pequeno como uma passeata contra o concurso de miss América, quando um grupo de feministas jogou os sutiãs em uma lata de lixo como uma rejeição simbólica da feminilidade artificial. Tudo bem, se o gesto ficou associado ao fato é porque às vezes são necessários gestos irados, furiosos para que alguma coisa aconteça, alguma coisa mude, alguma coisa se quebre. Enfim, sobre o Feminismo os mal-entendidos não são poucos, e isto não é de graça.

A verdade é que não há um Movimento de Mulheres, não há um Feminismo. O Feminismo é múltiplo, tem várias cores, muitos matizes e nem sempre teve este nome, ainda que diversos Movimentos de Mulheres tenham tido uma característica sempre igual: o Feminismo reivindica fundamentalmente a autonomia das mulheres, autonomia em relação às leis e normas ditadas sobre elas pelo patriarcado. E isto que parece ser tão simples e tão pouco, é complexo, é muito complexo. Mas afinal, de qual Movimento Feminista eu vim, dos das mulheres dos anos sessenta, que brigavam pelo controle da sua sexualidade, ou dos anos setenta ou oitenta e sua luta pela inserção no mercado de trabalho, ou dos anos 20 e 30 quando Virginia Woolf escrevia pela primeira vez sobre as mulheres escritoras e defendia que tínhamos que ter um quarto todo nosso para poder escrever, ou dos anos quarenta quando Simone de Beauvoir escreveu sobre o segundo sexo, dando nome e explicações sobre esta subcategoria que as mulheres tínhamos sempre representado na história. Ou dos anos 60, quando as americanas trouxeram o debate do feminismo a público, radicais, e o estenderam numa malha, numa rede cheia de significados, junto aos negros, aos gays, aos pacifistas, etc. Ou talvez do tempo de Mariana do Alcoforado, a célebre freira portuguesa que escrevia cartas de amor desde a clausura, saudosa do seu amante francês (sempre tem um amante francês na vida das mulheres, são musos na verdade, para quem não sabe), ou talvez alguns séculos depois, eu também sou do tempo das três Marias portuguesas, dos revolucionários anos setenta em Portugal, que retomam as cartas da pequena freira e atualizam o sentimento, o ímpeto, o não às convenções que enclausuram o desejo e a escrita feminina a uma cela escura, fria e fechada. Eu sou do tempo de Heloísa, da irmã de Shakespeare, Mary Shelley, Jane Austen, George Sand, Colette, Doris Lessing. Eu sou de um tempo antigo, muito antigo, e é isto que é um pouco difícil de explicar para as minhas alunas e talvez seja esta antigüidade que elas notem em mim quando fazem sistematicamente, todo ano, a fatídica pergunta.

Porque talvez fosse mais correto e acertado, e mesmo mais feliz, falarmos de mulheres em movimento. Mesmo que tenhamos várias referências históricas de Movimentos de Mulheres, sejam eles, como por exemplo, o das mulheres das minas de estanho da Bolívia, onde o nome de Domitila Barrios de Chungara é sempre representativo, ou o das Mães e Avós da Praça de Maio, na Argentina, que até hoje está aí trabalhando, resgatando seus filhos e netos desaparecidos, ou os grandes encontros de Nairobi, México, Pequim, só para citar alguns, dos últimos anos; a verdade é que há muitos mais, muitos outros que nós nem sequer conhecemos ou tomamos conhecimento. E daí pensar que talvez fosse mais correto falar em Mulheres em Movimento.

As mulheres estão em movimento cada vez que elas se juntam e falam, mesmo quando elas se juntam e ficam quietas, o que é raríssimo de se ver, mas que ocasionalmente poderá acontecer. As mulheres estão em movimento quando falam de si, quando indagam das outras e se procuram infinitamente nos gestos e vozes que compõe uma irmandade, uma irmandade muito diversa e ao mesmo tempo, muito parecida. Para a psicanalista Connie Zweig, um dos grandes méritos e responsabilidades do feminismo é que ele "criou a irmandade - um realinhamento de mulheres com mulheres", onde a aprovação masculina já não está mais no centro das condutas e atitudes. Elas estão em movimento quando falam entre si dos seus filhos, seja de forma neurótica ou normal, não importa, nem sempre dá pra diferenciar muito bem, filhos são sempre uma grande preocupação e quase sempre uma imensa alegria, quando se juntam pra falar dos seus homens, aqueles que incomodam, ou os que não incomodam (rarissimos também), ou os das outras, que aqui também ninguém é santa, e que só dar uma olhadinha não faz mal a ninguém, aqueles com os quais a gente sonha e os outros com quem a gente sonha nunca mais encontrar... quando elas falam de seus sonhos, de trabalho, de profissões, simples ou sofisticadas, do sonho de ter um apartamento em Nova York, ou uma casinha de sapê em Gramado Xavier, não importa, uma casinha pra espichar o pé no fim do dia e poder relaxar, antes de começar, é claro, a fazer a janta, dar banho nas crianças, arrumar as camas que ficaram desarrumadas da correria da manhã e mais, e mais, pois como sabemos a biologia feminina é maldita e obra noite e dia sem parar, pro bem e pro mal. E disto falam as mulheres também, quando estão em movimento, porque quase todas prezam um baile, muita risada, uma cervejinha e um bom namoro, apesar das horas de trabalho serem infinitas somando as tantas fora de casa e as outras tantas dentro de casa. As mulheres estão em movimento quando sussurram, cochicham entre elas, porque ainda há temas e assuntos que são segredos de mulheres, quando se contam de forma silenciosa que os seus companheiros, sejam namorados, amantes ou maridos, não querem saber de usar camisinha, suas gravidezes indesejadas e suas doenças, quando se contam de seus abortos, nem tão raros assim, das que apanham, das que vêem suas filhas apanhar e serem molestadas e muitas outras coisas deste universo silencioso que não pode aparecer, que ainda não pode aparecer. As mulheres, eu penso, eu vejo, aqui e agora, estão em constante e permanente movimento, um movimento que não pára, que de qualquer forma e qualquer maneira é um movimento amoroso, que inclui, que soma, que conta mais um, mais uma, venha, a senhora também, venha, o senhor também, a menina, os meninos, podem vir.

Talvez a grande característica do movimento das mulheres é ele não ser institucional, pois não há como institucionalizar o movimento, não há como institucionalizar um movimento, o movimento é um gesto, de fúria, de dança, de graça, de corte, e o gesto é livre, o gesto é o que faz o movimento andar. E é por isso que eu termino por dizer às minhas alunas que eu, particularmente faço parte de todos os movimentos de mulheres, que talvez as feministas sejam umas mulheres loucas e destemidas, mesmo quando quietas e tímidas, mulheres teimosas, quase sempre alegres, rebeldes e inquietas e com imenso sentido de cumplicidade. São aquelas mulheres que - se identifiquem ou não com este rótulo - e que em diferentes momentos da história do mundo, fazem com que o gesto crie o movimento, um movimento que ora diz sim, que ora diz não, que não precisa se chamar de feminismo, mas que é um gesto que não pára, mas que é um movimento a favor da vida, da vida das nossas filhas e filhos, das nossas irmãs, dos nossos homens, do universo dos nossos afetos, de uma vida melhor. A jornalista norte-americana, Natalie Angier, diz que talvez, com o tempo, a filha dela, que hoje é uma menina, nem vai saber porque um dia as mulheres foram feministas e escreve sobre isto para a menina. É com esse texto que eu gostaria de terminar a minha fala, orgulhosa de fazer parte do movimento, de poder criar o gesto e de ser uma das últimas e orgulhosa feminista. Ela diz assim:

(...) Nossa tribo é a tribo das mulheres. É nossa tribo a ser definida, e ainda estamos fazendo isso, e nunca desistiremos. Vivemos em um estado de revolução permanente. Que emoção! Não abandonaremos a tribo, nem a batalha. Não definiremos a tribo como uma zona ausente ou um prêmio de consolação. O desejo de ser homem é uma rendição aos limites e restrições que nunca estabelecemos para nós mesmas. É preguiça. Não faz parte de nossa natureza. (...) Tenho uma filha agora. Ela ainda é nova demais para saber que tem quaisquer limites, que não é a rainha da Via Láctea e que morrerá um dia. Ela sabe que é uma garota mas ainda não dá bola para isso, nem percebe o que isso significa. Talvez não signifique nada. Talvez seja isso que desejo dela: que ela não pensará sobre ser uma garota, ou ser uma mulher, de nenhuma forma categórica. Que isso não a interessará, pois ela estará muito ocupada com uma profissão glamurosa, como calcular as trajetórias dos cometas, tocar cravo ou satisfazer a nostalgia de sua geração por pomposos dinossauros pedófilos e a Internet. Talvez ela dê uma de Björk comigo, fazendo careta e bocejando discretamente sempre que eu mencionar o tribolite político chamado feminismo. (...) Ou talvez ela troque a desgastada canoa de madeira da mãe por um imponente barco de ouro e satisfação, com uma tripulação amotinada de valquírias de cabelos desgrenhados, sereias cindidas ao meio e ninfas impacientes. Minha filha falará rouco enquanto rema firmemente em meio a tempestade e calmarias, ora em sintonia com suas companheiras, ora vociferando com elas. Ela ainda não encontrou a lendária costa livre, mas não importa. No mar, ela sempre se sente em casa.

Lélia Almeida

Um comentário:

Anônimo disse...
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